Um legado de invenção artística e tradições
Leia trecho da biografia 'J. Borges – entre fábulas e astúcias', obra lançada pela Cepe Editora na Coleção Perfis
TEXTO Maria Alice Amorim
02 de Setembro de 2019
O xilogravurista Jota Borges
Foto Maria Alice Amorim
[conteúdo na íntegra | ed. 225 | setembro de 2019]
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O SENHOR QUE É J. BORGES?
OU UM DIA QUALQUER NA ROTINA CORRIQUEIRA
memórias são ativadas
com a visita e as perguntas
de um jovem admirador
Com atitude franca, direta, chega um jovem adulto, coloca o rosto no entreaberto postigo da porta principal do Memorial J. Borges, pede licença, quer saber se pode entrar e entra. Dirige-se ao anfitrião já perguntando. Passa das 11 horas. O visitante, recifense, vive em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. A esposa é de Garanhuns, agreste pernambucano. Isso a gente fica sabendo depois, no desenrolar da conversa. E é nessa primeira sala, em que se encontra o artista naquele momento, que acontece todo o papo. Salão espaçoso, onde se pode apreciar pelas paredes gravuras impressas e emolduradas, diversas também sem moldura, tacos de madeira pendurados ou sobre estantes, prateleiras e outros móveis. Tamanhos diversos, os das matrizes, tanto pintadas somente em preto, ou coloridas, e ainda muitas gravurinhas, tacos em miniatura, tudo aleatoriamente espalhado pelas prateleiras e, principalmente essas pequeninas, vendidas a preços módicos. Livros de J. Borges e sobre J. Borges. Blocos de notas com capa em xilogravura. Todo o material ali, para ser manuseado, deliberadamente acessível à apreciação e escolha de cada freguês, potencial comprador nem que seja de um mimoso bloquinho feito de aparas de papel encadernadas em espiral plástico e encapado com reprodução colorida de alguma obra do mestre. E com direito a pedir que assine e autografe.
O Memorial J. Borges é um misto de museu, galeria de arte, loja de souvenir. Foi inaugurado em dezembro de 2003, no aniversário de 68 anos do artista, mesmo ano em que morreu a ex-mulher, ou esposa do segundo casamento, e em que resistiu a um infarto. Está situado na cidade de Bezerros, à margem da BR—232, e à esquerda de quem segue na direção Recife/Caruaru. O terreno, de grandes proporções, onde foi construído o espaço cultural, é circundado por muros adornados com reprodução, em tamanho ampliado, de vários desenhos do mestre. Paisagem nordestina, pássaros do sertão, sol enorme e com aspecto de sol escaldante, retirantes, cactos, ícones da nossa cultura sertaneja enfeitam aquele oásis em meio à paisagem agreste e quase despida de vegetação. No mural, em letras grandes e legíveis, de longa distância podemos avistar o letreiro identificador do Memorial, os números de telefone para contato e pedido de informações, mais um letreiro em destaque central indicando que ali funciona o Museu da Xilogravura. Dentro do terreno, encontramos à esquerda a residência de Borges, à direita a residência do filho Pablo — ambas evidentemente não disponíveis à visitação pública — e, no meio, os ambientes de oficina, museu, biblioteca e exposições. Sim, porque a proposta do Memorial, como o próprio nome evoca, é também oferecer aos visitantes exposições das obras, de objetos pessoais, fotografias, acervo bibliográfico com publicações de autoria do artista, sobre o artista. Ainda compõe o acervo títulos diversos da biblioteca particular, especializada, sobretudo, em letras e artes, e que vem sendo constituída há décadas por Borges, em intercâmbios artísticos, viagens, feiras literárias e múltiplos eventos culturais. Nos fundos da construção, incluído na área murada do terreno, há a oficina de carpintaria e o depósito de matéria-prima, a madeira, além de um campinho de futebol para as partidas amistosas a cada final de dia. Filhos, amigos e parentes curtem o bate-bola na hora do lusco-fusco, a luz mais bonita, que é para zerar o expediente, pois ninguém é de ferro. Quem circula pela autoestrada de longe consegue visualizar onde Borges vive, trabalha e recebe os visitantes.
A visita vem até a mesa onde Borges está sentado, conversando comigo. Aborda o dono da casa com gestual e palavreado que se equilibra entre reverência, simplicidade e fascinação.
— Posso lhe fazer umas perguntas?
— Sim, claro, responde Borges, com presteza e nenhum sinal de aborrecimento.
