Recife, 21 de outubro de 1959
Meu caro Ricardo Brennand,
Há dois anos passados, em São Paulo, uma conversa de Ariano Suassuna comigo forneceu ideias para a criação, no Recife, de uma companhia teatral, tendo como base minha volta a Pernambuco. O conjunto continuaria, em linhas mais sólidas e mais largas, o espírito teatral que animou, há anos atrás, a fixação do autor nordestino, o aproveitamento dos valores histriônicos da região e a revelação de elementos técnicos como diretores, cenógrafos, iluminadores, figurinistas, etc. Mais do que uma companhia profissional, com finalidade de lucros imediatos, o grupo seria um núcleo onde os poetas, os pintores, os músicos, os escritores comtemplariam a atividade teatral como função do espírito e alcance cultural.
Chegou o instante para o lançamento do TEATRO POPULAR DO NORDESTE, nome de batismo da companhia, quando o Recife adquire – mais uma casa de espetáculo, o Teatro do Parque – e que a Escola de Belas Artes projeta uma outra. Devemos partir cedo, contando-se ainda com o Santa Isabel e o Marrocos. Mantendo aquele espírito que possibilitou a criação e a projeção do Teatro do Nordeste, o TPN inspira-se, por outro lado, no Théâtre National Populaire, de Jean Vilar, tomando-se a designação “popular” no sentido de oferecer ao público as obras de maior apelo artístico em relação à maneira de sentir das plateias. E ainda mais: crentes de que o público necessita de autores e que o autor é o único elemento eterno do teatro, não se podendo falar em teatro nacional sem escritores próprios, os que compõem o TPN farão representar os dramaturgos brasileiros, particularmente os da nossa região, ao lado dos clássicos e dos modernos que se enquadram no espírito que os anima.
A necessidade de uma companhia idônea, ao lado dos grupos de amadores que lutam, no Recife, pela dignidade da arte dramática, ainda mais se impõe quando nos lembramos de que o Curso de Teatro da Escola de Belas Artes da Universidade do Recife terá uma finalidade maior da sua função para ela encaminhando os alunos que de lá saiam formados, pois até o momento aquele Curso se resume a um aprimoramento cultural e não especificamente profissional.
O TEATRO POPULAR DO NORDESTE, cuja direção é formada por mim próprio, Ariano Suassuna, Gastão de Holanda, Alfredo de Oliveira, Osman Lins, José Carlos Cavalcanti Borges, Capiba, Aldomar Conrado, José de Morais Pinho e outros, estreará em janeiro próximo no Teatro Santa Isabel, lá permanecendo até março, deslocando-se depois para outras casas de espetáculos, com uma excursão em julho pelas capitais do Nordeste.
A maior dificuldade, no entanto, já que temos autores e atores, reside no levantamento financeiro que possibilite a primeira temporada do TPN e, embora seus diretores tenham contribuído com dinheiro para esse fim, o orçamento está longe de ser coberto. Neste sentido estamos apelando para intelectuais, artistas e amigos, que acreditem em nossa ideia e que sejam os patrocinadores do movimento. Você está entre eles. Faço-lhe, portanto, um apelo para que ajude o TEATRO POPULAR DO NORDESTE a viver em benefício de nossa cultura.
Com um abraço,
Hermilo Borba Filho
Diversas e importantes informações sobre o início das atividades do TPN estão contidas nessa carta que Hermilo enviou a Ricardo de Almeida Brennand, industrial pernambucano, amante das artes, pai do artista plástico Francisco Brennand e tio do empresário Ricardo Brennand, criador do Instituto Ricardo Brennand, centro cultural/museu dos mais visitados em Pernambuco. A afinidade entre Francisco Brennand e as pessoas envolvidas nesse novo empreendimento teatral, especialmente Ariano Suassuna, de quem era amigo desde a adolescência, certamente aumentava as chances de que a solicitação de auxílio financeiro obtivesse uma resposta positiva. Francisco Brennand que, tendo atuado como cenógrafo no Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) ao início da década de 1950, desempenha também essa função no TPN, em 1969, na montagem de Farsa da boa preguiça.
