Um olhar sobre os “tempos sombrios”
Leia alguns dos artigos do livro ‘A arte de se tornar ignorante’, de Flávio Brayner, publicado pela Cepe Editora
03 de Maio de 2021
'A arte de se tornar ignorante' reúne mais de 120 textos do professor Flávio Brayner
FOTO Valério Errani/ Pixabay/ Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 245 | setembro de 2020]
contribua com o jornalismo de qualidade
COMO UMA ALEGRIA IMPREVISTA
Lourival Holanda
da Academia Pernambucana de Letras
No presente livro de Flávio Brayner o título já prefigura, a seu modo, o vasto mundo de suas preocupações: com clarividência e ironia ele percorre cenas e questões da cultura contemporânea nos quadrantes de cá. E mais: nos dias duros que ora nos coube viver, lucidez e humor são ingredientes tão raros como necessários. O livro vem dividido como um panorama estudado: observações preciosas sobre sua longa frequentação educativa; sua relação com o universo acadêmico; uma incursão firme sobre credos e costumes contemporâneos; uma substanciosa revisão de atitudes políticas, centradas na história; e algumas crônicas votivas — e corajosas — de autoavaliação. A linguagem contida, salpicada de ironia, não deixa propriamente espaço à inconfidência: Brayner tão somente testemunha seu tempo, partilha uma vida, as inquietações e as alegrias que a enriquecem. Depois de dois ou três textos o leitor percebe já que tem nas mãos um livro singular — como uma alegria imprevista.
Exemplo do intelectual dos nossos dias, Brayner especula sobre o mundo que se apresenta como espetáculo. Em muitos momentos lembra o perfil de fogo de um Karl Kraus: crítico e agitador cultural. No entanto, já sem a contundência daquele, Brayner é mais ponderado; mas não menos alerta e agudo. Kraus viveu, também, os estertores de uma época. Em ritmo de valsa Viena se esvaía; ele era o arauto de um tempo novo. Em comum, os dois pensadores têm o fato de montarem seu observatório em lugar privilegiado: a linguagem. Um professor e um jornalista trabalham ambos, sobretudo, com a linguagem. Sabem que ela é condição necessária para o pensamento. Não espanta que um e outro apontem no uso abusivo dos chavões, do automatismo verbal, o primeiro agente de corrupção da cultura.
A crítica demolidora de Brayner toma, no entanto, a leveza da ironia. Assim desconstrói as tantas teorias que desserviram à literatura (Como acabar com a literatura); ou o desmonte agridoce que faz das ideologias (Uma religião secular); e, num intuito arqueológico, detecta o rio submerso nos discursos que mascaram mal seu fascínio de crença — de ordem religiosa nos procedimentos de adesão entusiasta, de perseguição e exclusão; enfim, de demissão de si nos fideismos sectários.
Brayner entende isso quando comenta a relação entre poder e filosofia. Os textos partem da observação imediata da dinâmica do jornal; mas a isso segue-se o crítico — que toma um saudável distanciamento daquilo que observa e junta à perspicácia um grão de sal de ironia —; e a graça impede o peso de um discurso acadêmico, de suposta certeza. O que resulta é uma geometria prismática de temas e pontos de vista que sacodem e surpreendem o leitor.
O professor e doutor Brayner poderia nortear suas lições pela longa experiência de pedagogo, de especialista na área; mas, não: sua visada crítica é mais abrangente e generosa — ele recorre a um modo de dizer elegante e ladino, sua marcada impregnação literária, que permite, pela nuance, fazer rever, em nova angulação, um fenômeno cotidiano, e revelar a estranheza que à primeira vista o familiar escamoteia. É assim que esse senhor, jeune d´allure, parte do espetáculo de uma moça entrevista na praia, “escultural e de beleza perturbadora, em trajes sumaríssimos”, e desemboca numa prova estética da existência de Deus. Se não convence o crente, libera o melhor do imaginário do leitor.
É como se os textos partissem de um dado observatório que uma consciência atenta mantivesse e partilhasse com o leitor. O Brayner cronista do cotidiano mascara mal o pensador social inquieto com o que resulta dessa radiografia de tempos turvos, os nossos. Analisa o mundo à vol d´oiseau e com uma acuidade de clínico. Com a atenção de antropólogo, às vezes Brayner avança numa consideração sociológica a partir de uma conversa entreouvida por acaso. (Uma paixão inútil).
