Lançamento

História de uma amizade

Leia algumas das cartas trocadas entre Hermilo Borba Filho e Osman Lins, compiladas em obra lançada pela Cepe Editora

TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira

11 de Outubro de 2019

Ilustração Janio Santos sobre fotos de divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 226 | setembro de 2019]

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Introdução

Este não é somente um livro de correspondência, é também uma obra em que os seus protagonistas — Hermilo Borba Filho (1917–1976) e Osman Lins (1924–1978) —, por meio de cartas e bilhetes narram para nós, seus leitores, as ações e os sentimentos que vão alimentando a história de uma amizade. Uma amizade, no caso, entre dois dos maiores escritores que a literatura de língua portuguesa produziu ao longo do século XX. Ambos pernambucanos, ambos nascidos no interior (Hermilo em Palmares, Osman em Vitória de Santo Antão), ambos profundamente envolvidos em perseguir, cada um ao seu modo, uma arte que oxigenasse a dramaturgia, a literatura e as reflexões teóricas e críticas do seu tempo. Uma história de amizade que nasceu em 1959, quando Osman fora aluno de Hermilo Borba Filho no Curso de Arte Dramática, com habilitação em Dramaturgia, da então Universidade do Recife (hoje, Universidade Federal de Pernambuco).

Porém, apesar de se conhecerem desde 1959, a estima e a camaradagem entre o aluno e o professor só criaram as suas primeiras raízes quando Osman, agora ex-aluno do Curso de Arte Dramática, transferiu o seu domicílio do Recife para São Paulo. O ano da mudança de endereço, de cidade e de estado, foi 1962. Nos três anos seguintes, Osman irá lançar Marinheiro de primeira viagem e Lisbela e o prisioneiro, verá a sua peça Guerra do “cansa-cavalo” ganhar o Prêmio Anchieta, da Comissão Estadual de Teatro, do Estado de São Paulo, e assistirá a encenação de Idade dos homens. Hermilo, por sua vez, continuará ministrando as suas aulas na Universidade do Recife e se manterá à frente do Teatro Popular do Nordeste (TPN), lançará Sol das almas, traduzirá Luz da esperança, de Lloyd C. Douglas, e As origens da vida, de Jules Caries, e publicará artigos e ensaios em algumas revistas do Brasil e do exterior.

Depois de três anos distante do Recife, Osman, em São Paulo, e Hermilo, no Recife, iniciam, em 1965, um diálogo epistolar. Entre uma carta e outra, o companheirismo vai, pouco a pouco, crescendo entre eles; uma intimidade que se faz acompanhar por uma também crescente admiração mútua. Intimidade e admiração essas que se calçam em cima de muitas ideias convergentes, muitos sonhos compartilhados, muitos referentes comuns, mas que não obliteram, nem poderia ser de outro modo, as divergências estéticas, políticas, religiosas e, por extensão, as concepções e modos distintos de cada um deles ver e organizar a vida e tudo aquilo que lhes é caro.

Mas esse conjunto de cartas e bilhetes não se limita apenas a pontuar as convergências e divergências entre os autores de Deus no pasto e Avalovara (dois escritores permanentemente atentos a todas as coisas que possam dizer respeito à arte, à literatura, à dramaturgia e à reflexão teórica e crítica das linguagens artísticas), mas são também documentos preciosos que revelam, em várias passagens — seja explícita ou implicitamente —, momentos cruciais do país, do mundo, particularmente da Europa e dos Estados Unidos, e das suas vidas (a exemplo das dificuldades financeiras, dos problemas familiares, da batalha, por parte de Hermilo, em continuar produtivo depois de uma delicada cirurgia cardíaca). Assim, atentos à realidade do seu tempo, vemos desfilar, página após página, como Hermilo e Osman foram afetados pela ditadura civil-militar implantada em 1964 e, por extensão, pela censura que recaía sobre as obras artísticas e de opinião (particularmente, como essa censura terminou por interferir no dizer e no como dizer dos seus ensaios, artigos, romances, contos, novelas e peças dramáticas); como os impasses do mercado editorial brasileiro (censura, crise do papel...) terminaram por influenciar os ânimos não só dos editores, mas também do escritor brasileiro (em particular, os ânimos dos dois escritores aqui em pauta); como Hermilo e Osman, ante as agruras de escrever em uma língua periférica — o português —, buscaram abrir caminhos para a tradução das suas produções literárias no mercado editorial europeu e americano. Não só: dessas páginas vemos as idas e vindas de Hermilo para manter o seu Teatro Popular do Nordeste (TPN); a relação nem sempre pacífica de Osman com a sua prática docente; as suas considerações sobre este ou aquele personagem da vida intelectual brasileira e, por fim, um tema recorrente: o rosário de lamentos, de ambas as partes, sobre os pouquíssimos encontros e os muitos desencontros físicos, interpessoais, que eles, Osman e Hermilo, vivenciaram desde que o ex-aluno resolveu morar em São Paulo e o seu ex-professor continuou a fixar residência em Recife.