Correspondências praticamente iguais a essa, com o mesmo conteúdo, foram endereçadas também a muitas outras personalidades, identificadas como potenciais patrocinadoras do grupo teatral que então se anunciava. Na lista dos destinatários, encontram-se empresários, advogados, jornalistas, políticos, intelectuais, diplomatas e artistas, como, por exemplo, José Ermírio de Moraes, Paschoal Carlos Magno, José Olympio Pereira Filho, Barbosa Lima Sobrinho, Adelmar da Costa Carvalho, Jorge Amado, Joaquim de Souza Leão Filho e Murilo Marroquim. O então governador do estado de Pernambuco, Cid Sampaio, também recebeu essa carta – chega, por meio dele, no ano seguinte, a subvenção que efetivamente garante a continuidade do grupo até 1962. É provável que, inicialmente, essa campanha por fundos tenha rendido apenas uma ou outra pequena ajuda, pois caso tivesse havido algum retorno mais expressivo, com aporte de investimento digno de um verdadeiro patrocinador, tal dado certamente apareceria em matérias de jornal e nas peças gráficas elaboradas para a divulgação do espetáculo de estreia do TPN. Não se duvide, porém, que tal estratégia, convocando à causa pessoas de destaque em diversas áreas da sociedade (formadores de opinião), tenha contribuído para a divulgação e para a valorização das proposições que embasavam essa nova empresa artística, liderada por Hermilo Borba Filho.
Contudo, a despeito da eficácia, ou não, desse mecanismo de solicitação de apoio, o mais importante, neste capítulo, é observar o quanto essa carta revela das circunstâncias em que o TPN foi criado e das motivações iniciais de seus criadores.
O primeiro ponto a destacar é a manifesta intenção de que o novo grupo pudesse dar continuidade aos ideais que motivaram as diversas ações do TEP: o fortalecimento do teatro como arte, e não somente como forma de entretenimento; a democratização do acesso à arte teatral; o estímulo a uma produção dramatúrgica moderna, preferencialmente inspirada em temas da cultura local; e a crença do teatro como veículo de aprimoramento cultural, pessoal e coletivo. Como o TEP, o TPN deveria, portanto, ter uma missão a um só tempo artística e pedagógica. Não seria apenas uma companhia teatral, isto é, uma produtora de espetáculos, com interesse no resultado das bilheterias, mas um centro capaz de agregar e de aperfeiçoar artistas, técnicos e intelectuais ligados às artes cênicas, ao passo que contribuiria para a formação de plateias cada vez mais aptas a consumir um teatro de arrojada investigação artística. No estatuto do grupo, provavelmente elaborado na ocasião do registro da firma como personalidade jurídica no segundo semestre de 1961, essa predisposição formativa é explicitada da seguinte maneira:
A entidade [TPN] tem por objetivo a realização de atividades teatrais, constituindo um grupo contínuo e estável. No exercício de suas atividades buscará servir de escola a autores, encenadores, atores, cenógrafos, figurinistas e ao próprio público, através de montagens de peças de alta categoria, dando preferência aos clássicos e aos autores brasileiros, estes especialmente nordestinos, sem prejuízo das grandes peças do teatro contemporâneo, a critério da Direção Artística.
Em várias declarações, não somente nesse período em que o TPN ainda estava se configurando, mas também durante todo o tempo em que o grupo esteve ativo, Hermilo enfatizou a importância do profissionalismo para o desenvolvimento da atividade teatral. O TPN pretendia ser, então, grosso modo, uma versão profissional do TEP – proposição talvez irrealizável, pela própria essência amadora, na melhor acepção desse termo, que sustentou aquela vibrante atividade estudantil.
