Telepata e comunista, ele conta sua história
Leia trecho de Fortaleza, romance de estreia de Luciano Brito, publicado pela Cepe Editora
01 de Outubro de 2021
Fortaleza tem como personagem central o comunista, religioso e telepata Celestino X., nascido em Hevqué, no Ceará, em 1942, que, aos 77 anos, decide contar a própria história
Ilustração Pixabay/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed.250 | outubro de 2021]
1 - As linhas
Esta vai ser a minha história, que somente eu posso contar e não um outro que não eu. Pela primeira vez vou contar pois já vira um sonho nas mãos de Deus e de Jesus Cristo. Ai de Marx, dos extraterrestres, de mim. Da minha esposa amore mio, dos meus irmãos, filhos e netos; essas almas se tornam rarefeitas num sonho, vão retornar ao magma em que se nivelam. Posso contar depois de ter feito muitas versões, partes e proliferações, de ter visto a história mudar com os anos, porque desconfiava que há vidas paralelas, que nada começa e que estamos aqui de passagem. Antes, tinha vergonha de falar e gaguejava no momento da vergonha, não deixava a pontuação na minha fala ser como é; ou, me sabendo culpado, acabava não falando. Mas aqui onde cheguei, longe e do outro lado da desolação, a palavra sai serena da minha boca, cai no mundo contida e natural. Cada frase é uma semente levada à terra pela gravidade. E foi muito tempo até poder falar assim, simplesmente. Talvez quando eu tiver contado dessa vez, que é uma nova vez, a minha história vai virar o sonho no qual eu vou entrar. E a alma transparente, linho branco visto de perto, aberta nos intervalos de ar entre os fios, será uma emanação. Será a história do que vivi, um pesadelo que deixou de ser um porque é um esplendor de energia. Meu Deus. Muitos duvidaram do que eu acatei; não sabiam que nasci com o dom da telepatia, que vi estrelas cadentes e discos voadores. Eu que, há muitos anos, tinha entendido que esse é um mundo de mentira, sob a lei dos advogados da mentira. Eu que li em silêncio todos os poetas brasileiros, beijei na testa os garçons e os taxistas do Nordeste e de Moçambique. Benzi como pude (é que não sou padre) lavadeiras e vendedores. Dei comida às crianças que vi na rua. E vou hoje, um dia lindo e calmo, contar como vi o rosto do Senhor diante de mim, e que foi o meu encontro com a verdade.
O que sou agora: corpo ou luz? Ou corpo virando luz? Linho branco se desmaterializando. Preciso dizer ainda que não tem nada de errado em ter sido comunista, acho, fui comunista, acho, andava pelas ruas de Fortaleza nos anos setenta com uma barba que lembrava os que queriam acreditar numa vida compartilhada, em vidas que se nivelam, aos quase trinta anos naqueles dias tinha descoberto que não era mais nem menos importante que os outros. Achava que se os homens tivessem barba as diferenças entre os rostos seriam menos visíveis, estaríamos visualmente mais próximos uns dos outros como os cachorros de uma espécie são. Isso era o que pensava, e a minha mulher, Lya, achava charmoso mas errado, porque ela não podia deixar crescer nenhuma barba e porque também queria acreditar numa vida comum. Quando eu era para ela mais charmoso que errado, ela me chamava de amor meu, amore mio eu era. Que cafona, meu Pai. Mas quando eu era mais errado que charmoso ela me chamava pelo nome:
“Celestino, se quer usar barba, que use. Mas não venha pra cima de mim com esse papo de merda, por favor”.
“Celestino, estou pasma.”
“Celestino. Pelo amor de.”
Ela, que eu amo, gargalhava forte e não percebia que eu estava engolindo lágrimas. Desde pequeno não me acostumei a não ser ouvido, a falar e não ser levado em consideração, eu me encolhia e voltava a gaguejar ou acabava não falando mais. Não sei mais o que fui: substância ou sonho? Tendo sido ou não comunista eu acredito em Deus, no Espírito Santo e na reencarnação dos homens e dos animais, de humanos para animais, de humanos para humanos, tanto de homens para mulheres quanto de mulheres para homens, de animais para animais e de animais para humanos e extraterrestres e de extraterrestres para humanos e coisas. Aquele que terá passado a vida flutuando de um ponto a outro, como passei, não verá contradição no que digo. Foi com o tempo que cheguei a essa serenidade, insisto nisso porque agora é a minha vez de falar e porque não preciso mais de palavras emprestadas.
