Erotismo à brasileira
Leia alguns textos da coletânea 'O corpo descoberto – Contos eróticos brasileiros (1852-1922)', organizada por Eliane Robert Moraes e lançada pela Cepe Editora
ORGANIZAÇÃO ELIANE ROBERT MORAES
FOTOS FÁBIO SEIXO
01 de Agosto de 2018
Foto Fábio Seixo
[conteúdo na íntegra (degustação) | edição 212 | julho de 2018]
Nota organizadora
Este livro não se pretende uma antologia, adequando-se melhor à ideia de seleção. Embora apresente uma amostra da escrita erótica produzida no Brasil entre 1852 e 1922, ele se restringe exclusivamente ao conto, não se aventurando em outros gêneros da prosa de ficção. Além disso, cabe dizer que o volume tampouco esgota a lista de contos eróticos do período pesquisado, uma vez que se limita a obras de domínio público, ou seja, aquelas criadas por autores que faleceram até o ano de 1948.
Os contos aqui presentes foram organizados segundo um princípio temático, que se introduz por meio de 10 eixos, os quais se revelaram os mais constantes do conjunto. Tal critério tomou por modelo a Anthologie de la poésie érotique française (Paris: Fayard, 2004) que o adotou com sucesso. Organizada por Jean-Paul Goujon, essa antologia dá testemunho de que, no caso da erótica, os temas transversais não raro se constituem como estruturas internalizadas que aquilatam o plano formal. Assim, em vez de ignorar as singularidades formais, tal princípio expõe precisamente a qualidade das respostas literárias a determinados acontecimentos objetivos e subjetivos da vida sexual, evidenciando o processo de transfiguração dos acontecimentos que é próprio da literatura.
No nosso caso, a seleção temática foi considerada mais produtiva do que a cronológica também pelo fato de que o conjunto abrange apenas 70 anos da história literária brasileira. Por tal razão, considerou-se interessante a perspectiva de reunir um grupo de contos que dialogassem entre si, independentemente de sua vinculação aos diversos movimentos literários que se sucederam no período. Pretendeu-se com isso iluminar importantes questões de fundo que dizem respeito ao imaginário erótico em questão, abrindo ao leitor a fértil possibilidade de que um conto possa explicar o outro.
No decorrer da pesquisa, tentou-se sempre buscar a fonte escrita mais antiga, mas a prudência obriga a não tomar por originais as referências aqui apresentadas, o que de certa forma vale para todo o conjunto. No intento de tornar a leitura mais fluente, a grafia de algumas palavras foi atualizada. Afora isso, os contos foram reproduzidos tal qual aparecem nas fontes elencadas na bibliografia, à qual remetemos também o leitor que pretende aprofundar o assunto. Em boa parte desses livros encontram-se introduções, prólogos, glossários, notas explicativas e outras informações que podem ser de interesse.
DOS EXCESSOS DA NOITE
O impenitente
Aluísio Azevedo
Conto-vos o caso, como m’o contaram.
Frei Álvaro era um bom homem e um mau frade. Capaz de todas as virtudes e de todos os atos de devoção, não tinha todavia a heroica ciência de domar os impulsos do seu voluptuoso temperamento de mestiço e, a despeito dos constantes protestos que fazia para não pecar, pecava sempre. Como extremo recurso, condenara-se nos últimos tempos a não arredar pé do convento. À noite, fechava-se na cela, procurando penitenciar-se dos passados desvarios; mas só reprimir o irresistível desejo de recomeçá-lo era já o maior dos sacrifícios que ele podia impôr à sua carne rebelde.
Chorava.
Chorava, ardendo de remorsos por não poder levar de vencida os inimigos de sua alma envergonhada; chorava por não ter forças para fazer calar os endemoniados hóspedes do seu corpo, que, dia e noite, lhe amotinavam o sangue. Quanto mais violentamente procurava combatê-los, tanto mais viva lhe acometia o espírito a incendiária memória dos seus amores pecaminosos.
E no palpitante cordão de mulheres, que em vertigem lhe perpassavam cantando diante dos desejos torturados, era Leonília, com seus formosos cabelos pretos, a de imagem mais nítida, mais persistente e perturbadora.