Assim, defendendo o teatro como um campo profissional, Hermilo sublinhava a distinção entre os objetivos do seu novo grupo e os valores (diletantes, filantrópicos) do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), certamente, até então, o conjunto de maior destaque nos palcos recifenses, responsável em grande medida pela modernização estética do teatro pernambucano, desde o início da década de 1940 (CADENGUE, 2011).
Porém, compreensivelmente, em uma carta como essa, de pedido de patrocínio, a defesa do profissionalismo talvez não fosse um argumento a ser enfatizado. O que aparece, na explanação de Hermilo, é um outro caráter do projeto, provavelmente mais plausível: o intento de interferir no panorama teatral/cultural da cidade, por meio da troca de saberes entre professores e alunos do Curso de Teatro, da Escola de Belas Artes, e a sociedade em geral, notadamente a parcela mais interessada na arte dramática, artistas ou espectadores. Ou seja, esboça-se nessa apresentação de Hermilo certa inclinação extensionista, embora o conceito de extensão universitária ainda não estivesse em uso pleno, como seria definido e praticado com o advento do Serviço de Extensão Cultural (SEC), criado pelo reitor João Alfredo, na Universidade do Recife, no começo de 1962, para ser coordenado pelo educador Paulo Freire (SILVA JÚNIOR, 2012).
O TEP, quase duas décadas antes, nascido na Faculdade de Direito do Recife, ao levar o teatro a parques públicos, a escolas, a centros operários, a presídios e a hospitais, já antecipava um tanto dessa vocação extensionista de Hermilo e de seus companheiros. Mas ali se tratava de uma iniciativa apenas de alunos. Agora, no TPN, docentes e discentes trabalhavam para o aprimoramento do teatro recifense em parceria com artistas não diretamente vinculados à universidade, aproximando mais essa iniciativa do conceito estabelecido de extensão universitária.
De fato, o TPN funcionou, mais claramente em seus primeiros anos, como uma espécie de braço extensionista do Departamento de Teatro da Universidade do Recife. Ao mesmo tempo, como é anunciado nessa carta a possíveis patrocinadores, o TPN propunha-se a cumprir a função de iniciar na vida profissional os egressos do Curso de Teatro. É certo que o discurso do profissionalismo teatral não encontrava amparo na realidade do panorama teatral em Pernambuco, mas se justificava, de certo modo, como uma postura política, de valorização dos artistas, afirmando a dignidade dessa ocupação. O que se apurava, por meio de bilheteria, não cobria os custos de cada produção. E tal situação, de prejuízo, salvo um ou outro breve momento, marcou toda a história do TPN, como demonstram os livros contábeis do grupo e os borderôs de cada produção, documentos presentes no acervo guardado pela atriz Leda Alves. Contudo, graças a patrocínios – ainda que instáveis, conflituosos e insuficientes –, o TPN consegue, notadamente nas primeiras produções, remunerar seus atores e seus técnicos, com cachês acima da média daqueles praticados na precaríssima cena teatral profissional recifense (PONTES, 1990, pp. 112-113).
Os saberes que circulavam no Curso de Teatro, em suas duas habilitações, Dramaturgia e Formação do Ator, interagindo com os saberes de profissionais já reconhecidos na cena pernambucana, geram espetáculos que prontamente se distinguem nos palcos da cidade: diferentes tanto das produções que o TAP, de Valdemar de Oliveira, apresentava no requintado Teatro de Santa Isabel, direcionadas prioritariamente às elites recifenses, quanto do teatro de entretenimento mais desabrido, vertente materializada sobretudo pelo trabalho de Barreto Júnior, em seu improvisado Teatro Marrocos, insolitamente localizado bem ao lado do Teatro de Santa Isabel (FIGUEIROA, 2002); diferentes também das peças que a Universidade do Recife já oferecia ao público da cidade por meio do seu Teatro Universitário de Pernambuco (TUP): algo, em certa medida, não muito distinto dos princípios praticados pelo TAP. Significativamente, o TUP, criado em 1948, tem como um dos seus líderes, durante boa parte de sua existência, o ator Reinaldo de Oliveira, filho de Valdemar de Oliveira. O professor João Alfredo, primeiramente como vice-reitor e depois como reitor, foi um dos principais apoiadores do TUP, iniciativa que, possuindo também viés extensionista, viveu alguns dos seus melhores momentos quando teve, já no início dos anos 1960, a direção artística entregue a Graça Melo, encenador carioca contratado para lecionar as cadeiras de Interpretação, no Curso de Teatro, da Escola de Belas Artes (PONTES, 1990, 62-67).