Como o sentido do presente sempre nos escapa — o que sucede de chofre nos desafia como um hieróglifo —, Flávio Brayner se interroga como responder à complexidade de um real político, social e cultural que parece ter perdido a bússola. Os signos políticos, como os signos siderais, perderam sua firmeza. Nossa geração perdeu certas ilusões; tomara que guarde algumas esperanças — e, de quebra, alguma rude alegria, sua irmã gêmea.
A tarefa do crítico é interminável e ingrata: a dinâmica cultural não permite repouso e, no mais das vezes, vai na contracorrente de um certo consenso. A crítica moral e a dos valores políticos: uma lâmina fina as separa.
Em alguns momentos a argúcia de Brayner pontua, com muita precisão, problemas contemporâneos. “George Steiner afirmou certa vez que o ‘Nazismo não era apenas uma questão política. Era, essencialmente, uma questão de linguagem’.” E Brayner, como com bisturi agudo, faz uma anatomia crua desse momento cultural. Há um nítido desgaste das palavras. Um uso irrefletido de certos conceitos quando eles esvaziaram, em sua recente inflação semântica. E quando as palavras perdem sua carga de sentido, o diálogo se dá num espaço vazio: a estridência equivale ao silêncio estéril. Disso dá testemunho a violência — e desgaste — nos discursos políticos do ano passado. E o discurso político, que é a formatação forte de uma esperança, torna-se uma farsa, pelo chavão, pela redundância — que asfixia o pensamento. É o legado que vamos deixar ao espanto de um futuro historiador das ideias, nesse desafortunado começo de século. A lenha verde que queimamos produziu muita fumaça e fúria — pouca luz, no entanto. Nas paixões, políticas ou outras, difícil escapar à armadilha dos extremos. A degradação do espaço político tampouco justifica a tibieza sob máscara de prudência. Brayner sabe que a função do intelectual é tentar discernir, tentar ver claro. Num artigo instigante — O clichê como recurso — volta ao tema do empobrecimento de nossos debates e soluções: “A desagregação é também nossa incapacidade de gerar uma linguagem conceitual nova”. As proposições políticas enrijeceram em slogans e clichês que a vertiginosa velocidade das mudanças tornou anacrônicas. O debate sobre humanismo x anti-humanismo ficou reduzido a extremos: recusa de um modelo preconcebido que acreditava nos valores clássicos, e sua negação peremptória. Hoje pensamos o humano, mais modestamente, como um feixe de possibilidades; capaz do melhor como do pior.
Seus textos curtos — meteóricos: brilhantes e breves — alumiam questões cruciais de nosso momento. Com muito acerto fez seu o mote de Guyotat, rico em seu paradoxo: é preciso desfazer-se de toda pretensão à certeza, esvaziar-se um pouco para dar lugar à acolhida da narrativa do outro. É assim que Brayner reivindica uma filosofia mais funda, e ao mesmo tempo, mais pragmática: “A função da filosofia é fazer com que nossas certezas se tornem frágeis para podermos interrogar a certeza dos outros e examinar a sua verdade”. Mais que pertinente, no debate sobre a extinção das Humanas na formação dos mais jovens; o sal da ironia de Brayner: “não falaremos mais de formação, mas de treinamento, nem de consciência, mas de habilidades. A vida se torna um empreendimento!”
Há, nessa geração formada por Flávio Brayner, bons intérpretes da cultura contemporânea. Continuarão, por certo, seu louvável labor de despertar perspectivas de interpretações. Brayner brilha além: mais que uma promessa, é uma presença feliz — e assume seu trajeto como sendo a conjunção de uma profissão e uma paixão. Dando à paixão o cabresto de certa medida; e à profissão, a atitude saudável de uma autocrítica permanente. Cumpre, assim, a função do intelectual: tentar ver claro, discernir. E, sobretudo nesse momento, o discernimento precisa preceder a indignação. Isso faz de Brayner um pensador necessário.
Capa do livro A arte de se tornar ignorante. Imagem: Divulgação
FOI NO BLOCO DA SAUDADE...