— Sempre que venho ao Recife fico encantado com a riqueza da xilogravura, principalmente a forma como é feita. Aprecio as artes, levo algumas, presenteio uns amigos. Mas não conhecia o artista, nunca tinha visto. Então vim conhecê-lo, pessoalmente.
A partir dessa introdução sem pudores de admirador assumido, vai perguntando, pra começar, há quanto tempo Borges trabalha com xilogravura. O tipo de pergunta que, à primeira vista, soaria como ingênua, considerando o fato de que o artista há décadas é conhecido mundialmente e que é possível aprender muito e obter uma infinidade de informações com ele próprio nos inúmeros vídeos postados na internet etc. etc. Nesse cenário, o mais encantador é que Borges, como todo bom sagitariano vaidoso e cheio de si, não se cansa de responder o que inúmeras vezes tem repetido, a diversos tipos de público, diante de câmeras fotográficas e filmadoras, gravadores de áudio e vídeo, lápis e canetas em estado de frenesi. Borges, contente consigo mesmo, vai então falando pausadamente, com entusiasmo, sobre tudo o que o jovem quer saber, recordando primeiramente que em 1956 iniciou-se na vida artística, no universo cultural do cordel e xilogravura.
— Eu estava com 21 anos. Primeiro comecei com o cordel e depois que eu escrevi o primeiro cordel precisei ilustrar, mas não tinha quem ilustrasse.
Borges na sua gráfica-ateliê, em Bezerros, entre 1972-1974.
Foto: Arquivo J. Borges
Sem roteiro predefinido, o rapaz vai lançando perguntas. Está visivelmente satisfeito com a chance de conhecer o artista em carne e osso e, mais ainda, com a sorte de poder trocar ideias, de poder ouvi-lo, conversar com ele, fazer comentários, tirar dúvidas.
— O senhor é natural daqui de Bezerros?
— É, sempre morei aqui, foi.
A justificativa que dá para o fato de ter vivido praticamente toda a vida na mesma cidade em que nasceu vem logo a seguir, com explicações acerca da trajetória criativa, do sucesso artístico e profissional.
— O clichê pra se fazer no Recife era muito dispendioso. Criei uma gravura, lixei a madeira, imprimi, levei na gráfica, o rapaz fez uma cópia, disse dá para imprimir. Fiz a segunda, a terceira, e daí continuei até hoje. Há sessenta anos que trabalho nisso.
— O senhor é bem-visitado aqui?
— Muito visitado, sim. Teve um pessoal de São Paulo que chegou aqui em novembro (2017), e tinha no meio umas mulheres compridas, brancas, do cabelo amarelo. Tinha uma brasileira no meio. Chamei a brasileira e perguntei: são da Alemanha? E ela me respondeu: não, elas são da Oceania. Uma arranhava português, veio aqui, falou comigo e disse “tem gravura sua em mi casa”, ainda comprou 10 gravuras para dar de presente. Imagine, tenho gravura minha nas casas da Nova Zelândia!
Aqui, quando fala da Oceania, Borges faz questão de mostrar que é curioso nato. Foi pesquisar sobre geografia e deixou claro que sabe onde fica o menor continente do mundo e os países nele situados. E quando imita a estrangeira que tentou papear com ele, primeiro morre de rir e depois repete, com ar cômico, a frase da neozelandesa, reproduzindo um sotaque de português meio espanholado. Riso geral.
— Me diga uma coisa, esse trabalho é que é interessante, o senhor esculpe na madeira, não é? Como é que é o trabalho, o senhor faz e depois utiliza uma prensa?
— É, sim, a gente passa a tinta e depois imprime. Tem o carrinho e tem a prensa. Na prensa só imprime as gravuras pequenas.
— Esses instrumentos, o senhor usa aqui, ou não?
— É, lá atrás é que ficam as impressoras. Quer ir ver? Dá para ver como se faz. Pode ir, fique à vontade.