Na carta enviada ao industrial Ricardo de Almeida Brennand, ao informar a provável composição da diretoria do grupo, que então já preparava o seu primeiro espetáculo, Hermilo lista o nome de cinco professores do Curso de Teatro, da Escola de Belas Artes: além de ele próprio e de Ariano Suassuna, são apresentados Gastão de Holanda, Alfredo de Oliveira e José Carlos Cavalcanti Borges, responsáveis pelas seguintes disciplinas, respectivamente: Teatro Português e Brasileiro, Caracterização, e Psicologia.
Ao lado deles, dois alunos, da habilitação de Dramaturgia, Osman Lins e Aldomar Conrado. Configuração que, naturalmente, reforça o pendor extensionista do projeto. No entanto, além desses nomes, outros docentes e discentes do programa atuarão com destaque no TPN. Por exemplo, Janice Lobo, professora de Indumentária Histórica, torna-se uma das mais assíduas colaboradoras de Hermilo na construção dos espetáculos, desenhando figurinos e cenários; Joel Pontes, por sua vez, professor de História da Literatura Dramática, trabalha, como ator, nas primeiras peças do grupo; Maria José Campos Lima Silva, professora de Técnica Vocal, além de aparecer como atriz, colabora na preparação do elenco e na confecção de roupas e de adereços. Pelo lado dos estudantes, Leda Alves, que não é mencionada nessa carta, torna-se uma das fundadoras do conjunto, enquanto Osman Lins, contradizendo a informação dada por Hermilo, jamais participa da gestão do TPN, tendo apenas um texto de sua autoria, Auto do salão do automóvel, encenado pelo grupo no segundo semestre de 1970. Além de Leda Alves e de Aldomar Conrado, eleitos por seus colegas universitários para representá-los na diretoria do TPN, muitos outros alunos da Escola de Belas Artes, não somente os do programa oficial do Curso de Teatro, mas também, e decerto até mais significativamente, os frequentadores dos diversos cursos livres ofertados por essa instituição de ensino, integraram os elencos do TPN.
De fora do círculo universitário, o músico Capiba e o dramaturgo José de Morais Pinho, ambos egressos do TEP, como também o eram Joel Pontes e Gastão de Holanda, integram a primeira diretoria do grupo. Mas muitos outros artistas e técnicos teatrais da cidade, oriundos das mais diversas vertentes do teatro recifense, e igualmente sem vínculos diretos com os cursos da Escola de Belas Artes, atuam nos espetáculos do TPN. Logo na estreia, por exemplo, encontram-se no elenco de A pena e a lei nomes importantes do TAP, como Geninha Sá da Rosa Borges e o seu marido Otávio da Rosa Borges, ao lado de atores de origens bem distintas: advindos do movimento teatral de bairros, como José Pimentel, ou ligados ao ativismo político, como Hiran Pereira, membro do Partido Comunista, vítima da repressão política do governo militar pós-1964, um “desaparecido”.
No programa do espetáculo de estreia do TPN, de fevereiro de 1960, lê-se:
O Teatro Popular do Nordeste é orientado por Aldomar Conrado, Alfredo de Oliveira, Ariano Suassuna, Gastão de Holanda, Hermilo Borba Filho, José Carlos Cavalcanti Borges, José de Morais Pinho, Leda Alves e Lourenço Barbosa (Capiba).