Se não me falha a memória, foi a filósofa e psicanalista francesa Elizabeth Badinter que afirmou certa vez que a história da pessoa amada é aquela de sua decadência progressiva, até que não reste mais nenhum encanto, nenhum mistério! Frase dura com que, se não fosse nossa elevada propensão romântica para enxergar na relação amorosa a residência afetiva do idílio e da comunhão das almas, fundada na escolha individual que o amor moderno permitiu, talvez tivéssemos que concordar. O suíço Denis de Rougemont, em uma das polêmicas inspiradas pelo seu livro História do amor no Ocidente (1936) chegou a afirmar — o que lhe valeu duras críticas! — que “o casamento (era) o túmulo do amor!”. Isso sem falar da pobre Madame Bovary, coitada, depois de suas inumeráveis leituras de autores românticos, condenada a um casamento insosso, a monotonia de uma cidade do interior da França (Rouen), alguns amantes canalhas, muitas dívidas e um suicídio final (por arsênico): esses exemplos bastariam para mostrar a qualquer amante minimamente realista que a “história da pessoa amada”...
Hoje, nosso pacto amoroso fundado numa moral do afeto com duração determinada (com prazo de validade: enquanto houver tesão, como se diz) não consegue escapar das injunções, digamos, mercadológicas. Refiro-me ao mercado amoroso, aquele em que nos apresentamos com um texto sobre nós mesmos (e as redes sociais facilitam muito isso), inventamos uma história de nossas vidas, sugerimos comunhões e sintonias radiosas e esperamos que alguém compre essa promessa amorosa. O nó da questão está no fato de que esse pacto tornou-se perigosamente provisório e dependente de que um produto melhor nos incite a abandonar o anterior, tornando completamente instável nossa relação com o outro — instabilidade consumista que se tornou verdadeira norma de vida —, o que, a longo prazo, nos condena a todos à solidão e não à liberdade. Solidão que pretendemos compensar com os milhares de amigos que todos os dias adquirimos no Facebook.
Sou casado com Gil há cinco anos, vivemos juntos há 15, e nada como (ufa!) a maturidade para nos mostrar a relevância existencial de uma relação harmoniosa e estável, cheia de brincadeira e safadeza, de conversas e desentendimentos, de chamego e desencontro, de liberdades e entraves, de apoio e crítica, de esperança e decepção, de alegria e chateação, de vinho e água: sentimentos desencontrados que precisam se equilibrar para que nenhum tome a dianteira: otimismos excessivos e ilusórios ou desencantos profundos e irremediáveis. Demorei muito, muito tempo, para aprender tudo isso; sofri e fiz sofrer para, finalmente, descobrir algo bastante simples que não tem nada a ver com concepções epicuristas de vida, mas com crescimento emocional e com uma compreensão da existência menos assentada na vaidade, na ambição, na competição, na autopromoção: aprendi que o amor, diferentemente da paixão arrebatadora e provisória, é um rebento do tempo, aquele mesmo tempo a que se refere o Livro de eclesiastes. Devo isso, essa quase tardia descoberta, a uma mulher que, 15 anos atrás, num acerto de marcha do Bloco da Saudade, cruzou meu olhar e soubemos, como numa espécie de iluminação mútua de nossas almas, que a partir daquele momento...
Para Gil, um amor conquistado.
ZWEIG
Há exatos 75 anos, em fevereiro de 1942, o escritor austríaco Stefan Zweig e sua segunda esposa, Lotte, davam fim às suas vidas em Petrópolis, quando souberam dos horrores que os nazistas estavam praticando na Europa. A última novela de Zweig foi escrita no Brasil: O jogador de xadrez, uma curiosa narrativa em que o personagem principal — um campeão mundial de xadrez, Czentovic — dará seu lugar de protagonista a um outro, um obscuro passageiro que se encontra no navio (onde se passa a história) que faz a viagem de Nova York para Buenos Aires. Czentovic, um arrogante enxadrista, aceita, para passar o tempo, jogar uma simultânea contra vários adversários e, no meio deles, encontra-se alguém que — embora não jogue há mais de 20 anos — sopra jogadas que forçarão o campeão a declarar um desmoralizante empate.