Movido pela curiosidade de quem quer entender, nem que seja um pouco, cada etapa do processo criativo de J. Borges, o entrevistador vai despretensiosamente ao segundo salão, ao fundo, e atravessa o portal de acesso entre as duas salas amplas. O segundo ambiente dá a impressão de ser mais espaçoso. O cheiro forte de tinta atiça os sentidos. Só não chama mais atenção do que o colorido impregnado nas paredes, nas mesas, na roupa, nas mãos, dedos e unhas dos assistentes de ateliê. Borges reina soberano, trabalhando em qualquer um dos ambientes, dependendo do que esteja executando no momento. Se a obra é grandiosa, requer espaço para expansão. Assim é o passo a passo de autor que se exprime com a mesma vitalidade no micro e no macrocosmos das miniaturas e das obras em grande dimensão. O jornalista incidental vislumbra, pois, um grande salão, onde as gravuras são impressas. Vê a prensa manual. E percorre o ambiente onde ficam diversas mesas, pelo menos oito entre grandes e pequenas, para o serviço de acabamento nas cópias impressas das matrizes. Pelas mesas encontramos algumas gravuras em processo de impressão e retoque. Carnaval da Chiquita, encomenda do Rio de Janeiro.
Árvore de Zezinho e Turibio, pedido do Recife. O trabalho de Borges não é, de jeito nenhum, um trabalho solitário. Fica evidente pela quantidade de mesas, cadeiras, potes de tinta e pincéis, cópias em processo de acabamento e/ou secagem. O olhar entusiasmado da visita percorre cada textura, a harmonia das cores preparadas por Dedé, cunhado e um dos principais assistentes de ateliê. O salão está silencioso, vazio de pessoas, porque o horário era intervalo de almoço. Mas a disposição das ferramentas permite vislumbrar que tarefas são partilhadas em esforço coletivo. Mais especificamente, partilhado entre filhos, noras, neto, primos, cunhado, enteados. E nessa distribuição de tarefas, sinfonia de cores e texturas, alguém necessita pensar o todo e exercitar o espírito de liderança, para que a demanda contínua harmonize os ritmos a cada dia. E que o regente da orquestra não se canse, nem se esquive do posto.
O universo telúrico do artista está sempre presente em seus trabalhos.
O repórter eventual se volta para Borges, no primeiro salão, após o tour exploratório. Depara-se, entre entusiasmado e boquiaberto, com estantes-mostruário abarrotadas de estoques e estoques de folheto de cordel, em que é possível ver a capa e ler o título de cada livrinho. História de João da Cruz, escrito por Leandro Gomes de Barros. Romance do Reino do Mar-Sem-Fim, da autoria de Severino Borges Silva. As palhaçadas de Pedro Malazarte, do poeta Francisco Sales Arêda. O rapaz que casou com uma porca, do poeta-repórter José Soares. História de Zezinho e Mariquinha, do cordelista Silvino Pirauá de Lima. Muitos títulos clássicos, de autores clássicos, xilogravuras de capa feitas por Borges, todos impressos e publicados na Cordelaria de J. Borges, cujo parque gráfico atualmente se encontra desativado. Estava lá nas prateleiras, inclusive, uma edição do folheto de Borges em que aparece a primeira xilogravura de própria autoria, feitos — poema e gravura — em 1965: O verdadeiro aviso de Frei Damião sobre os castigos que vêm. Em meio a todas essas preciosidades, um livrinho chama imediatamente a atenção do garimpador contumaz.
— Estou vendo esse cordel com Ariano Suassuna. Certamente o senhor conheceu ele, se encontrou com ele muitas vezes.
— Sim, o Ariano era uma pessoa que eu devia muita homenagem a ele. A gente era muito amigo e eu tinha intimidade com ele. Eu dizia para ele, não me endeuse, não. Você gosta de me endeusar em todo canto. Ele dizia Borges, eu não estou endeusando, não, eu estou dizendo que você é o artista que você é. Eu brincava muito com ele e um dia eu fui para a casa dele, levar o Ariano meu, porque eu tenho um filho com o nome dele. Nesse tempo, ele trabalhava na secretaria do município, ali na Praça Abreu e Lima, ele mandou me chamar lá para saber dessa história. Borges, chamei você aqui porque gosto de conversar com você e também porque queria saber se é verdade que você botou meu nome num filho seu. Eu disse foi real. E se você ficar chateado, não tem mais como desmanchar porque eu já batizei. E então ele perguntou eu quero saber porque você escolheu, e eu disse é para ficar lembrando de você todo dia. Ele me abraçou e disse para mim é a maior honra do mundo, não é pelo nome, é pelo motivo. O Ariano legítimo, verdadeiro é o Ariano Suassuna, e o meu é o Ariano peba. Eu disse isso numa época e alguém botou numa revista. Agora o Ariano meu já está grande, está com 40 anos. Quando ele tinha 15 anos, levei ele na casa de Suassuna e, quando terminamos de comer, ficamos conversando com ele na mesa. Lá pelas três da tarde, eu disse assim Ariano, eu já vou, já tomei muito o seu tempo. Ele disse de jeito nenhum, gosto muito de conversar com você, para mim é uma aula. A gente já estava de pé e eu disse pois pode sentar de novo para me explicar porque é uma aula. Faço questão que você me explique. Porque, Ariano, você é formado, é professor de universidade, teatrólogo, um grande artista, um grande escritor. Agora eu, que nem estudar, estudei, e você diz que aprende alguma coisa comigo? Ele respondeu olhe, é certo, me criei dentro de colégio, depois dentro de universidade, hoje sou professor da Universidade Federal de Pernambuco, e o meu vocabulário é outro, mas o vocabulário que eu gosto é o seu, o do interior, o do cordel, o do matuto. Gosto de ouvir você, e daquilo que eu gosto eu ouço com muito prazer e dali aprendo alguma coisa. Além de ser tão bem-formado, é besta também, eu disse. Ele riu.