Em que dia a vira pela primeira vez e como se fizera amar por ela, não o sei, que esses monásticos amores só chegam a ser percebidos pelos leigos como eu, quando o fogo já minou de todo e abriu em labareda, a lançar fumo até cá fora. À primeira faísca e às primeiras brasas, nunca ninguém, que eu saiba, os pressentiu, nem deles suspeitou.
Certo é que, durante belos anos, Frei Álvaro, meia-noite dada, fugia aos muros do seu convento e, escolhendo escuras ruas e cosendo-se à própria sombra, ia pedir à alcova de Leonília o que lhe não podia dar a solidão da cela.
Pertenceria só ao frade bela moça? Não o creio.
E ele? Seria só dela? Também não, pois reza a lenda, donde me vem o caso, que, em vários outros pontos da cidade, Frei Álvaro era igualmente visto fora de hora, embuçado e suspeito, correndo, sem dúvida, em busca de profanas consolações daquele mesmo gênero.
Mas, no martírio da reclusão a que por último se votara, era seguramente a lembrança de Leonília o seu maior tormento. E assim aconteceu que, certa noite, à força de pensar nela, foi tal o seu desassossego de corpo e alma, que o frade não pôde rezar, nem pôde dormir, nem pôde ler, nem pôde fazer nada. Com os olhos fechados ou abertos, tinha-a defronte deles, linda de amor, a enlouquecê-lo de saudade e de desejo.
Então, desistindo da cama e dos livros, pôs-se à janela, muito triste, e ficou longo tempo a consultar a noite silenciosa. Lá fora a lua, ainda mais triste, iluminava a cidade adormecida, e no alto as estrelas pareciam que pestanejavam de tédio. Nada lhe mandava um ar de consolação para aquela infindável tortura de desejar o proibido.
De repente, porém, estremeceu, sem poder acreditar no que viam seus olhos.
Seria verdade ou seria ilusão dos seus atormentados desejos?... Lá embaixo, no pátio, dentro dos muros do convento, um vulto de mulher passeava sobre o lajedo.
Não podia haver dúvida!... Era uma mulher, uma mulher toda de branco, com a cabeça nua e os longos cabelos negros derramados.
Céus! E era Leonília!... Sim, sim, era ela, nem podiam ser de outra mulher aqueles cabelos tão formosos e aquele airoso menear de corpo! Sim, era ela... Mas como entrara ali?... Como se animara a tanto!...
E o frade, sem mais ter mão em si, correu a domar o chapéu e a capa e lançou-se como um doido para fora da cela.
Atravessou fremente os longos corredores, desgalgou a escadaria de pedra, e ganhou o pátio.
Mas o vulto já lá não estava.
O monge procurou-o, aflito, por todos os cantos. Não o encontrou.
Correu ao parapeito que dava do alto para a rua, sobre o qual se debruçou ansioso, e, com assombro, descobriu de novo o misterioso vulto, agora lá fora, a passear embaixo, à luz do lampião de gás.
Já impressionado de todo, Frei Álvaro desceu em um relance as escadas do átrio, escalou as grades do mosteiro e saltou à rua.
O vulto já não se achava no mesmo ponto; tinha-se afastado para mais longe. Frei Álvaro atirou-se para lá, em disparada, mas o vulto deitou a correr, fugindo na frente dele.
— Leonília! Leonília! Espera! Não me fujas!
O vulto corria sempre, sem responder.
— Olha que sou eu! Atende!
Leonília parou um instante, voltou o rosto para trás, sorriu, e fugiu de novo quando o monge se aproximava.
Afinal, já não corria, deslizava, como se fora levada pelas frescas virações da noite velha, que lhe desfraldavam as saias e os cabelos flutuantes.
E o monge a persegui-la, ardendo por alcançá-la.
— Atende! Atende! Flor de minha alma! Suplicava ele, já com a voz quebrada pelo cansaço. Atende pelo amor de Deus, que deste modo me matas, criminosa!
Ela, ao escutar as sentidas vozes, parecia atender, suspendendo o voo, não por comovida, mas por feminil negaça, a rir provocadora, braços no ar e o calcanhar suspenso, pronta, mal o frade se chegasse, a desferir nova carreira.
E assim venceram ambos ruas e becos, quebrando esquinas, cortando largos e praças. O frade já tinha perdido a noção do tempo e do lugar, e estava prestes a cair exausto, quando vendo a moça tomar certa ladeira muito conhecida deles dois, criou ânimo e prosseguiu na empresa, sem afrouxar o passo.