São 199 cartas e bilhetes aqui reunidos que formam uma narrativa de vida, de amizade e que jogam luz tanto sobre as produções intelectuais e artísticas dos seus missivistas quanto sobre o país e o mundo em que eles estão inseridos. (...)

***

Osman Lins

S. Paulo, 10 de julho de 1967.

Caríssimo Hermilo:

Recebi sua carta de 4 e fico esperando a remessa de cruzeiros, pelo Esmaragdo. Sempre acharei o que comprar com eles.

Espero que os editores não durmam no ponto e larguem mesmo o seu 2º volume na hora certa. (Sabe que os títulos são formidáveis?). Ficarei de olho por aqui, muito me interessa esta sua aventura.

Não pude ver, quando aí estive, O santo inquérito.  Por que você não procura analisar, [rasura] com os meios de que dispuser, a “pouca frequência do público”? Não seria o caso de tentar organizar uma espécie de clube, de assinantes, qualquer coisa assim, como se faz na Europa com ótimos resultados? Acho que não se pode, aí no Recife, ficar à espera de que as pessoas saiam de suas casas e vão ao teatro.

Quanto a Antígona, em que você vê “outra grande aventura espiritual”, sinceramente não me entusiasma. Tenho o maior respeito pela[s] suas atividades como homem de teatro. Acho-o, mesmo, dentro deste Brasil onde os menores ventos mudam os rumos das pessoas, um dos poucos indivíduos realmente tomados de paixão pelo teatro. De modo que você terá de aceitar, esta minha oposição, pelo lado melhor. Ela parte de um escritor e amigo que o põe muito alto em sua mitologia. É nesta condição que eu vejo como um equívoco a sua persistência em oferecer teatro clássico ao Nordeste.

Vivendo aí, Hermilo, talvez você tenha deixado de ver claro algumas coisas. Juro-lhe: não tem o menor sentido levar dramas gregos, ou elizabetanos,  ou racinianos no Nordeste. É puro esteticismo, por mais esforços que se procure fazer em contrário. Isso é uma terra bruta e áspera, você sabe disso. E inculta, além do mais. Uma terra à procura do que significa. São os dramaturgos daí, Hermilo, com todas as suas deficiências, que devem ser postos diante dos nossos conterrâneos. Sófocles, Ésquilo,  Eurípedes  que vão para o inferno. Seu entusiasmo, por verdadeiro que seja, é uma sobrevivência do velho Teatro do Estudante e deve ser enterrado. Um homem como você, visceralmente ligado à sua terra — todos os seus trabalhos literários mais recentes comprovam isto — não pode ter outro papel, como homem de teatro, senão o de revelar ao público de Pernambuco os textos nordestinos que ainda não tiveram sua oportunidade. Essa, sim, é a grande aventura espiritual que o espera [rasura] enquanto homem de teatro. O mais são bordados, rendas e etiqueta.

Se achar a produção do Nordeste escassa para as suas experiências, aí está o Brasil, Hermilo. Dezenas — talvez centenas — de homens como você e eu procuram, bem ou mal, interpretar nossa realidade. Errando, decerto, mas nem sempre. E, mesmo quando erram, não erram — pois procuram. Que vem fazer então, antes deles, um Antônio José? Como entender-se que toda a carga de terra, de brasilidade, mesmo de nordestinidade, todo esse indiscutível apego que existe em você ao que é nosso não veja isso?

Pode crer: dói-me um pouco esta argumentação. Sei muito bem o que são os sonhos e não sou insensível à esperança, mesmo à alegria com que você me faz a comunicação relativa a Antígona e à peça do Antônio José. Mas, sinceramente, não me é possível silenciar a minha oposição. Eu faltaria à lealdade que me impõem a amizade e a admiração que tenho por você.