Não fui sempre sereno. Não como sou agora aos setenta e sete anos, quando sou e não sou casado, pois não fomos nós, a mulher que amo e eu, que nos casamos na igreja. Foram as décadas que nos casaram, que Deus me perdoe por isso também. Temos cinco filhos, seis netos e doze crianças apadrinhadas na Mansão Solar. Quis ajudar as crianças doentes e os mendigos. Quis salvar os índios. Se pudesse, acolheria os constrangidos e deformados que sofrem, não haveria mais sofrimento que não pudesse ser anulado pela minha ação. Naqueles anos, já tinha começado a me vestir apenas de branco: com essa cor me sentia mais perto de Deus. O branco do linho e a translucidez entre os fios compunham os raios ópticos da minha desrealização na direção da realidade. Naqueles anos, já sabia que era telepata. Antes dos trinta, seguia sem saber, era doloroso receber as informações psíquicas do mundo. Mais doloroso porque, como acabei de dizer, não me acostumei a não ser ouvido. Então quando queria falar do que ouvia, não porque queria dedurar os pensamentos das pessoas, eu não sabia de onde aqueles pensamentos vinham, só sabia que não vinham de mim.
Não sabia o que eram os meus pensamentos, a minha vida mental flutuava numa atopia morna e vasta; num mangue indiferente, sem fim e sem poesia. Então, quando queria falar do que ouvia, e esboçava uma sintaxe a partir da ausência que era essa vida mental e a partir das frases externas que essa ausência absorvia involuntariamente (pois a minha pele, os tecidos sob a pele e a matéria óssea craniana eram membranas finas inchando, por osmose, do turbilhão de neurônios infrafísicos que vinham de fora), as pessoas não reagiam bem ou não reagiam simplesmente. E antes que reagissem mal ou indiferentemente, eu também já sabia, porque a velocidade com que a minha telepatia funcionava, sendo feita de luz e não de consistência, era mais rápida que os nervos que moldam as expressões humanas. Por isso também sabia, desarticuladamente, que as pessoas não iam acreditar em mim nem me ouvir. Antecipando o duplo transporte telepático, começava a sofrer. E sofrendo não poderia ser sereno.
Era melhor me afastar e ficar sozinho. Era mais confortável ir aonde não houvesse pessoas para me revelar involuntariamente o que a parte desmaterializada do meu cérebro absorvia. Porque quando estava rodeado de humanos, acabava triste ou com muita raiva por ser incapaz de examinar minimamente o que a minha mente fazia. Por ser incapaz de examinar as circunstâncias que faziam com que essa aptidão, tida como uma deficiência, não pudesse se transformar numa potência ou num portal iluminado. Ninguém entendia por que eu me entristecia ou explodia. O novelo empalhava e engrossava: depois de ter lido sem querer a mente dos outros, depois de me entristecer em seguida por não ter sido escutado ou tido como credível, agora era a hora de me aborrecer pelo fato de que ninguém entendia por que eu estava cansado.
Esta autobiografia ficcional atravessa formação religiosa, convicções políticas, abduções, mudança de cidade — a Fortaleza dos anos 1970 —, amores e viagens no tempo.
Assim se formou um vício. Não sabendo o que constituía a minha vida mental, me acostumei a buscar o que estava pensando nas frases dos outros, a pensar as frases dos outros. Passava dias, quando pirralho, na Biblioteca Municipal de Hevqué, sublinhando linhas sozinho no interior do Ceará ao qual eu nunca mais voltei porque é sem interesse. Sem ar-condicionado, ficava na sombra, com as espinhas a ponto de espocar na testa e nas dobras do nariz. Era triste também porque estava longe do mar e dos mangues, mares e mangues que se tornariam a paisagem inconsistente e próxima do que eu chamava de “os meus pensamentos”. Estes, por serem a causa do que me humilhava e do que eu tinha vergonha, não poderiam conduzir a uma paisagem poética, ainda que fossem mares e mangues. Não poderia haver poesia nos mares e mangues; assim como não havia poesia na vegetação de Hevqué. A amorfia não é poética, menos ainda para uma criança como a que eu era, uma criança infinitamente desorientada, muito antes de me tornar o “missionário e filantropo” como viria a ser chamado nos bares da Varjota e da Praia de Iracema e nos corredores da faculdade de Letras no Benfica. Instantâneos da vida adulta: as mãos dos garçons e das cantoras dos bares e dos alunos e dos professores na universidade, diante de mim, fechavam em concha na altura do peito. Ou o sorriso com os lábios fechados que só os músculos contraídos do rosto poderiam remeter a um sorriso (é que não disse ainda que a minha telepatia não é apenas uma osmose do pensamento dos outros, mas uma osmose mais embaralhada dos gestos dos outros e do que existe por trás dos gestos, o mundo hipofísico dos números e dos anjos, de onde saímos e para onde vamos voltar, pensava).