Essa deve ser considerada, de fato, a composição da diretoria fundadora do grupo. Foram essas as pessoas que primeiramente se associaram, devotando esforços para a materialização desse empreendimento. Entretanto, no campo legal, em termos de registro oficial, o quadro é um pouco diferente. Quando o TPN foi registrado como pessoa jurídica, o que somente aconteceu em novembro de 1961, dois desses nomes, Aldomar Conrado e Alfredo de Oliveira, não apareciam mais como sócios-fundadores. Na abertura do Livro Diário da Firma Teatro Popular do Nordeste, assinado pelo Sr. Vogal Murilo G. Martins, temos a seguinte informação:
Constituição da sociedade denominada ‘Teatro Popular do Nordeste’, por quotas de responsabilidade limitada, sendo quotistas os seguintes: Hermilo Borba Filho, Lourenço da Fonseca Barbosa, Ariano Vilar Suassuna, José Carlos Cavalcanti Borges, José de Morais Pinho, Gastão de Holanda e Leocádia Alves da Silva [Leda Alves]. O capital social perfaz 70.000 (setenta mil cruzeiros) dividido em quotas iguais pelos sete sócios e integralizado. O contrato social foi registrado e arquivado na Nobilíssima Junta Comercial de Pernambuco sob o nº 1740 em 09 de novembro de 1961.
Já em entrevista ao Serviço Nacional de Teatro (SNT), gravada em vídeo nos estúdios da TV Universitária (UFPE) em abril de 1975, Hermilo apresenta uma lista ligeiramente diferente de fundadores do grupo, sem mencionar a participação de Alfredo de Oliveira:
Reunimos oito pessoas: Ariano Suassuna, José Carlos Cavalcanti Borges, Gastão de Holanda, José de Morais Pinho, quase todos do antigo Teatro do Estudante, Aldomar Conrado e Leda Alves, estes dois então alunos do curso de teatro, Capiba e eu. Fundamos o TPN que, nessa primeira fase, tinha os mesmos propósitos do Teatro do Estudante (BORBA FILHO, 2007, p. 214).
Nessa fala de Hermilo, ao calor da entrevista, o nome de Alfredo de Oliveira, irmão de Valdemar de Oliveira, não é lembrado como um dos fundadores do grupo – embora, como visto, esse dado apareça no programa da montagem inaugural do TPN. À época da criação do grupo, é importante lembrar, Hermilo e Alfredo eram sócios em outra empresa teatral, inaugurada praticamente ao mesmo tempo em que o TPN: o Teatro de Arena do Recife, cuja proposta, no que tange à defesa do profissionalismo teatral, guardava certa sintonia com o TPN. Não havia, porém, no Arena, a preocupação, digamos, extensionista, de renovar a cena recifense, promovendo a aproximação entre a classe teatral da cidade e os alunos e os professores da Escola de Belas Arte; nem se tomava como uma meta o compromisso de revisitar clássicos da literatura dramática, ou o empenho pela valorização de novos dramaturgos nordestinos; tampouco se falava em democratização do acesso aos espetáculos teatrais. No Teatro de Arena do Recife, diferentemente do famoso Teatro de Arena, de São Paulo, priorizavam-se comédias contemporâneas, gerando espetáculos voltados sobretudo para o entretenimento burguês. Uma novidade despertava a curiosidade do público local: o Teatro de Arena do Recife era, na cidade, a primeira sala teatral sem um palco à italiana.
Na prática, entretanto, percebe-se que havia, de início, uma sinérgica aproximação entre o TPN e o Teatro de Arena do Recife, que compartilhavam atores, diretores, autores e técnicos. Além disso, espetáculos do TPN, como A bomba da paz e Município de São Silvestre, ambos de 1962, cumprem temporadas nas instalações do Arena, um pequeno, mas confortável, espaço localizado na avenida Conde da Boa Vista, mesma via onde o TPN estabelece sua sede, em 1966.