— Vai é recolher-se em casa!... Concluiu de si para si. Não quis falar na rua... Ainda bem!
Leonília, com efeito, ao chegar à porta de casa, onde outrora o religioso fruía as consolações que o seu mosteiro lhe negava, enfiou por ela e sumiu-se sem ruído.
O frade acompanhou-a de carreira, mas já não a viu no corredor e foi galgando a escada. Encontrou em cima a porta aberta, mas a sala tenebrosa e solitária; penetrou nela, tateando, e seguiu adiante, sem topar nenhum móvel pelo caminho.
— Leonília! Chamou ele.
Ninguém lhe respondeu.
O quarto imediato estava também franqueado, também deserto e vazio, mas não tão escuro, graças à luz que vinha da sala do fundo. O religioso não hesitou em precipitar-se para esta, mas, ao chegar à entrada, estacou, soltando um grito de terror.
Gelara-lhe o sangue o que se lhe ofereceu aos olhos. Eriçaram-se-lhe os cabelos, invencível tremor apoderou-se do corpo inteiro.
A sala de jantar, onde tantas vezes, feliz, ceara a sós com Leonília, estava transformada em câmara mortuária, toda funebremente paramentada de cortinas de veludo negro, que pendiam do teto consteladas de lantejoulas e guarnecidas de caveiras de prata. Só faltava o altar. No centro, sobre uma grande eça, também negra e enfeitada de galões dourados, havia um caixão de defunto. Dentro do caixão um cadáver todo de branco, cabelos soltos. Em volta, círios ardiam, altos, em solenes tocheiros, cuspindo a cera quente e o fumo cor de crepe.
O monge, lívido e trêmulo, aproximara-se do cadafalso. Olhou para dentro do caixão e recuou aterrado.
Reconhecera o cadáver. Era da própria mulher que pouco antes o fora buscar ao convento e o viera arrastando até ali pelas ruas da cidade.
Sem ânimo de formular um pensamento, o frade deixou-se cair de joelhos sobre o negro tapete do chão e, arrancando do seio o seu crucifixo, abraçou-se com este e começou a rezar fervorosamente.
Rezou muito, de cabeça baixa, o rosto afogado em lágrimas. Depois, ergueu-se, foi ter à eça, pôs-se na ponta dos pés para poder alcançar com os lábios o rosto do cadáver e pousou nas faces enregeladas um extremo beijo de amor.
Em seguida, olhou em derredor de si, desconfiado e tímido, e, como não houvesse na sala uma só imagem sagrada em companhia da morta, desprendeu do pescoço o crucifixo e foi piedosamente dependurá-lo na parede, à cabeceira dela.
Mas, nesse mesmo instante, as tochas apagaram-se de súbito e fez-se completa escuridão em torno do impenitente. Foi às apalpadelas que ele conseguiu chegar até à porta de saída e ganhar a rua.
Lá fora a noite se tinha feito também negra e os ventos se tinham desencadeado em fúria, ameaçando tempestade. O monge deitou a fugir para o mosteiro, sem ânimo de voltar o rosto para trás, como temeroso de que Leonília por sua vez o perseguisse agora até ao domicílio.
Quando alcançou a cela, tiritava de febre.
Acharam-no pela manhã sem sentidos, defronte do seu oratório, joelhos em terra, braços pendidos, cabeça de borco sobre um degrau do altar.
Só muitos dias depois, um dia de sol, conseguiu sair à rua, ainda pálido e desfeito. Seu primeiro cuidado foi correr aonde morava Leonília e rondar a casa em que a vira morta.
Encontrou-a fechada com o letreiro anunciando o aluguel.
— Está vazia depois que nela morreu o último inquilino, explicou um vizinho.
— Há muitos dias? Quis saber o frade. E estremeceu quando ouviu dizer que havia uns oito ou dez.
— E o morador quem era? Perguntou ainda.
— Era uma mulher. Chamava-se Leonília... Morreu de repente...
—Ah!
— Se quer alugar a casa, encontra a chave ali na esquina....
Frei Álvaro agradeceu, despediu-se do informante, foi buscar a chave, abriu a porta, entrou e percorreu toda a casa.
Só ele, além de Deus, soube a impressão que sentiu ao contemplar aquelas salas e aqueles quartos.