Foi dessa forma que vim ao mundo mais tarde. Ainda assim, não havia sinal de verticalidade na relação, ninguém nos bares ou nos corredores da universidade pública de Fortaleza me chamava de seu Celestino X.; eu não era o senhor de ninguém; era chamado simplesmente Celestino X.; a igualização que era o nosso sonho não era anunciada aos gritos nem através da teatralização do sonho. A igualização era inscrita discretamente na ausência de diferenciação de tratamento, o apagamento do seu, quotidiana e simplesmente. E não é que fôssemos uma comunidade simples demais para nos organizarmos por classe; éramos, ao contrário, tinha nascido com aquela convicção, uma comunidade seguindo o curso natural da vida, rumo ao nivelamento: à luz, à verdade e a Deus. Isso é lindo.
Voltando à infância, não havia poesia naquela vegetação. Sem ver encanto naquela natureza, precisava mesmo assim, e isso vale para qualquer criança que flutuava no mundo como eu, submergido num aquário mudo, precisava de um parâmetro mais visual que verbal, pensava. Porque desconfiava que a minha vida mental seria melhor transcrita em imagens que com palavras (eu ainda não tinha entendido muitas coisas que hoje vejo claramente, e mesmo se tivesse entendido não teria conseguido transformar em palavras, apenas mais tarde poderia entender que conseguiria escrever como se estivesse desenhando, ainda que não tivesse talento para a arte pictural, o que tampouco entendia). As imagens em Hevqué não correspondiam à inconstância da minha mente. Nem a arquitetura dos homens; a biblioteca rachada de Hevqué, as casas lotadas dos tios ou a estrada esburacada que nos levaria um dia para Fortaleza. Tampouco a capela que obrigava a gente a se acumular em pé nas bordas, às vezes sem que a gente pudesse ver o padre pela janela, e a extravasar os limites geográficos, logo a expandir esses limites até onde chegasse o barulho do coro. A igreja era os tijolos e a atmosfera e o sopro onde atingia o canto, poucos metros além da cerca. Nem a arquitetura da natureza correspondia à inconstância; a matéria esgotada da caatinga, os cactos pontudos, os mosquitos e os homens e as mulheres ocos que eram a gente. Essas imagens não teriam podido inspirar um pirralho desorientado como eu, exceto no que o que havia em torno de mim inspirava medo.
Eu era amorfia e medo. E, sem nenhuma orientação, mais que medroso, pusilânime, me perdia e boiava sem ter uma imagem que pudesse se acomodar à minha vida interior, como um dia essa imagem seria o Oceano Atlântico e o mangue do Rio Cocó, que me deixariam perplexo quando os visse pela primeira vez, olhos abertos chorando embaixo d’água. Antes do meu encontro com a água, com os pés rachados no chinelo, sublinhava sozinho e constrangido livros na biblioteca de Hevqué. Não sabia como tinha ido parar ali, não tinha um senso da história. Pior, era incapaz de entender a utilidade de um senso da história. Falava de um lugar rarefeito onde se cruzavam os pensamentos das pessoas de Hevqué, tampouco sabia de onde vinham. Isso foi muitos anos antes de conhecer Lya, amore mio. A gente em Hevqué era selvagem e ignorante e eu tinha a impressão de que estávamos ali desde sempre e de que éramos ao mesmo tempo os primeiros a estarem ali, num tal estado de perda como o da tribo selvagem do Gênesis ou de astronautas numa ficção científica, muitas gerações depois da transformação da Terra em lava. E desconfiava que eu não era sequer esse corpo. E era triste também porque de dia não conseguia ver os discos voadores que mais tarde me levariam dali.