O narrador descobre, numa longa conversa de convés com esse estranho, tratar-se de um advogado austríaco que conseguira esconder dos nazistas os bens de instituições religiosas e que, denunciado, fora preso pela Gestapo em condições aterradoras: um quarto sem janelas, apenas com uma cama e a absoluta proibição de que qualquer pessoa lhe dirija a palavra. Meses de silêncio e isolamento, a perda das noções de tempo e espaço, morto em vida, um homem diante do nada, até que... é chamado para o primeiro interrogatório. Na espera, que durará várias horas antes de ser interrogado, descobre no casaco de um oficial, posto a secar, um livro! Rouba-o e descobre mais tarde, já em sua cela, tratar-se de um manual de xadrez repertoriando as mais importantes partidas dos 10 maiores enxadristas mundiais. Em seu absoluto isolamento, refaz na imaginação cada partida, coloca-se no lugar dos adversários, joga contra si mesmo, imagina simultâneas, compreende as estratégias, as armadilhas, prevê lances futuros, tudo isso sem uma peça sequer de um tabuleiro real! Próximo à loucura é libertado e... encontra-se, agora, a caminho da Argentina.
Zweig, autor de O mundo de ontem — uma elegia sobre a derrocada dos valores morais e intelectuais que forjaram a Europa até a Primeira Guerra — retoma nessa novela a crença que lhe foi cara (e para tantos intelectuais daquela Europa): a de que poderíamos ser salvos pelos livros e pelos padrões elevados da cultura. Há, hoje, algum livro que poderia nos salvar da barbárie já a caminho? Pessoas religiosas diriam que sim, mas, numa sociedade tão altamente secularizada como a nossa, que destruiu o Inferno e não crê nas vantagens do Céu, penso que perdemos a noção da importância dos valores transcendentes que a cultura proporciona. De qualquer forma (e disto Zweig já sabia!), dos dois, o mais fácil de ser reconstruído é o Inferno!
AS CIDADES INVISÍVEIS
Eu tinha nove anos quando meu pai morreu. Durante algum tempo fui morar com uma irmã em Araripe, uma pequena vila operária no distrito industrial de Igarassu, onde fica a fábrica de soda cáustica pertencente ao Grupo Votorantin. Meu cunhado, Mário Mattos, era diretor-geral da fábrica, e todos os dias um velho Jeep, dirigido por Seu Pedro, vinha me trazer ao Recife, onde me preparava para o antigo Exame de Admissão ao Ginásio de Aplicação. Nesse trajeto aprendi a dirigir. Foi um período fabuloso de minha infância, apesar da orfandade, época em que me sentia o próprio Carlinhos, o menino de engenho de Zé Lins!
Há uns dois anos, indo para João Pessoa visitar o velho Gilvando Bezerra Cavalcanti, o barão de Bananeiras, resolvi fazer um pequeno desvio e ir até Araripe com meu filho Lucas, para lhe mostrar o paraíso onde passara parte de minha infância. Não pude fazê-lo: Araripe não existe mais! A igreja, as casas dos operários, a república, o Clube do Cloro, o ambulatório, o barracão, o Grupo Escolar Santa Helena..., tudo, tudo desapareceu, destruído e ocupado pelo mato que cresceu no lugar, soterrando parte da vida e da memória dos que ali viveram. Foi ali onde, pela primeira vez, eu vi um relógio de sol (que ainda está lá!), que meu cunhado me explicou, dizendo que “É o sol quem faz o tempo. À noite, sem sol, o tempo para!”. Fiquei com aquilo na cabeça, imaginando que quando dormia eu não envelhecia (durante muito tempo acreditei que as pessoas que não aparentavam a idade que tinham dormiam muito!).
Quando ouço, hoje, a música de Sá e Guarabira, Sobradinho, a verdadeira elegia que compuseram para o assassinato das cidades baianas engolidas pelo lago artificial (uma das músicas mais tristes que conheço de nosso repertório popular) e, com as águas do lago baixando em função da seca na região, as torres das igrejas desaparecidas retornando dos mortos, eu fico imaginando o que se passa na cabeça das pessoas que ali viveram e que embaixo d´água tiveram uma vida inteira engolida.