— Estranho caso!... disse consigo, sem ânimo de olhar de rosto para o temeroso abismo da sua dúvida. Fui vítima de uma alucinação que coincidiu com a morte desta querida cúmplice dos meus pecados de amor...
E, enxugando os olhos, ia retirar-se conformado com a dupla dor da saudade e do remorso, quando, ao passar rente de certa parede, estremeceu de novo.
Tinha dado com os olhos no seu crucifixo, do qual já se nem lembrava. Permanecia pendurado no mesmo ponto em que o monge o deixara na terrível noite.
DOS OBJETOS DE DESEJO
O vaso
Olavo Bilac, sob o pseudônimo de Bob
Oh! o lindo, o lindo vaso que Celina possuía! e com que carinho, com que meiguice tratava ela as flores daquele vaso, o mais belo de toda a aldeia!
Levava-o a toda a parte: e, no seu ciúme, na sua avareza, não queria confiá-lo a ninguém, com medo de que mãos profanas estragassem as raras flores que nele viçavam. Ela mesma as regava, de manhã e à noite; ela mesma as catava cuidadosamente todos os dias, para que nenhum inseto as roesse ou lhes poluísse o acetinado das pétalas. E em toda a aldeia só se falava do vaso de Celina. Mas, a rapariga, cada vez mais ciosa do seu tesouro, escondia-o, furtava-o às vistas de todo o mundo. Oh! o lindo, o lindo vaso que Celina possuía!
Certa vez, (era por ocasião das colheitas) Celina acompanhou as outras raparigas ao campo. A manhã era esplêndida. O sol inundava de alegria e de luz a paisagem. E as raparigas iam cantando, cantando; e as aves nas árvores gorjeando, e as águas do riacho, nos seixos da estrada, murmurando, faziam coro com elas. E Celina levava escondido seu vaso. Não quisera deixá-lo em casa, exposto à cobiça de algum gatuno. E os rapazes diziam: “Aquela que ali vai é Celina, que possui o mais belo vaso da aldeia”.
Por toda a manhã, por toda a tarde, a faina da colheita durou. E, quando a noite desceu, cantando e rindo as raparigas desfilaram, de volta à aldeia. Celina, sempre retraída, sempre afastada do convívio das outras, deixou-se ficar atrasada. E, sozinha, pela noite escura e fechada, veio trazendo o seu vaso precioso...
Dizem na aldeia que aqueles caminhos são perigosos: há por ali, rodando nas trevas, gênios maus que fazem mal às raparigas...
Não se sabe o que houve: sabe-se que Celina, chegando a casa, tinha os olhos cheios de lágrimas, e queixava-se, soluçando, de que haviam roubado as flores do seu vaso. E não houve consolação que lhe valesse, não houve carinho que lhe acalmasse o desespero. E os dias correram, e correram as semanas, e correram os meses, e Celina, desesperada, chorava e sofria: “Oh! as flores! as flores do meu vaso que me roubaram!...”
Mas, ao fim do nono mês, Celina consolou-se. Não tinha recuperado as flores perdidas... mas tinha nos braços um pimpolho. E o João das Dórnas, um rapagão que era o terror dos pais e dos maridos, dizia à noite, na taverna, aos amigos, diante dos canecos de vinho:
— Ninguém roubou as flores da rapariga, ó homens! Eu é que lhes fiz uma rega abundante, porque não admito flores que estejam toda a vida sem dar frutos...
DAS VIRGENS PROFANADAS
O caso de Ruth
Júlia Lopes de Almeida
A Valentim Magalhães
Pode abraçar sua noiva! Disse com bamboleaduras na papeira flácida a palavrosa baronesa Montenegro ao Eduardo Jordão, apontando a neta, que se destacava na penumbra da sala como um lírio alvíssimo irrompido entre os florões grosseiros da alcatifa.
Ele não se atreveu, e a moça conservou-se impassível.
— Não se admire daquela frieza. Olhe: eu sei que Ruth o ama, não porque ela o dissesse — esta menina é de um recato e de um melindre de envergonhar a própria sensitiva — mas porque toda ela se altera quando ouve o seu nome. O corpo treme-lhe, a voz muda de timbre e os olhos brilham-lhe como se tivesse fogo lá por dentro. Outro dia, porque uma prima mais velha, senhora de muito respeito, ousasse pôr em dúvida o seu bom caráter, a minha Ruth fez-se de mil cores e tais coisas lhe disse que nem sei como a outra a aturou!