Rafael Borges, filho do xilogravurista, desde pequeno, assim como os outros irmãos, frequentava o ateliê do pai. Foto: Arquivo J. Borges
Borges dá uma pausa, como que ponderando sobre o peso da saudade, certamente pensando o quanto seria bom que Ariano ainda estivesse vivo. Sim, o amigo-irmão e mestre Ariano Suassuna (1927-2014), a quem J. Borges sempre fez questão de identificar como o “meu padrinho de arte” desde o início da década de 1970. Não por acaso, 18 de outubro de 1970 é a data de lançamento do Movimento Armorial, idealizado por Suassuna, e cujos preceitos estéticos apontam para uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular. E, para além disso, desde a década anterior Ariano era membro-fundador dos Conselhos Estadual e Federal de Cultura.
— Ele depois foi adoecendo, adoecendo. Liguei para o filho, Dantas, pedindo notícias. Quando quebrei o fêmur, e fui hospitalizado e operado, ele inda ligou dizendo que se eu precisasse de alguma coisa era só pedir. Mas eu não precisei, e quando recebi alta do hospital, ele faleceu na mesma semana. Estava operado da perna não fazia um mês, não podia andar. Era muito carro, muita gente. Então não fui para o velório. Estava ainda em recuperação, a operação estava muito recente. Preparei uma carta com os meus sentimentos e a minha nora colocou no e-mail. A família respondeu, agradeceu. Faleceu Ariano e eu digo assim, tão rápido, porque, de acordo com o que ele era, ele ajudava muito. Não precisava dar nada a ele, bastava ele saber que a pessoa era boa em alguma coisa, ele ajudava. É o meu caso. Ele disse que eu era bom, me ajudou muito e eu agradeci. Aí escrevi o cordel, botando Ariano com os outros amigos dele que já faleceram, inclusive o filho Joaquim Suassuna. Saiu agora um livro novo de Ariano, colocaram sete gravurinhas minhas e me pagaram 2.100 reais. Já tinha dito a Dantas, pode botar, as editoras me pagam geralmente 500 reais.
O livro novo de Ariano Suassuna, recém-lançado, e que Borges menciona, é o Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores, publicado em 2017 pela Nova Fronteira. As xilogravuras de J. Borges ilustram o volume I do livro, intitulado O jumento sedutor, e a temática das “sete gravurinhas” gira em torno da tragédia de Romeu e Julieta.
Após a louvação a Suassuna, Borges comenta com o visitante, morador do Mato Grosso do Sul, que um dia foi convidado para dar palestra naquele estado, entretanto não tinham dinheiro para fazer jus ao cachê. Borges, cioso da relevância cultural e monetária da própria obra, recusou.
— Não tem como me pagar? Pois então fique aí, que eu fico aqui.
A visita, satisfeita com o passeio daquela manhã, e preparando, então, o ritual das despedidas, me pediu para fazer fotos dele com o xilógrafo e a família. Solicitou gentilmente para J. Borges assinar todas as gravuras adquiridas e colocar, inclusive, o nome da cidade de Bezerros e o registro da data de visita e aquisição das obras. Borges, claro, obedeceu ao pedido do fã e, explanando enquanto assinava, acrescentou uma informação bem didática, com ares de vaidade comedida.
— Já escrevi 316 cordéis, o último que escrevi foi esse daqui, falou apontando para o folheto-homenagem A chegada de Ariano no céu.
— Qual o que o senhor mais gosta?