Ficava na biblioteca, dentro das possibilidades em que o prédio poderia ser considerado uma biblioteca; concreto rachado, mosca e café frio. Mas era um momento em que podia ficar sozinho, porque em casa dividia o quarto com sete irmãos. Ficava ali, buscando a citação adequada: um motivo a mais de aborrecimento, ai Deus e meu amore que nessa época não conhecia e nem poderia ter conhecido porque queria ser padre. As primeiras coisas que escrevi não eram exatamente minhas (estava longe de entender o que poderiam ser “os meus escritos”), mas sobreposições de imitações: primeiro copiava frases de que gostava e, insatisfeito com um só registro de cópia, passava a escrever à mão por cima da primeira frase com a mesma caneta ou uma caneta de outra cor, às vezes até rasgar a folha do caderno. Ou então reescrevia a linha da frase a alguns milímetros da primeira cópia de modo a criar um efeito de relevo, às vezes com cores de caneta diferentes, preto, vermelho, azul; ou com uma cor e uma textura pelas quais tinha grande afeição, o cinza do grafite, cuja delicadeza vem do fato de que se concretiza se desfazendo. Às vezes escrevia com uma caligrafia ligeiramente diferente ao lado da frase copiada. Imaginava que a frase copiada podia ter variantes incompreensíveis, embora fosse aparentemente a mesma (segundo a gramática baixa, a gramática do sentido), e que logo se ampliariam rumo à pureza, ao mundo dos traços e das linhas e que é o mundo dos anjos. Achava que depois de fazer esse exercício muitas vezes a frase de que gostava viesse a se transformar numa frase minha, e tendo frases minhas não teria mais por que sofrer por causa da membrana quase inexistente que existia entre os meus pensamentos e os pensamentos das outras pessoas. Teria meu próprio acervo de frases escritas várias vezes manualmente (se bem que o exercício podia chegar a tal ponto que já não existia diferença entre escrever manualmente e reescrever automaticamente, o meu objetivo inconsciente era chegar à atonalidade, ou seja ao estado de distração em que a escrita seria da cadência da respiração), sem saber que o que fazia era em parte a concretização exata de uma preguiça, em parte o caminho a ser feito. Foi só depois de muitos anos que percebi as páginas caindo e prestes a serem arrancadas por causa da pressão antiga dos dedos e do peso dos livros que copiava à mão, A história dos meus experimentos com a verdade, Corpos celestes da Via Láctea: edição ilustrada ou O Evangelho segundo São João, por causa também do tempo que passou, foi somente quando as páginas começaram a cair uma por uma e quando o cinza do grafite já tinha se diluído no branco das folhas e que as letras tinham se tornado ilegíveis, do cinza ao branco borrado à luz fosca, foi somente então que eu comecei a falar sozinho.
2 - A visão
Mas um dia decidi ficar na biblioteca de Hevqué até de noite. Não avisei meus pais; meu atraso não seria um incômodo. Não sabia que seria a primeira vez que entraria num disco voador. O céu era uma tela preta, azulada, lisa, com pontos luminosos, distribuídos de forma assimétrica; um pano defeituoso com minúsculos buracos brilhantes, as estrelas, por trás do qual estaria a luz, pensava.
Quando era criança, imaginava que o céu de noite não era o que se vê. Imaginava que o verdadeiro céu seria o brilho sob o pano negro, o sob-o-céu; um branco sufocante e ofuscante que nem com os olhos fechados poderia impedir que me cegasse; um branco argentado e glacial da realidade das estrelas, com a diferença de que não se restringiria aos minúsculos pontos, mas ocuparia o campo de visão. Uma extensão irregular de espaço, suspensa e curvada no vácuo, por causa disso com uma modificação gradual de iluminação; só assim poderia explicar que algumas estrelas brilhavam mais que outras. Essa suspeita reforçava a angústia da criança constituída de medo que eu era, a criança fotófoba e com os nervos crus. Talvez só quisesse saber de onde vinham as estrelas, por que eram assim, por que existiam. Em todo caso, era difícil para mim sair de noite sem imaginar que um dia o tecido cor de carvão no céu despencaria e seria substituído pelo branco que iria me desmaterializar.
Tentava dar uma forma às estrelas. E, mais amplamente, à visão inverossímil do céu, estonteante para a criança zigzagueante que eu era e de um automatismo desmagnetizado para a maior parte das pessoas de Hevqué, o que não entendia. Quase ninguém via o céu com a perplexidade com a qual eu via. Para as pessoas de Hevqué, o céu não era interessante ou desinteressante, o céu era o que é, não suscitava a vontade de treinar uma visão. Visão, por exemplo, do que seria o espaço sem o automatismo característico de algo que se vê cada noite; a visão de uma surpresa, o céu noturno visto pela primeira vez. O fato de as pessoas olharem para o céu com esse automatismo desmagnetizado me convencia de que eu tinha que amar e salvar as pessoas, de que por isso também tinha vindo ao mundo. Porque o que acontece na Terra, entendia intuitivamente a partir do poder que gerava o dom da telepatia, é um ruído interligado com a mecânica celeste, com a qual os homens e as plantas estão em sintonia, apesar da diferença de graus e de oscilações. E que estar em contato com a ciência infrafísica do céu, e que é também a ciência dos homens e das plantas, era uma das minhas vontades, pensava.