Ítalo Calvino, no perturbador As cidades invisíveis, em que Marco Polo fala ao grande Kublai Khan sobre as cidades que conhecera em suas viagens, narra uma delas, subterrânea, pendurada por cordas, em que, quando se coloca a orelha no chão, pode-se ouvir ainda o ranger e o bater de portas. Será que se eu colocasse o ouvido no chão, lá pelas bandas de Araripe, eu conseguiria ouvir o gemido das gentes e das memórias soterradas?
O professor e escritor Flávio Brayner. Foto: Divulgação
POR QUE EU ESCREVO?
Um leitor me pergunta “por que eu escrevo?”. Tentarei aqui uma resposta! Envelhecendo, eu disponho muito mais de memória do que de esperança, mais passado do que futuro e, na medida em que vou vendo “os degraus da escada se acabando e não posso mais retornar e subir”, resta-me o consolo de transformar esse desencanto em reflexão a partir de um ponto de vista de alguém que não se recusou a pensar e julgar o que viu. É o que faço nos artigos que aqui publico. Como professor, suponho que meus alunos esperem de mim algo mais otimista, como a fé numa vocação-para-ser-mais paulofreireana ou a hugoliana “Os melhores anos de nossas vidas ainda estão por vir!”, afinal, como se pode educar e simplesmente dizer-lhes que se preparem para o pior? Não é bem assim: sei que o que está terminando é um mundo e não o mundo e, certamente, esse que está chegando vai encontrar indivíduos adaptados às suas exigências, inclusive por causa da educação que receberão. Mas o que não posso fazer, porque não disponho da matéria interior, é promover antropologias positivas, otimismos sociais ou fantasias utópicas.
Isso significa que vejo minha contemporaneidade sob um tríptico que considero devastador: uma ética hedonista, o declínio da transcendência e a privatização da vida. A antiga noção moral de que certas qualidades tinham valor, quer dizer, por elas valia a pena, inclusive, arriscar nossas vidas, como a liberdade ou a dignidade, e que tinham um alcance universal, terminou substituída por outra, voltada para a felicidade privada e o prazer a qualquer custo, adaptada às sociedades de hiperconsumo. Em seguida, a falência de nossas utopias mais radicais, aquelas que supunham que o mundo poderia ser transformado pela ação de nossa subjetividade política consciente, esmoreceu e condenou os intelectuais à reclusão monástica da vida universitária. Quando aparecerá um novo Julien Benda que nos alertará para o desastre que pode significar essa aderência à facticidade da vida e a ausência de transcendência? E, como consequência, uma vida completamente privatizada e, ao mesmo tempo, aberta à visibilidade pública por meio das redes sociais de exposição e consumo de si, que aponta para o fim da ideia de espaço público e de democracia.
Escrevo porque é a única forma que conheço de me livrar de mim mesmo e para expressar minha indignação com estes tempos sombrios. Na ausência de esperanças redentoras, resta-me lembrar que a chegada de um mundo novo traz ganhos e perdas. Decidi fazer a agenda das perdas. A dos ganhos fica para os que virão depois de mim.
COMO ACABAR COM A LITERATURA
Quanto mais eu leio sobre teoria literária, menos compreendo o que é literatura! Para meu consolo, parece que minha ignorância tem o respaldo de ninguém menos do que Tzevan Todorov, ex-professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e que, num opúsculo esclarecedor, mostrou que uma das causas da morte da literatura está exatamente em sua didatização e sua teorização: aquela besteira pela qual todos passamos em que temos de preparar uma ficha de leitura, localizar a obra num estilo de época ou analisar um romance à luz de uma teoria... e todas estas coisas que minam a experiência estética que uma boa obra pode proporcionar.
Aceitei, por um bom tempo, a ideia dos formalistas russos (Viktor Chklóvski) da literariedade e da materialidade do texto literário. A questão estava em saber o “que faz um texto literário ser... literário, e não uma outra coisa?”, e a resposta, grosso modo, estava na sua capacidade de nos suspender dos automatismos do pensar, de nos surpreender por meio de uma sintaxe e de uma semântica que figuram o mundo e nossas experiências de uma forma inaudita, só possível pela linguagem literária. No entanto, nos anos 1930, Marcuse vaticinava o fim da literatura (e da arte em geral) numa futura revolução social bem-sucedida: se a literatura era crítica (do presente) e imaginação (utopia), numa sociedade reconciliada não precisaríamos nem de uma coisa nem de outra. Eis como a esquerda imaginava o fim da literatura (e da arte)!