Talvez por isso, seja lícito imaginar que a contribuição de Alfredo de Oliveira ao surgimento do TPN se confunda com a sua atuação como sócio-diretor, parceiro de Hermilo, no Arena. Mas, segundo Joel Pontes, as diferenças entre Hermilo e Alfredo, que se alternavam na direção dos espetáculos do Teatro de Arena do Recife, logo se encarregam de colocar cada um desses dois amigos em seu lugar mais adequado: em menos de dois anos, Hermilo deixa o Arena e Alfredo deixa o TPN. Ao encenar peças como Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1960, e Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna, em 1961, Hermilo quebrava a linha de “pura diversão” pretendida por Alfredo de Oliveira (PONTES, 1990, p. 119) e produzia espetáculos que, pelos traços estéticos e pelas equipes envolvidas, bem poderiam estar inseridos no repertório do TPN – não sendo incomum encontrarem-se críticas, artigos, estudos e matérias de jornais que creditam, imprecisamente, essas duas produções ao TPN. Farsa da boa preguiça, sintomaticamente, será reencenada, por Hermilo, no TPN, em 1969.
Com o passar dos anos, a composição do quadro de diretores do TPN sofre diversas alterações. Em um relatório de atividades datado de julho de 1967, por exemplo, apresentam-se estas informações:
Direção artística: Hermilo Borba Filho; Direção executiva e do quadro de atores: Leda Alves, Germano Haiut, Lúcia Neuenschwander, Ivan Soares, Carlos Reis, Clênio Wanderley; [...] Presidente: Lourenço Fonseca Barbosa (Capiba); Secretário: Ariano Suassuna; Tesoureiro: José de Morais Pinho.
Mais tarde, após o encerramento das atividades na sede do grupo, já nos primeiros anos de 1970, documentos legais do TPN trazem apenas os nomes de Hermilo e de Leda como sócios-diretores. Na realidade, como demonstra uma declaração escrita por Hermilo em 3 de setembro de 1970, todos os sócios-fundadores deixam a diretoria do grupo ao final de 1964, doando a Hermilo as suas respectivas quotas na sociedade, conforme decidido em reunião ocorrida no dia 23 de dezembro de 1964. Porém, devido a exigências da Junta Comercial, é solicitado a Capiba e a Ariano que eles sigam assinando os documentos do TPN, nas funções que desempenhavam em 1964. E essa situação, que deveria ser uma solução temporária, supostamente resolvida em pouco tempo, perdura até o final de 1970.
Mas há outros dois pontos, pelo menos, que merecem especial atenção nessa carta que Hermilo endereça ao pai de Francisco Brennand e a tantos outros possíveis patrocinadores: 1) a intenção de estrear o TPN no Teatro de Santa Isabel; e 2) a declaração de que o nome do grupo, Teatro Popular do Nordeste, seria inspirado pelo Théâtre National Populaire (TNP), do francês Jean Vilar. Esses dois dados, aparentemente desvinculados um do outro, suscitam, especialmente quando examinados em conjunto, importantes reflexões sobre as bases conceituais do TPN e sobre as suas possíveis contradições.
Para quem conhece um pouco do movimento teatral brasileiro ao início da década de 1960, talvez não seja difícil intuir que o nome TPN tenha surgido mesmo como uma espécie de paráfrase-homenagem ao famoso TNP francês, dada a admiração que o trabalho de Vilar angariou entre as pessoas de teatro em nosso país, especialmente entre os mais idealistas. Mas essa confirmação, da intencional associação entre esses dois nomes (TPN e TNP), não é encontrada em muitos documentos deixados por Hermilo, o que dá mais importância a essa carta.