Hoje lembro bem daquela noite de agosto de 1955. Tinha treze anos. A lembrança se encaixa desajeitadamente na memória como um luar numa caverna, mas como esse luar possui a frequência exata do que é forte na fragilidade. Uma frequência que é difícil de agarrar quando não estamos distraídos; e que é a frequência secreta da ficção científica, pensava. Foi nessa noite que vi o céu assim, com uma visão direta e fresca, minutos antes de ser abduzido pela primeira vez.
Estava vendo o céu de Hevqué através da janela da biblioteca com essa clareza de visão e de pensamento que não achava que fosse possível. Existia uma linha perfeita, finíssima, transparente, uma linha feita de ar, entre o céu e os meus olhos. Para ser mais preciso, entre o céu e o meio dos meus olhos, que é o terceiro olho desmaterializado.
Essa visão veio a mim distraidamente junto com quatro certezas.
Quando digo distraidamente estou falando do momento frágil em que não se está tentando chegar a um estado mental preciso, em que não se está fazendo esforço algum. Sobretudo, não se está fazendo do esforço ou da ausência de esforço um problema. Pois qualquer tentativa de quebrar a perfeição atonal é um tom, é possível chegar a tal ponto em que o pensamento é uma ausência, uma suspensão, e é nesse estado de disponibilidade, quando nasce o amor pelo mundo, que a visão se dilata e as coisas aparecem numa tal lentidão e com uma tal exatidão como são.
A primeira certeza era, As pessoas já morreram, o mundo já acabou. Mesmo que não soubesse, quanto a mim, se estava ou não morto com as outras pessoas. Talvez estivéssemos juntos e fôssemos zumbis, os filhos da tal tribo perdida do Gênesis ou os tais astronautas de uma ficção científica por vir. Das quatro certezas, era a mais curta, a mais violenta e a mais difusa na ascendência e na direção; era impossível detectar por onde a frase vinha. Apesar de que, com aquela idade, já fosse mais ou menos consciente da minha telepatia, tinha a impressão forte de que a frase não vinha de lugar algum. Uma frase suspensa, sem ponto de perspectiva e sem a intencionalidade de um locutor. Uma sentença que estaria em cada canto de Hevqué, pensada em silêncio por cada habitante e ao mesmo tempo por ninguém; uma frase escondida, cuja presença e insistência vêm dessa infinita não revelação.
Ao mesmo tempo, era impossível que a frase não pudesse significar o seu exato oposto, as pessoas nasceram e o mundo começa mais uma vez. No entanto, desconfiava que essa frase invertida não vinha de um lugar exterior; não era uma sugestão. A nova frase, desconfiava desarticuladamente, era eu mesmo que tinha acabado de escrever. Mesmo assim, a ideia da continuidade me agoniou. Talvez tivesse sido melhor deixar a frase como era, uma frase sobre o fim das coisas e sobre a constatação de estar no mundo depois do fim das coisas.
Mas que direito tinha de intervir? É impossível preferir e desejar o que quer que seja sem perder a frequência distraída necessária para descobrir a realidade, nos tornamos alertas demais, a verdade é que quando a gente começa a intervir ativamente, a querer e a desejar, a consequentemente intervir no curso natural das coisas, a gente começa a perder o contato com as linhas finíssimas, sensitivas, espontâneas, que flutuam dentro do crânio. As linhas feitas de luminescência. Lembro da primeira vez que entrei por acidente na sala de radiografia do hospital de Hevqué. Olhei as imagens de cérebros em raio X na parede, quase chorei e caí com o queixo no chão, sem acreditar que tivesse sido possível viver a primeira parte da vida sem ter visto um raio X. Conhecia bem aquelas linhas; eram os mesmos traços puros que queria obter quando escrevia frases automaticamente à mão. Essa descoberta foi um preparo para quando, muitos anos depois, veria pela primeira vez, em Fortaleza, imagens de cérebros escaneadas por ressonância magnética, em movimento. Passei um final de semana em estupefação com a leveza rarefeita das linhas, que dançavam segundo a programação de uma espiral fora de ordem. Supus que a radiografia é uma angelologia. Era preciso chegar a tal estado de leveza em que simplesmente sente-se os fios flutuando na massa aquosa do cérebro e não se procura intervir. É quando eu começava a fazer esforço, a querer o que quer que fosse, e consequentemente a perder aquele estado distraído, que eu perdia o contato comigo e com os outros. E quanto mais tentava reverter a situação e não fazer mais esforço, já era tarde demais; o não esforço consciente era o pior dos esforços, um desejo e uma tentativa de quebrar o que não deve