Quando descobri a estética da recepção (Robert Jauss), introduzida entre nós pelo pernambucano Luiz Costa Lima, percebi que estava diante de uma verdadeira revolução copernicana que deslocava as questões tradicionais quem diz, o quê diz e como diz (autor, forma e conteúdo) para a questão crucial quem lê e como lê: o leitor passou a ganhar um foro privilegiado. Recai agora sobre as expectativas, a disponibilidade, a espessura social que separa o leitor da obra, os estímulos que recebe e, claro, o que ele faz com tudo isso (recepção pragmática, primária, secundária etc.) o interesse central sobre o literário. Historiadores como Roger Chartier e críticos literários como Alberto Mangel desenvolveram, a partir disso, estudos sobre a história da leitura: como os homens se comportaram diante da obra escrita, tanto física como espiritualmente.
Assim, se aprendi alguma coisa (e acho que aprendi!) foi isto: precisamos de literatura porque as linguagens de que dispomos (matemática, filosófica, científica) para exprimir e nos interpelarmos como indivíduos são insuficientes. Uma imagem resume tudo: a literatura é como acender um fósforo numa noite escura no meio de um deserto. Não ilumina grande coisa, mas tomamos consciência da escuridão em volta!
Li que os americanos estão tentando articular neurociência com literatura. O projeto é simples: a partir de ressonância magnética, pode-se averiguar que áreas do cérebro são ativadas por certas passagens da leitura de, por exemplo, um romance, produzindo sensações diversas (alegria, prazer, angústia etc.). Assim, as editoras podem encomendar aos autores livros que manipularão diretamente tais áreas cerebrais e que funcionarão como uma droga, viciando o leitor e produzindo altos lucros.
Nos anos 1930, foi a esquerda (Marcuse) que vaticinou o fim da literatura e da arte. Hoje é a direita neobehaviorista que vai realizar esse projeto.
ESCREVER BEM
Quando Freud visitou o cemitério parisiense de Père Lachaise, o túmulo de Ludwig Börne foi o único diante do qual se inclinou. Börne (1786-1837) era autor de um curioso texto chamado Como se tornar em três dias um escritor original, no qual aconselhava os aprendizes de escritor a anotarem durante três dias consecutivos, sem falsificação nem hipocrisia, tudo o que lhes passasse pela cabeça e (...) “ao fim de três dias, ficareis estupefatos ao verificar quantos pensamentos novos e que nunca tinham sido expressos jorraram de vós”.
Não sei se o método börneano produzirá resultados formais ou conteudísticos relevantes, caso se queira adotá-lo, mas o fato é que ando cada vez mais decepcionado com a qualidade da escrita tanto de alunos quanto de professores, cujos artigos, teses e dissertações povoam um sem número de publicações com ideias, não apenas longe de serem originais, como lavradas num vernáculo empobrecido e marcadas pelo apelo ao jargão e à frase batida, dessas que, mal se iniciam, já sabemos onde terminam e por onde passam, com as citações costumeiras dos autores da última chuva com vistas a um banal captatio benevolenciae.
Houve um tempo, nas Ciências Humanas, em que escrever bem era uma marca distintiva de autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Anísio Teixeira, Fernando Azevedo, Oliveira Vianna... E aqui não importa se concordamos ou não com suas ideias: o importante é que eles as tinham e sabiam como expressá-las.
No fundo, nós sabemos que quaisquer que sejam as regras, elas jamais farão pulsar um talento com estilo próprio e tendo algo a dizer. Mas talvez nem precisemos ir tão longe: bastaria que nossos universitários evitassem a citação vazia e pedante, as frequentes adverbiações (em que pontifica o incontornável efetivamente), o bordão pós-estruturalista do lugar de onde se fala (sem ter nada de relevante a falar!), as tentativas de dar um tom supostamente literário às suas teses e artigos, como se elas fossem a expressão escrita de uma vivência ou de um dilaceramento interno e não uma estratégia de aquisição de capital simbólico com vistas a uma eventual distinção (Sartre chamou isso de má-fé).