— Sabe que eu não gosto de nenhum e gosto de todos?!
Ao declarar isto, Borges arrancou risadas de todos os presentes.
— O último foi esse, o de Ariano, complementou.
Textura, movimento e composição dão harmonia à obra em
preto e branco. Imagem: Dominique Berthé
Borges sugeriu o ângulo da fotografia, para evitar contraluz.
O visitante perguntou:
— Aceita cartão?
E, logo a seguir, exultante, completou o discurso de agradecimentos com uma declaração que certamente Borges ouve com frequência e, no entanto, imagino que seja sempre um acréscimo ao repertório de cotidianas alegrias.
— O bom de comprar essa arte é conhecer o artista, porque você vai num mercado e não conhece quem fez. Pois é interessante também conhecer a forma de fazer. É trabalhoso. E tem a verdadeira arte.
No meio do papo com o fã, que chegou a comentar ter adquirido trabalhos de Borges, anos anteriores, em alguns locais do Recife, o artista aproveitou para enfatizar que não coloca trabalhos à venda na Casa da Cultura, porque ali a prestação de contas não é ágil. Nos anos 1990, deixava, em consignação, material com os comerciantes locais. Borges e também o irmão xilógrafo, Amaro Francisco. Após algumas experiências de falta de pagamento, declarou, então, em entrevista a um dos jornais do Recife, que “o pessoal lá quer enricar nas costas dos artistas, pega a mercadoria, bota dois preços em cima, vende e sonega de pagar ao artista”. Borges se posiciona com firmeza, quando o assunto é dinheiro e suposta esperteza de comerciantes e atravessadores de obras de arte. Sobre o fornecimento de obras, periodicamente encomendadas para revenda, esclarece que o único local em que ainda coloca gravuras para vender no Recife, atualmente, é a Central de Artesanato, no Marco Zero, onde a prestação de contas é rápida e honesta. A propósito dos pedidos para esse estabelecimento, certa vez testemunhei, num final de tarde, o esforço coletivo realizado no segundo salão do Memorial para que fosse cumprido o prazo de entrega de 300 gravuras, em três diferentes tamanhos, àquela central de artesanato. O ritmo de trabalho da equipe acelerou-se durante todo o dia e, ainda assim, foi preciso entrar pela noite, ensacando as gravuras, uma a uma, após receber data e assinatura do artista. Ofereci-me para colaborar e participei do mutirão. Na manhã seguinte, bem cedo, o pai, J. Borges, e o filho, Pablo Borges, desceram para a capital pernambucana e deram conta da venda das obras. Durante o serão, o ambiente de trabalho lembrava as descrições de funcionamento das medievais corporações de ofício, oficiais e aprendizes solícitos e atentos em volta do mestre, líder no ofício e dono da oficina.
O pássaro retratado por Borges aparece em muitas expressões
do folclore americano. Foto: Dominique Berthé
E é em meio ao papo animado que, no interior da oficina, o mestre mais uma vez é reverenciado pelo turista acidental, o qual se mostra agradecido e vai iniciando as despedidas.
— Seu Borges, muito obrigado. Satisfação em conhecê-lo. Voltaremos outras vezes.
— Já vai embora para Campo Grande?
— Vou para Garanhuns, ficar um dia lá. Amanhã é que vou para Campo Grande.
— Me deixa com inveja, porque sou gamado em Garanhuns.
— É uma cidade muito boa, não é?
— É, sim. Nos anos 1960, eu era ambulante. Estava de semana em semana em Garanhuns. Ainda arranjei namorada lá. No ano passado (2017), era 2 de janeiro, amanheceu o dia, eu disse Pablo, levanta que hoje vamos almoçar longe. E tem que ser agora, senão não dá tempo. Ôxe, o senhor enlouqueceu, foi? Quando chegamos em São Caetano, Pablo perguntou onde é mesmo que a gente vai almoçar hoje? Entre aí. Entramos num viaduto e quando passou um posto ele disse não diga que a gente vai para Garanhuns, não. E é pra lá que a gente vai, eu disse. E ele ficou muito contente, ainda não conhecia Garanhuns. É uma cidade bonita e gostosa, e fria, muito bom o clima. A primeira praça é a praça do relógio, estava enfeitada de vermelho e branco, eu fiquei logo doido.
— O senhor é Náutico, é? Eeeeiiitaaa.