ser quebrado. Um processo se iniciava, contra o qual já não conseguia lutar: o rompimento da distração e do estado em que não se deseja e o esforço nervoso para recuperar a atonia vegetal. Sem saída. Começava a sentir os fios no cérebro se avermelhando, começava a sentir a pressão na cabeça. A sensação era de que quatro paredes fossem se fechar contra o cérebro até o esmagamento. O coração batia de forma arrítmica no crânio. Inútil abrir os olhos porque estaria numa névoa poluída, vendo luzes esfumaçadas se alargando e invadindo o campo de visão, até declinarem em outras luzes ou desaparecerem. Mais, ouvindo sons se distorcendo até se perderem sem nunca me suspenderem na perda. Impressão forte de que os nervos e artérias tinham sido intoxicados. Quando chegava a esse ponto, já sabia que, pior ainda que o fato de que a minha telepatia não funcionaria por alguns dias, o que era de certa forma uma ideia conveniente, mas, pior que isso, a minha telepatia ficaria desregrada, com a minha mutação escutaria milhares de pedaços de frases a dezenas de quilômetros de distância misturados com outros pedaços, que viriam a mim como gritos e me impediriam de qualquer descanso, milhares de corações de desconhecidos batendo na minha cabeça. Não conseguiria dormir. Desejaria não ter nascido com o dom da telepatia. Desejaria ser como os outros e ficaria infinitamente aborrecido. Tinha ao menos a opção de ficar no meu canto, discretamente no meu canto, desfavorecendo as frases que não poderia de toda forma controlar. Tentava ser menos receptivo às impressões sensoriais das pessoas em casa, que me achavam agitado demais. Para tanto, permanecia imóvel, aceitava e diminuía a constatação de que eu estava desfeito. O processo poderia durar vários dias; mas em algum ponto eu voltava a ser produtivo.
A segunda certeza era, Estamos aqui no Ceará há trezentos anos e não sabemos de onde viemos. Ninguém sabia. A frase continha a sensação desagradável de termos sido esquecidos pela história, de não termos pensado em construir um senso da história, de não termos consequentemente lugar mental onde pudéssemos nos ancorar. Perdemos a âncora e não sabemos se algum dia a tivemos. Alguns sobrenomes poderiam servir de âncora, levavam a uma ou a outra cidade ibérica ou mediterrânea. Mas já desconfiávamos da arbitrariedade e da insignificância dos sobrenomes e não era possível voltar atrás. Ou então os sobrenomes poderiam levar não à insignificância de uma genealogia, mas a um sentido sincrônico de família. À ideia de que estamos juntos num mesmo barco e de que, apesar de ou graças à flutuação, estamos juntos; mas, para mim, essa companhia ou vínculo não podia mais depender de um sobrenome ou de laços sanguíneos. De certo modo, e isso foi algo que aprendi com os olhos fechados em sintonia com o movimento evolutivo das coisas, acreditava na gratuidade da companhia e do vínculo: qualquer pessoa era bem-vinda no barco, o lugar disponível acomodava qualquer um. Estaria mentindo se dissesse que essa crença era compartilhada por todas as pessoas de Hevqué. Que fique claro que estou falando aqui de nós os telepatas (nos conhecíamos em silêncio e de forma desarticulada por telepatia). As massas se contentavam com os rituais do sangue e do sobrenome. Mas eu e mais alguns acreditávamos na disponibilidade do lugar a qualquer pessoa que não violente precisamente o princípio dessa gratuidade do vínculo, e que era o princípio da nossa disposição proletária e da nossa solidariedade obreira; da nossa origem sertaneja.
Ainda assim, essa flexibilidade não nos ajudava a saber de onde vínhamos. Agora estou falando de um nós mais vasto, a gente flutuante de Hevqué. Tínhamos perdido o sentido de linearidade. Não havia registro em lugar algum, exceto o registro bíblico, do Gênesis, lido numa igreja com os tijolos expostos, o piso quebrado e a pintura se desfazendo. Conhecia aquele texto de cor. Apesar do pão espiritual que o texto trazia para a alma, a Bíblia não tinha substância histórica para mim; o livro era próximo demais e distante demais da nossa experiência.
Próximo, porque éramos tanto tribais e perdidos quanto os descendentes de Abraão e tanto observadores das estrelas quanto Abraão; participantes de um roteiro cuja maquinaria nos era inacessível. Vivíamos num mundo em que não existiam descrições físicas, em que não havia diferenciação aparente entre os membros da nossa tribo, como animais de uma mesma espécie que se parecem. Mundo em que éramos compelidos à força de vozes que não sabíamos de onde vinham, magnetizados e coesivos pela potência da palavra.