Se o clichê acadêmico é a figura por excelência de nossa crescente incapacidade de pensar e de escrever, ele não é fenômeno subjetivo: é institucional. É o próprio empreendedorismo acadêmico que impõe estratégias de alpinismo individual que não têm mais nada a ver com qualidade e relevância intelectual. Não tardará o dia em que mediocridade e arrogância serão seus critérios decisivos.
De resto, a quem interessar, existem três regras básicas para escrever bem. Mas ninguém sabe quais são!
SOBRE OS POVOS SOLITÁRIOS
Há 50 anos, na Praça das Três Culturas, na Cidade do México, 87 estudantes foram fuzilados pela polícia durante uma manifestação pacífica na onda do movimento iniciado no Maio parisiense. O escritor mexicano Octavio Paz, num pós-escrito que fez ao fenomenal O labirinto da solidão, afirmou que ali, naquela praça, se fechava um ciclo que se iniciara com a chegada de Cortés ao México no fatídico ano de 1519. A tese de Paz é a de que existem povos solitários, povos que foram abandonados pela história!
Os aztecas tinham uma concepção do tempo circular, muito característico das culturas agrárias e, assim, fechado um ciclo, o tempo voltava, não a um marco zero, mas ao início de um novo ciclo. Um deles fechava-se exatamente no dia 21 de março de 1519 quando, azar dos azares, Cortés invade o México com sua armada, para a completa desgraça dos astecas. Paz, que escreve seu pós-escrito em 1969 (A dialética da solidão), conclui que há povos destinados ao altar sacrificial da História: arrasados pelos espanhóis, tendo metade de seu território tomado pelos americanos (“pobre México”, dizia Cárdenas, “tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos!”), enfrentando uma guerra civil (1912), tendo a maior parte de seus líderes populares assassinados, sequência tipicamente latino-americana de cruéis e ridículos tiranos, estudantes fuzilados, um país agora dominado pelo tráfico, um presidente americano que quer murar a fronteira, como os nazistas fizeram com o Gueto de Varsóvia, enfim, um povo abandonado pelo seu próprio destino!
Mas nós, brasileiros, talvez não estejamos tão distantes destes povos solitários cujos destinos estão sempre nas mãos daqueles que os oprimem: foi assim com os índios, com os escravos degredados, com os pobres de Canudos, com os infelizes pernambucanos de 1817 e de 1824, com os desaparecidos da ditadura, com as lideranças populares que tentaram introduzir neste país um verniz de civilidade republicana, ou uma ligeira noção de universalidade de direitos, ou um suspiro qualquer de igualdade social, numa mais que perfeita mostra de que não temos elite, temos quadrilha no poder, nem classe dominante: temos milicianos travestidos de empresários e políticos.
Não acredito na inocência de ninguém: ninguém pode eximir-se de culpa num mundo como o nosso! Aprendi, aliás, com Graham Greene (O americano tranquilo) que “a inocência é uma forma de insanidade”, mas também estou longe de acreditar na imparcialidade de nossas instituições jurídicas. Não verei o futuro, mas temo profundamente que ele não passe de uma fastidiosa repetição do passado.
UM APRENDIZADO TARDIO
Fui um malandro incorrigível em minha educação musical. Filho de uma mãe (!) com formação francesa, na minha casa éramos obrigados a aprender francês e piano. Assim fui aluno, aos 10 anos de idade, do rigorosíssimo Edson Bandeira de Melo e de Clara Cavendish: pegava as partituras, levava para casa e pedia a minha mãe para tocá--las algumas vezes, aprendia de ouvido e as executava perfeitamente diante de meus mestres, dando-lhes a impressão de que estava lendo. Sem saber uma única nota! Passei a vida fazendo as pessoas acreditarem que conhecia alguma coisa da arte pianística: um charlatão! Sedutor, mas charlatão.
Meu filho Lucas, que é pianista, convenceu-me a retomar os estudos (agora sem malandragem) e, com meu atual professor — Miguel Iago — excelente e dedicadíssimo, venho tendo uma experiência algo inusitada: estou, aos 60 anos, aprendendo a ler! Partituras musicais, é verdade, o que poderia induzir algumas pessoas a suporem que se trata de um luxo. Mas isso não diminuiria a imensa dificuldade que comporta todo aprendizado tardio. Sou, para simplificar, um adulto analfabeto!