Ao defender o teatro como um serviço público, e ao oferecer a operários e a estudantes, com ingressos subsidiados, encenações de obras clássicas da dramaturgia universal (ROUBINE, 2003, pp. 132-136), o TNP de Vilar torna-se uma inspiração para vários grupos teatrais, em várias partes do mundo. Além disso, sua poética, centrada no trabalho do ator, preconizando um palco livre de excessos na cenografia e nos demais elementos visuais do espetáculo, estava de acordo com o impulso renovador e com a capacidade realizadora de muitos artistas que lutavam por um fazer mais democrático para o teatro nacional. Para Hermilo e para os seus ex-colegas do Teatro do Estudante de Pernambuco, a identificação com os ideais postos em prática por Vilar era imediata e absoluta. Natural, pois, que se anunciasse de pronto, logo no nome do novo grupo, esse desejo de filiação ao modelo francês de um teatro de qualidade artística, acessível ao povo e financiado pelo governo.
Os anos, porém, revelam fragilidades no projeto de Jean Vilar, sendo decerto uma das maiores delas a constatação, especialmente após os protestos de maio de 1968, de que, embora voltada para as camadas populares, toda a concepção do TNP impunha-se de cima para baixo, pronta, sem que fossem ouvidas as pessoas às quais supostamente ela se dirigia de modo prioritário: os operários e os estudantes pertencentes a classes economicamente menos favorecidas. O TPN, de Hermilo e de seus companheiros, também não demora a enfrentar problemas semelhantes.
Diferentemente do TEP, que relutou ao máximo em se apresentar no Teatro de Santa Isabel, por entender que precisava levar a sua arte a locais aos quais o povo tivesse acesso mais fácil (CARVALHEIRA, 2011), o TPN, como se vê nessa carta de Hermilo, teve a intenção de estrear o seu primeiro espetáculo justamente no teatro mais sofisticado da cidade, espaço que abrigava, havia quase 20 anos, o Teatro de Amadores de Pernambuco. Mais que isso, essa monumental casa de espetáculos vinha sendo gerida, durante décadas, por líderes do TAP, notadamente pelo próprio Valdemar de Oliveira, alternando-se, sobretudo, com o seu irmão Alfredo de Oliveira.
Será que Hermilo e seus companheiros não conseguiram espaço na concorrida pauta do Teatro de Santa Isabel, então dirigido por Alfredo de Oliveira (um dos sócios-fundadores do TPN)? Ou teriam mudado de ideia, percebendo que a proposta de um teatro popular demandava o uso de um local menos aristocrático? Haveria a solicitação de pauta coincidido com o período de uma reforma que a nova administração municipal, do recém-empossado prefeito Miguel Arraes, iniciara no teatro? Ou será que, ao solicitar patrocínio, acharam oportuno indicar o teatro mais importante da cidade, dando quem sabe mais estofo ao pedido? O fato, porém, é que o TPN não estreou no Teatro de Santa Isabel, e sim no Teatro do Parque, espaço potencialmente mais aberto à frequentação de pessoas de variadas classes sociais. Nesse mesmo local, ficam também em cartaz as duas montagens seguintes do grupo de Hermilo e de Ariano. O Teatro do Parque, com seus mais de mil assentos, torna-se, assim, a casa do TPN até o segundo semestre de 1961. Não se pode, porém, excluir a possibilidade de que sempre tenha havido, entre os criadores do TPN, a intenção prioritária de ocupar o Teatro do Parque, mas que tal propósito não tenha sido declarado na carta pelo fato de essa casa de espetáculo, que vinha sendo usada sobretudo como cinema, somente ter sido reinaugurada no dia 13 de dezembro de 1959, após uma aguerrida campanha pela sua desapropriação, movimento liderado por figuras eminentes da cena teatral recifense, entre elas Alfredo de Oliveira, Valdemar de Oliveira e o próprio Hermilo Borba Filho. Para o prefeito Pelópidas da Silveira, velho amigo de Hermilo, a transformação do Teatro do Parque em um espaço público, municipal, era uma alternativa à sua vontade de construir um teatro popular em algum bairro do Recife, obra que, segundo ele, não pôde realizar por falta de recursos (DIAS, 2008, pp. 75-84).