Pede-me para contar meus planos sobre o diabo de obra que está sendo gerada. É justamente um ensaio (160 páginas já escritas) sobre os problemas do escritor brasileiro, dentre os quais não é dos menos graves o divórcio entre o escritor nacional e os grupos teatrais.

Faço questão de saber que significado terá para você esta carta. Apertado abraço do seu

Osman.

***

Hermilo Borba Filho

Recife, 29 de agosto de 1967.

Meu caro Osman:

Como encaro a sua carta? Com respeito e crença. É evidente que nossos pontos de vista têm pontos de contato, mas acho exagerado o seu nacionalismo e com isto me preocupo porque, quase sempre, uma posição nacionalista radical — em política ou arte — pode conduzir a uma consciência fascista. Compreenda-me, pelo amor de Deus: não estou dizendo que é o seu pensamento, mas tenha cuidado para não cair, quando nada, no jacobinismo.

Osman Lins, Leda Alves e Hermilo Borba Filho. Foto: Reprodução

O Teatro Popular do Nordeste tem um programa em relação a textos: os clássicos e os autores brasileiros. Não temos fugido dessa linha. Creio na atualidade do clássico e creio justamente na medida em que o clássico vem ao encontro da nossa posição de homem da hora atual. Montei dois nesta nova fase do TPN: O inspetor, de Gógol, e Um inimigo do povo, de Ibsen. O primeiro denunciava, dentro do espírito épico, anti-ilusionista que preside as nossas encenações, a corrupção administrativa e o ridículo das classes armadas; o segundo denunciava, ou melhor, rasgava o abscesso da demagogia e a falsa compreensão de massa. Que acontece com Antígona? O abuso da autoridade e a violentação do indivíduo. Não acha que isto é de uma atualidade a toda prova? Aí estão os IPMs  e aí está a realidade nordestina, principalmente tendo você em vista que a “roupagem” do espetáculo induz o espectador a [rascunho] situar-se numa situação que se repete há séculos e que estamos, nela, sofrendo. Não creio que o teatro consiga interessar gratuitamente ao público, um público que, do ponto de vista didático, precisa ser reformado na medida em que deseje ser reformado. Estamos vivendo uma época terrível e cabe a nós, artistas, lutar com as nossas armas pela sobrevivência do homem no momento e sua vivência integral através de exemplos. Montamos dois autores brasileiros: Dias Gomes e Hermilo Borba Filho. O primeiro com uma denúncia — O santo inquérito — o segundo com uma farsa plautina  à maneira nordestina, de sabor de região. E por que Antônio José? Por que todos nós sentimos a necessidade de ser Quixotes contra as baionetas e as bombas. Não é uma forma de luta? Além disto, a peça está dentro do espírito nordestino lúdico, do bestiário,  da imaginação, dos cantos, do mamulengo  (Você sabia que ele escreveu a peça para um teatro de bonecos?)  Todas as peças que citei estão perfeitamente enquadradas dentro da nossa linha anti-ilusionista, com bases muito menos em Brecht, por exemplo, que no Bumba-meu-boi.  Quero peças brasileiras que não copiem a estética naturalista e realista, que não seja uma “talhada de vida”, um engodo, que obriguem o público a participar do espetáculo e não recebê-lo empaticamente, mas enquanto essas peças não chegam por que não lançar mão dos clássicos, amoldados às nossas necessidades, eternos? Esta é a nossa luta e a nossa função. O Nordeste é uma região que se transforma e o teatro tem de transformar-se com ela, deixando de ser puramente anedótico para ser contundente, agressivo, revolucionário, do HOMEM. E ainda mais: do HOMEM NOVO. Creio que isto significa lutar por um sentido exato de nacionalidade, em vez de nos colocarmos numa posição enquadrada (ou quadrada?), de brasileiros por brasileiros, quando o que conta são as dores do mundo: dos vietnamitas,  dos negros americanos,  da opressão capitalista e das ditaduras marxistas. Aqui gritamos, através de qualquer texto que nos dê o exemplo, mas com um espetáculo que se case com a nossa estética que, acreditamos, é a que satisfaz na hora. E hora grave. Mas para terminar, recorro à frase de praxe dos contabilistas: “salvo erro ou omissão”.

Um grande abraço do seu

Hermilo.

***

Troca de cartas - 1973

Hermilo Borba Filho

Recife, 26 de março de 1973.