Luciano Brito nasceu em Fortaleza em 1989. Fortaleza é seu primeiro romance. É doutor em Literatura pela Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3.
Distante, porque não tínhamos ponto de referência do que era o Mar Vermelho, o Mar Morto, o Monte Sinai. Muito cedo, aprendi a descartar aquela geografia como se fizesse parte de um conto de fadas. Mais tarde, quando adulto, era preciso fazer um esforço sobre-humano para acreditar que aqueles lugares existiam de fato, no mesmo planeta que eu, Lya amore mio e os nossos amigos e os cearenses habitávamos. Um esforço sobre-humano para acreditar que com uma simples passagem de avião e pouco tempo de carro poderíamos chegar lá, que bastaria atravessar o céu num dia de viagem. Viagem que aliás não fizemos porque tínhamos medo de que, ao chegarmos lá, pior que temer a estupefação de nos aproximarmos das geografias de Javé como de algo do qual não se pode chegar perto, tínhamos um medo mais grave: medo de que veríamos que seriam geografias quaisquer, sem mistério, bidimensionais, com os mesmos tons de amarelo, bege, pastel, cinza e azul-celeste, e os mesmos níveis de umidade e de salinidade e os mesmos peixes e uvas de Hevqué. Geografias que não suscitariam o mínimo temor e das quais emanariam inclusive uma imensa indiferença à nossa fé e à nossa viagem àquelas terras. O que nos afundaria na desolação. Perguntaríamos a nós mesmos o que tínhamos feito das nossas vidas se aquela terra tinha seguido outro rumo, com outras pessoas, e que tinha nos deixado de lado, exatamente de lado, não de fora, pois tivéssemos ou não tivéssemos ido lá o estrago já estava feito. E eu veria para sempre as terras da Bíblia como se fizessem parte de um universo paralelo, com uma cronologia incompatível com a nossa e ao mesmo tempo delineando nossa maneira de lidar com o tempo, um pensamento que preferia evitar, apesar da clareza e da precisão ficcional-científica com que me vinha, por causa da tristeza infinita e da certeza do abandono que trazia consigo.
O que quero dizer é que a disponibilidade da fé que se adequava prontamente à minha alma era contrabalanceada pela inadequação e, mais, pelo apagamento que o registro bíblico operava da nossa história. Éramos astronautas flutuando no amarelo-queimado do Ceará. Aqueles nomes de lugares vinham de um outro lugar e apagavam o nosso. Isso não é culpa da Bíblia, que é um livro lindo e curandeiro. Era culpa nossa, que nos contentávamos com uma percepção rígida de um livro do passado para explicar inteiramente a nossa vida por vir, em vez de aproveitar o potencial futurista da palavra de Deus e a sua aptidão para se tirar e nos tirar em múltiplas direções: da luz, da verdade, da nossa salvação.
Precisávamos desse auxílio, porque não tínhamos ponto de orientação.
Recorríamos assim à Bíblia. Era irresistível e urgente. Esquecíamos que vivíamos a adequação do texto bíblico à nossa realidade em termos de equivalência. Como se não houvesse diferença no anúncio daquelas palavras na sociedade em que foram escritas e em Hevqué; como se houvesse uma equivalência linguística entre o hebraico, o aramaico e o grego do primeiro texto; entre o português arcaico do texto traduzido, o português nordestino que era o do sermão do padre Aristides, o padre cego da paróquia de Hevqué, e o português mais desafinado ainda das nossas confissões. Era um quebra-cabeça que escondia uma paisagem com peças que não poderiam se encaixar, e ao mesmo tempo conduzia a uma espécie de terapia de grupo à qual Hevqué aderia. Nossa cidadezinha assumia que era muito fácil, e de fato era, aceitar a equivalência do que olhar de frente a nossa própria diferença. Porque para olhar de frente a nossa própria diferença seria preciso treinar o olho, olhar para o céu como eu fazia na biblioteca de Hevqué naquela noite de agosto de 1955.
Tentava entender por que estávamos ali, como que entre parênteses, no amarelo do Ceará já virando azul-escuro da noite, perdidos e constrangidos. Aos domingos, repetíamos em voz alta palavras escritas há cerca de dois mil anos, e nos contentávamos com a ideia desse texto único que descartaria o nascimento de novas palavras. Uma satisfação coletiva que englobava as gerações por vir, num contentamento que se repetiria e conduziria a uma estagnação que resistiria à novidade, aviões e computadores que nem existiam ainda naqueles anos. O que era para mim um imenso desrespeito com a Bíblia! Que é o primeiro livro de ficção científica! Que nos anunciava a chegada de uma nova vida! Não estávamos prontos para ativar o impulso do texto de Deus e a fazer da novidade uma forma de vida. Éramos conduzidos a, ou pior, restávamos numa plenitude ritualística que tinha no bloqueio do pensamento sua motivação e seu objetivo. E era uma espécie de milagre, penso agora, que eu tenha tentado desviar da seta que me conduziria a essa estagnação, acho que teria acontecido, acho, independentemente do fato de ter sido interceptado por extraterrestres.