Gostaria que vocês soubessem, leitores — e porque são leitores, quer dizer, já iniciados na arte da leitura, provavelmente não imaginam tal sofrimento —, a humilhação, a dificuldade, a desesperança, a baixíssima autoestima que assalta todo aquele que na idade certa não aprendeu a ler ou decifrar códigos complexos, independentemente de se tratar do alfabeto ou de partituras: saio exausto de uma simples aula em que tenho de ler e tocar cinco tocas! E não estou falando aqui nem de usos sociais da escrita, de consciência metalinguística ou de interpretação de um texto: trata-se de simplesmente dizer o que está escrito.
Fiz doutorado e pós-doutorado em Paris, tenho consciência de ser um professor decente, quer dizer, não desonrei minha profissão, mas nunca imaginei que ao tentar me iniciar numa nova alfabetização (musical) eu iria sofrer tal infantilização, infantilização que, como educador, só enxerguei nos outros — os adultos analfabetos —, que sempre tomei como objetos de pesquisa, temas para discursos teóricos ou para artigos acadêmicos.
Junto-me, assim, solidariamente, a todos aqueles adultos analfabetos de quem tanto falei em minhas aulas de Educação Popular, sobre quem eu tanto teorizei, sem ter a menor ideia do que estava falando...
Que arrogância!
DECOREBA
“Matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias”; “O quadrado da hipotenusa é igual a soma do quadrado dos catetos”... Fui obrigado, na escola, a decorar estas frases (que repito até hoje com uma impostação erudita!) sem jamais tê-las compreendido. A minha geração passou pelo método da decoreba que, hoje, qualquer educador considera inútil e sem relevância para a vida. Mas a disputa em torno da validade da decoreba é muito mais antiga e data da época de Montaigne e de Descartes (século XVI).
Na verdade, apprendre par coeur (aprender de cor) significava, na tradição pedagógica que adentrou a modernidade, uma forma de se relacionar com o saber que ia além do puramente cognitivo: exigia paixão, emoção e era sinônimo de cultivo da alma, instrumento de distinção intelectual e social. O objeto privilegiado eram os textos do classicismo greco-romano (Cícero, Hesíodo, Sêneca, Ovídio, Epicuro...) e decorá-los era uma forma de trazer o passado dentro de si, a partir do que se poderia partir para a vida: saber o que foi dito e pensado antes de você — e sabê-lo de coração — era expressão de reverência com a autoridade dos antigos e de responsabilidade com a continuidade do mundo. Até que chegou a modernidade e a sua desmoralização do passado!
Descartes via a infância como um escândalo: destituída da razão, a infância nos impedia de adquirir desde cedo a capacidade do julgamento racional. Assim, a educação deveria ser voltada para o rápido abandono da infância (tornar-se adulto) e, para apressar o processo, as crianças poderiam começar por imitar os adultos, decorando frases, mesmo que incompreensíveis para elas: Descartes era o anti-Rousseau. Já Montaigne, que conhecia a tradição clássica de cor, achava que mais valia uma cabeça “bem feita” (capaz de refletir sobre a vida como quem faz uma experiência, um ensaio) do que uma cabeça cheia (de coisas inúteis). Quando a modernidade alterou nossa relação com o tempo, depositando no futuro a realização da utopia, nossa visão do passado também se modificou: repetir o passado (e seus clássicos) sem pensar era, além de irracional, um empecilho ao progresso do espírito.
O curioso é que chegamos à contemporaneidade com um problema: não decoramos mais, porque desautorizamos o passado de sua exemplaridade (e dispomos de tecnologias de memória), e a cabeça ficou cheia de informações inúteis que a internet proporciona, sem que tenhamos os critérios (a cabeça bem feita) para julgar o que serve e o que não serve.
FLÁVIO BRAYNER é professor titular aposentado da Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em História (UFPE), doutor em Educação (Paris V) e pós-doutor em Filosofia (Paris VIII). Foi professor convidado da Université de Montpellier III e ex-secretário adjunto de Educação do Recife. É autor de vários artigos e livros na área da Filosofia da Educação e da Educação Popular.