Osman, caro:

Boas vindas, rapaz! E com notícias muito boas. Viva! Deve ter recebido cobres de NOVE, NOVENA,  acertou publicação nova com outro editor (ou é o mesmo?), fez amizades, gostou de Álvaro  e Luísa.  Tudo muito bem. Você merece tudo isto e o céu também (Lembra-se desta velha piada?). Sem consultá-lo antes tomei uma providência em relação ao seu novo romance . Veja lá. Não sei se lhe disse que o José Otávio Bertaso,  da GLOBO , me telefonou de Porto Alegre, sabendo-me sem editor (Por causa do problema da concordata da Civilização),  colocando a editora à minha disposição. Desde então, temos mantido uma correspondência que se vai tornando cada vez mais amigável, graças também às cutucadas que ele recebe de dois amigos comuns: Érico Veríssimo e Regina Zilberman (Regina foi para a Alemanha, com uma bolsa,  especializar-se: é um crítico excelente e quer aprofundar-se nos meandros do estruturalismo).  Como resultado disto, já lhe enviei, há dias, o meu novo livro: O GENERAL ESTÁ PINTANDO, novelas. Sabe o que fiz? Escrevi ao José Otávio dizendo que você também estava sem editor por calhordices de editor e que era o cúmulo, mais: um crime, permitir que o seu livro fosse publicado na França e não aqui também. José Otávio vai escrever-lhe. Você decidirá. Desculpe a liberdade. A GLOBO está querendo reassumir a liderança de ficção no país e dessa vez mais interessada em nós outros, os nacionais. É mais uma frente, caro. Vamos lá!

E basta por hoje, beijos de Leda  para você e Julieta  (Zé Olímpio tem pago a ela?).  Toma lá, também com Julieta, o abraço fraternal de

Hermilo. 

***

Osman Lins

S. Paulo, 3 de abril de 1973.

Meu caro Hermilo,

Antes de tudo, muito obrigado pela sua interferência. Ignorava que a Globo  andasse pensando em reassumir a liderança da ficção entre nós. Grande parte da minha formação como escritor, e creio que também da sua, foi feita com base nas excelentes traduções daquela casa. Ainda não recebi correspondência do José Otávio Bertaso, mas fico à espera.

Na realidade, não me desliguei da Martins  exatamente por calhordice do editor, isto é, não sei bem o que você quer dizer por calhordice. Bem: eles não me serviam. São acomodados e, a meu ver, não têm amor à obra literária. Sim, talvez você tenha razão, talvez isso seja mesmo calhordice, em se tratando de um editor.

Submeti o romance à Melhoramentos, onde também parece que estão planejando certas mudanças. Sabe o que é? Esse pessoal começa a ver  que a literatura brasileira está indo à gloria e que a degringolada está dando na vista. Sabem também que há alguns nomes de peso e que estes não estão (não estamos) pedindo pinico, mas construindo a sua obra com decisão que nada pode destruir. Então... Vamos ver em que dá tudo isso. Por mim, fico muito contente com o que lhe sucedeu, esse telefonema do extremo Sul do país. Bolas! Meu abraço.

Emplacamos facilmente, eu e o Álvaro.  Tive pena, Hermilo (aqui para nós), daquele sacrifício, daquela família. Você imagine que estúpido monstro um regime que torna impossível, no país, a permanência de pessoas como aquelas.  Se pudesse, faria alguma coisa pelo Álvaro. Já pensou, Hermilo? Viver numa cidade como Paris  exclusivamente de atividades literárias modestas, já que ele não tem (pelo menos, não tem ainda) um nome como escritor? Como no velho frevo-canção, é de amargar. 

Vou aí na Semana Santa. Então, nos veremos. J.O.  faz tempo que não se acusa em relação a Julieta  e o melhor é nem insistir, para não ter o desprazer de receber um cheque com 30 ou 40 cruzeiros... até breve. Abraços nossos para você e Leda. 

Seu

Osman. 

***

Osman Lins

Marília, 16 de maio de 1973.

Hermilo velho,

Espero que tenha recebido a encomenda: queijo e margarina. Acho que o problema da escassez do leite trouxe escassez nos derivados. Julieta  não achou logo o produto. Claro: ela não podia ir todos os dias ao supermercado, por causa da vida dura que está levando, com os dois expedientes diários e três aulas semanais de inglês. Esta semana, ela nem fez as compras, ao contrário do que sempre faz; mandou a empregada. Quanto ao seu amigo, como passo quase metade da semana em Marília, raramente saio de casa quando estou em casa. Tudo isso para justificar a demora. Espero que tenha tudo chegado em ordem. Julieta não encontrou as marcas que vocês pediram.