O mais importante, por ora, nessa observação de que o TPN cogitou a princípio estrear no teatro mais nobre da região, é já chamar a atenção para a particularidade e para a complexidade da ideia de popular contida no projeto teatral liderado por Hermilo. Como observa, em artigo publicado em 1965, o poeta e ensaísta pernambucano Sebastião Uchôa Leite, integrante da equipe de Paulo Freire no Serviço de Extensão Cultural (SEC), da Universidade do Recife, popular naquele momento significava, muitas vezes, não propriamente a cultura feita pelo povo, mas sim a cultura feita para o povo. Ou seja, tudo o que era feito com o intento de emancipar as classes economicamente desfavorecidas (LEITE, 2016 [1965], p.38). Percebe-se que tal noção de popular subjaz às explicações apresentadas no Manifesto do Teatro Popular do Nordeste, documento redigido por Ariano Suassuna, editado por Hermilo Borba Filho, e subscrito por ambos em outubro de 1961. Ao afirmar que o popular do TPN evocava toda uma tradição histórica do teatro, nos principais momentos de apogeu dessa arte, passando pelo cânone da literatura dramática ocidental, citando “os trágicos gregos”, “a comédia latina”, “o renascimento italiano, o elisabetano”, “o século de ouro espanhol”, além de Molière, Gil Vicente, Goldoni, Schiller, Goethe e diversos destacados autores brasileiros, anuncia-se indiretamente a proposição de tentar levar toda essa cultura teatral ao povo, a fim de instruí-lo, de aprimorá-lo como consumidor de arte.
No Recife desses primeiros anos da década de 1960, como será abordado no capítulo seguinte, trava-se uma verdadeira disputa pelo uso do vocábulo popular. Enquanto o TPN, aliado às proposições de Jean Vilar, falava em levar ao povo o “eterno teatro de sempre”, outra importante iniciativa teatral, formada no Movimento de Cultura Popular (MCP), também evidenciava, ao seu modo, a compreensão de que a cultura popular era algo a ser feito para o povo – e não somente pelo povo –; neste caso, porém, o que se pretendia levar ao povo, também de cima para baixo, era, em primeiro plano, a conscientização política, o reconhecimento das opressões a que as classe populares eram submetidas. Em outros termos, temos o embate entre o teatro como arte, com o seu inerente (e imponderável) poder emancipatório, e o teatro como instrumento direto de emancipação, ou seja, o teatro a serviço de uma causa social, política. Duas visões conflitantes, levadas à frente por dois projetos igualmente repletos de trabalho sério, de boa vontade, de talento... e também de inequívoca dose de contradição.
Ao final de 1959, os ensaios do espetáculo de estreia do TPN, A pena e a lei, têm lugar na sede de O Gráfico Amador, oficina gráfica e editora, experiência liderada por ex-integrantes do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), como José Laurênio de Melo, Aloísio Magalhães, e Gastão de Holanda – sócio-fundador do TPN. Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho sempre estiveram também muito ligados a esse inovador empreendimento gráfico-editorial, atuante entre 1954 e 1961. Assim, de certo modo, pode-se pensar O Gráfico Amador como uma evidência da ligação entre o TEP e o TPN, um canal por onde ideais vividos ao final da década de 1940 e no começo dos anos de 1950 chegam, embora inevitavelmente modificados, à turbulenta e fecunda década de 1960, a década do TPN.
LUÍS AUGUSTO REIS é professor e pesquisador da UFPE, atuando sobretudo no curso de Teatro. É autor de Fora de cena, no palco da modernidade: um estudo do pensamento teatral de Hermilo Borba Filho (2009), e de Luiz Mendonça: teatro é festa para o povo (2005), este em parceria com Carlos Reis. Dramaturgo, teve diversas de suas peças encenadas, tais como: A morte do artista popular (2010) e Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade (2015).