— Sou Náutico doente. Vermelho e branco. Aí tirei foto, tinha um bar, enchi logo a cara no barzinho. Meu menino era o piloto, não podia beber. Depois, fomos para um restaurante, almocei, tomei duas garrafas de vinho, me embebedei. Sentei no carro, eu disse e agora? Quando chegamos na entrada para cá, disse por aqui não, é por ali. Pablo disse é não, pai, é por aqui. Eu disse vá por aqui, nós vamos é por São João, faz 45 anos que eu passei naquela área. São João, Angelim, Canhotinho, Quipapá, era meu caminho de feira quando eu ia para Garanhuns. Morava em Escada, subia por ali. Passamos, as cidades cresceram demais.
— Nessas também tinha feira pra vender cordel?
— Tinha, tinha. Todas elas tinham.
— O senhor conhece São Benedito do Sul?
— Conheço.
— É a terra dela.
— Não diga! Eu feirei em São Benedito, ainda era vila. Depois passou a cidade e o primeiro prefeito, quando eu fui lá pra feira um dia e armei meu alto-falante, com pouco chegou um rapaz com um papelzinho na mão. Esse papelzinho o prefeito mandou... Quando falou nisso, eu disse logo já sei, esse papelzinho é para me proibir de trabalhar. O homem disse o prefeito disse que o senhor fizesse esse anúncio, a prefeitura paga para o senhor anunciar. Nesse tempo o prefeito tinha recebido verba para comprar vaca para o povo que vivia nos sítios, os pais de família que tinham filhos, uma vaca de leite. Era um anúncio pedindo que fossem na prefeitura fazer o cadastro, de instante em instante eu anunciava. Quando foi meio-dia chegou o rapaz e disse olhe, o prefeito está ali no bar e ele quer falar com o senhor. Eu disse estou quase largando. O sol quente de rachar, era doze e meia, mais ou menos, eu fechei, fui pra lá, ele me abraçou, disse rapaz, você fez um trabalho muito bacana, muito bacana. Vai almoçar com a gente aqui. Eu disse não, não precisa, não, eu vou para Quipapá. Você almoça com a gente, ele disse. Depois perguntou toma alguma coisa? Sim, tomo, eu disse. Tomo água, tomo café, tomo cerveja, tomo uísque. Ele disse você quer uma dose de uísque? Eu disse claro, com um calor desse eu vou logo pelo mais quente, pra competir. Dose de uísque, tira-gosto, carne assada, saiu o almoço, comemos, tomamos cerveja. Saí de lá três horas da tarde, ele me abraçou, disse venha domingo de novo pra anunciar. E quanto é o seu trabalho? Eu disse prefeito, depois de uma festa dessa eu ainda lhe cobrar? Eu disse que ia pagar, vou pagar, não sou eu que vou pagar, é a prefeitura. Era o primeiro prefeito. Ele me pagou, pagou 20 mil cruzeiros, mais ou menos o dinheiro que apurei na feira foi o que ele me deu. Ele disse tome o dinheiro. Eu disse não precisa não. Era um pacotinho todo de notas de cinquenta, ele disse tome e empurrou no meu bolso, dizendo domingo venha de novo, a gente almoça junto. Até hoje não fui mais.
Após a impressão, o artista assina cada uma das suas xilogravuras.
Imagens: Dominique Berthé
Carlos, o curioso entrevistador-visitante, se despede e vai embora com a mulher e a filhinha de colo, deixando Borges ainda mais afiado nas histórias que tanto gosta de repetir, assim como o bordão que sempre usa nas despedidas aos visitantes.
— Nós já vamos. Até mais.
— Boa viagem, saúde e gordura.
Daí em diante nosso papo se multiplica em memórias por mais uma hora e meia, em pleno intervalo de almoço na rotina de uma segunda-feira, a semana apenas começando. A mesa posta, flores, frutos, balaio de maxixe, cabra, a jia da lagoa, o pavão misterioso, o homem da vaca. Olhos, ouvidos, todos os sentidos deliciando-se com o frescor da conversa bem-temperada. Em justa medida sonho, romance, drama, peleja, sal, pimenta, especiarias.
MARIA ALICE AMORIM é jornalista, escritora, pesquisadora e doutora em Comunicação e Semiótica (USP). Há anos, dedica-se ao estudo e pesquisa da cultura popular. É autora do livro Pelejas em rede – Vamos ver quem pode mais, fruto da sua dissertação de doutorado, na qual estudou a presença das pelejas, cordéis e desafios dentro do ambiente virtual.