Quanto à Globo,  continuo à espera. Nada me disseram ainda a respeito da obra, enviada, lembro-me agora, exatamente há um mês. Compreende-se. Os leitores devem estar meio perturbados com o texto. Vamos torcer para que se definam favoravelmente.

Estamos destinados a não conversar tranquilamente. De qualquer modo, deu para matarmos um pouco as saudades. Isto para não falar no miraculoso sabor dos pratos, apesar de serem de regime.

Continuo trabalhando com os livros do velho Lima Barreto.

Afetuosamente, abraça-os o velho

Osman.

***

Hermilo Borba Filho

Recife, 23 de maio de 1973.

Osman, caro:

Recebi o queijo e a margarina por um seu amigo. Muito obrigado. Quando o seu amigo passou por aqui eu não estava, depois ele telefonou. Trata-se de um lusitano? Tem piada.

Estou estranhando que você não me tenha escrito até agora. Que é que há? Ocupação? Doença? Algum transtorno? Fico inquieto. — Fiz o meu check-up costumeiro e foi tudo bem. A radiografia acusou uma diminuição ainda maior do coração, que havia crescido muito com a operação, o exame clínico constatou que tudo estava em ordem. Apenas o exame de sangue mostrou algumas substâncias alteradas, o que já se começou a corrigir.

A Globo  lança O GENERAL ESTÁ PINTANDO em outubro. E quanto a você, já lhe deram alguma notícia? Ando brigando com Mário da Silva Brito por causa de AGÁ. Não aceito as desculpas dele. Vamos ver.

Beijos de Leda  para você e Julieta. Acompanho-a, comedidamente, já se vê.

Hermilo.

***

Osman Lins

S. Paulo, 26 de maio de 1973.

Hermilo velho,

Peço — a sério — não fazer comentários, para não desprestigiar o autor e mais ainda o livro: meu romance foi recusado pela Globo.  A notícia talvez o surpreenda, mas não a mim. Não direi que tivesse certeza da recusa; mas não confiava muito na aceitação.

Chateiam-me duas coisas: Uma é que o Bertaso  entregou o livro a alguém para leitura, retirando a folha de rosto (com o título e o nome do autor), para que o julgamento fosse feito com isenção. Resultado: a leitura foi  feita sem que o texto se projetasse sobre obras anteriores; e, nos cálculos sobre a vendagem do livro, não se pesou  o nome do escritor, o grau de conhecimento de que desfruta junto ao público, à crítica e à imprensa. [rasura]

A outra coisa a aborrecer-me é que o parecerista, evidentemente, não leu nem 1/3 da obra. Nós, macacos velhos, conhecemos perfeitamente quando uma opinião é emitida sem conhecimento de causa. Basta dizer-lhe que não há, no parecer (que foi remetido), uma só palavra sobre o tema ou temas do livro, nada sobre os lugares onde é ambientado, nada sobre qualquer dos personagens. Atém-se a generalidades, acentuando o caráter filosófico da obra e com gratuidades como estas: “O autor usa de uma complicação intencional e por vezes exagerada, porque desnecessária.” / “... uma releitura crítica do próprio livro levaria o autor a fazer consideráveis cortes e reduções, eliminando uma série de redundâncias” (grifo meu) / “Não se trata de um livro de leitura fácil ou agradável.” / “inclui longas dissertações de cunho filosófico” / “possui grau de imaginação” (?!) / “a linguagem é cuidada” (Obrigado.) / “consideramos muito arriscada, do ponto de vista comercial, a edição”. Assim por diante. Como vê, tudo vaguidões, generalizações que não dizem o que o livro é. Pois foi simplesmente baseado nisso, que o nosso empresário tomou a sua decisão. Mas não sei ainda se escreverei a ele sobre essas coisas ou se, simplesmente, encerro o caso. De qualquer modo, o seu amigo continua sem editor.

Apresso-me em comunicar [rasura] isto a você  que me encaminhou generosamente — e confiantemente — à Globo. Abraços muito afetuosos da Julieta  e do seu

Osman.

***

Osman Lins 

S. Paulo, 31 de maio de 1973.

Hermilo, caríssimo,

Recebi hoje sua carta de 23 e fiquei contente com as notícias: do seu estado físico e da próxima saída do seu livro na GLOBO.  Como já lhe escrevi, eles recusaram o meu romance, baseados num parecer insuficiente sob todos os pontos de vista.