Então decidi olhar o que havia em volta. Nomes de ruas, de praças, de placas que se enferrujavam levavam a um ou a outro herói. Mas nós, os telepatas, tínhamos perdido a crença num gesto heroico. De certa forma, achávamos adequado quando as placas com nomes de personalidades supostamente importantes da nossa história eram engolidas pela terra. Inconscientemente, desejávamos a erosão e a antecipávamos como se pudéssemos, além de absorver pensamentos e gestos, mover a terra.
Então decidi olhar de novo o que havia em volta. Nomes de rios, de plantas e de animais levavam a línguas das quais só nos restavam a areia e o sal, se eram como mares só nos restava o sal. Arara, araraquara, amanaiara, babaquara, jabaquara, urubuquara, jararaca, uirapara, caiçara, Paraíba, Paraná, Pará, Aracati, Paracuru. Mas nem essa língua perdida de antes, já volátil como o sal quando falada, como qualquer invenção humana, nem a nossa língua mestiça de agora poderiam constituir um ponto de orientação. Quantas vezes vou relembrar que nós, telepatas, absorvemos não apenas as frases, mas os gestos e o que vem antes dos gestos? Quantos anos desde que absorvi essa frase, mais de sessenta? Mas lembro ter chorado sozinho na biblioteca de Hevqué naquela noite de agosto de 1955, porque não saber de onde viemos é também não ter para onde voltar, o que de certa forma me confirmava que, se um dia os discos voadores viessem me buscar, e não sabia que isso aconteceria naquela noite, me levariam, como Deus, para uma vida nova.
A terceira certeza anulava a segunda, Constrangidos e deformados, estamos no Ceará há mais que trezentos anos, sem escrita — não sabia de onde vinha a frase. O tom severo não era meu. A frase vinha numa língua por trás da língua, de modo que eu era ao mesmo tempo telepata e intérprete, não de uma língua que me fosse completamente desconhecida, mas, o que era mais assustador, de uma língua que não me era completamente desconhecida. Pior, não havia ponto final na frase. Ou então não conseguia apanhar a força na fragilidade, começava a me tornar alerta demais à medida que a distração se diluía pela ação da consciência, Estamos no Ceará há muitos milhares de anos e mais ainda, somos répteis. Seria uma forma de dizer que há restos de répteis em nós, que não somos apenas répteis, mas também algo mais, será que os mamilos que a gente escondia eram um resquício réptil? Os dedos do pé, por pouco que não são colados, eram um resquício réptil? Tentava reescrever e prolongar a frase, apesar da interferência que me impedia de escutar o final. Começava a me tornar adulto, inconscientemente retardava a continuação da frase porque escreveria algum dia o que faltava; o que faltava era algo que ainda não sabia, não estava pronto para saber, talvez nunca o saberia.
A frase vinha de um lugar distante na origem dos possíveis, de um buraco negro distante, de um nó de laços. Formava uma temporalidade híbrida, conduzia a uma forma de escrever o tempo numa língua secreta; que não existia em português, nem no nosso português nordestino. Vinha de um espaço opaco, multiforme, morno. Anunciava que éramos mais e menos que humanos, mais e menos que répteis. Que carregávamos a sedimentação e a abertura; atrapalhados mas sobreviventes, resistentes e perfectíveis como os animais de Darwin. E quando a frase começava a se desalinhar basta me lembrar dessa relação, me lembrar de que A origem das espécies é uma expansão ficcional-científica do Gênesis e assim todas as perdas são reparadas. A ideia de fim se atenuava na medida que, a frase dava a entender, contínhamos no corpo a memória de muitos cadáveres, contínhamos a morte que se reativava por um sopro de vida.
A quarta certeza continha as outras três e a contradição entre a segunda e a terceira, pois assim funciona a forma celeste da matemática, era a frase, Deus existe.
O céu era uma tela preta, azulada, lisa. Mantive os olhos abertos através da janela. Sentia o orifício negro das pupilas se ampliando até os limites brancos, ampliando a capacidade de absorver o branco e tornando fugaz e real a possibilidade de ver diretamente o vácuo do universo.