Coincidentemente, na mesma semana, recebi carta do editor Bompiani, comunicando-me que acabava de tomar a decisão de publicar AVALOVARA em italiano. Convenço-me do slogan governamental: A solução é exportar. Mesmo porque continuo ainda sem editor na minha querida pátria (?)! A coisa é verdadeiramente sem comentário: um livro já acolhido por dois editores europeus, ainda não encontrou lugar no próprio país.

Fiz uma intervenção cirúrgica num dente (coisa brutal, com marteladas nos queixos) e estou ainda convalescendo. Como tudo tem sua compensação, não viajei para Marília, passando em casa uma semana inteira[,] o que há tempo não acontecia.

Uma palavra ao amigo: não se preocupe com o meu problema editorial. A coisa custa, mas sai. Não estou impaciente.

Abraços e beijos indiscriminados, do seu

Osman.

***

Hermilo Borba Filho

Recife, 11 de junho de 1973.

Osman, meu querido:

Pelo amor de Deus! Jamais supus que a Globo  fosse recusar o seu romance. Isto dá uma ideia total e definitiva da burrice de certos editores. Menos deles, aliás, que dos leitores. Mas os leitores são contratados pelos editores. Logo... Para mim foi uma surpresa brutal, um choque. Lamento tudo, muito menos por você (que fatalmente encontrará um editor brasileiro, já tendo um francês e um italiano — é o cumulo, isto — quando nada depois da repercussão do livro na Europa) que pelos leitores e o próprio editor que perde essa oportunidade de tê-lo entre os seus editados. Acho que você deve estar, quero dizer, deve escrever a José Otávio,  mostrando-lhe os erros do leitor. Isto servirá como orientação. Acho que não deve colocar uma pedra em cima, simplesmente. Ao contrário: deve apontar o erro, a burrice. Se você me der licença[,] também falarei ao José Otávio, que se mostra tão meu amigo. Quando nada para dizer-lhe que está errado. Jogo no seu romance no escuro, sem conhecê-lo e passo a não acreditar no leitor da Globo. Que merda!

Acho que daqui para setembro passaremos aí em São Paulo. Das duas uma: ou estaremos só de passagem para o Paraguai, onde vou dar um curso sobre teatro contemporâneo, ou (Atenção que isso lhe interessa) vou lançar o Prêmio Nordeste de Romance.  É uma iniciativa da COSINOR, siderúrgica do meu amigo Arthur Lima Cavalcante. 1172 É um prêmio de 20 mil cruzeiros para livro, isto é, romance publicado entre agosto de 1972 e agosto de 1974, ou então para romance inédito. Quero dizer: 20 mil e 20 mil para outro [sic]. Isto interessa a você e a Julieta,  se publicam ou se estão inéditos. Você tem a tradição de ganhar concursos. Anime-se. Vou lançar o Prêmio aqui, no Rio e em São Paulo, o Prêmio sendo válido para todo o Brasil.

Queijo e margarina recebidos, já lhe disse em carta anterior (Estou aqui com três cartas suas: 16, 26 e 31 de maio). Muitíssimo obrigado e desculpem o trabalho dado a Julieta, a quem Leo está escrevendo junto a esta carta. Gostei muito da observação dela sobre o nosso apartamento e como nos veríamos se se desse à nobre arte da pintura. — Carta de Álvaro,  de Paris, [rasura] mandando-me, em francês, o prefácio para RIVE DES [rasura] SOUVENIRS e dizendo-me que o romance sairá em princípios de 74. Devo receber carta de André Bay  neste sentido. A propósito: você soube que SOBRADOS E MOCAMBOS — a peça — foi proibida pela Censura até para leitura pública?  Houve noticiário em jornais e revistas. C’est La fin.  — Finalmente, definitiva carta de Ênio  sobre AGÁ, que sairá no segundo semestre deste ano. Viva! — Vamos ver se dessa vez, na provável ida nossa a São Paulo, teremos uma noite descansada para falar, ficar calados muito tempo, discutir, discordar, concordar, que amizade é isto. Toda a nossa amizade para você e Julieta.

Hermilo.

ANCO MÁRCIO é professor do programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é autor, dentre outros livros, de Dante, a poesia e a sua forma crítica (PPGL/Ed.UFPE, 2017) e é organizador dos livros Orley Mesquita: prosa e verso (CEPE, 2012) e o Teatro Completo de Luiz Marinho (CEPE, 2019, 4 vol).

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