Toda a gente percebe que ela o ama; mas é uma obstinada e lá guarda consigo o seu segredo... Agora, que o senhor vem pedi-la, é que eu lhe declaro que estava morta por que chegasse esse momento. Apreciei-o sempre como um coração e um espírito de bom quilate.
— Oh! Minha senhora...
— Não lhe faço favor. Além disso, Ruth está com vinte e três anos: parece-me ser já tempo de se casar. Há de ser uma excelente esposa: é bondosa, regularmente instruída, nada temos poupado com a sua educação: e se não aparece e brilha muito na sociedade é pelo seu excesso de pudor. Eu às vezes cismo que esta minha neta é pura demais para viver na terra. Todas as pessoas de casa têm medo de lhe ferir os ouvidos e escolhem as palavras quando falam com ela. Não admira: a mãe teve só esta filha e foi rigorosíssima na escolha das mestras e das amigas; o padrasto tratava-a também com muita severidade, embora fosse carinhoso. Um santo homem! Desde que ele morreu que nos falta a alegria em casa... A mulher, coitada, como sabe, ficou paralítica; e esta pequena mesmo tornou-se melancólica e sombria. Às vezes penso que ela fez voto de castidade, tal é o seu recato; desengano-me lembrando-me de quanto é moderada na religião e de que o seu bom senso se revela em tudo! O que tenho a dizer-lhe, portanto, é isto: afirmo-lhe que Ruth o adora e que não há alma mais cândida, nem espírito mais virginal que o seu. Aí a deixo por alguns minutos; se é o respeito por mim que lhe tolhe as palavras, concedo-lhe plena liberdade.
Eduardo fixou na noiva um olhar apaixonado. Na sua brancura de pétala de camélia não tocada, Ruth continuava em pé, no mesmo canto sombrio da casa. Os seus grandes olhos negros chispavam febre e ela amarrotava com as mãos, lentamente, em movimentos apertados, o laço branco do vestido.
A baronesa acrescentou ainda, carregando nas qualidades da neta e fazendo ranger a cadeira de onde se erguia:
— Ruth nunca foi de lastimeiras, e, apesar de mimosa e de aparentemente frágil, tem boa saúde. Um bom corpo ao serviço de uma excelente alma. Dirão: “Estas palavras ficam mal na boca”... Pouco importa: não são a verdade. Tenho outras netas, filhas de outras filhas: tenho criado muitas meninas, minhas e alheias, mas em nenhuma encontrei nunca tanta doçura, tanta altivez digna e tanta pudicícia. Aí lha deixo: confesse-a.
A velha saiu.
Todos os rumores da rua rolaram confusamente pela sala. A porta que se abriu e fechou trouxe, numa raja de luz, os repiques dos sinos, o rodar dos veículos, o sussurro abominável da cidade atarefada: mas também tudo se extinguiu depressa. A porta fechou-se, as janelas voltadas para o jardim mal deixavam entrar a claridade, coada por espessas cortinas corridas, e os noivos ficaram sós, silenciosos, contemplando-se de face.
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O finado barão fora um colecionador afincado de móveis e de outros objetos dos tempos coloniais. Súdito de D. João VI de que a sua adorável memória acusava ainda todos os traços já aos noventa anos, era sempre o seu assunto predileto a narração dos sucessos históricos presenciados por ele. À proporção que se ia afastando dos seus dias de moço, mais aferrado se fazia aos gostos e às modas do seu tempo.
Só se servia em baixela assinada com os emblemas da casa bragantina e a propósito de qualquer coisa dizia, fincando o queixo agudo entre o indicador em curva e o polegar: —“Lembro-me de uma vez em que D. Carlota Joaquina”... Ou então: — “Em que D. João VI ou D. Pedro I” etc. e em seguida lá vinha uma descrição de um te Deum, ou de uma procissão, que a sua imaginação facultosa emprestava as mais brilhantes pompas. A família tinha um sorriso condescendente para aquele apego, já sem curiosidade, à força de ouvir repetir os mesmos fatos. Os amigos evitavam tocar, de leve que tosse, em assuntos políticos, receosos da lonjura do capítulo que o barão a propósito lhes despejasse em cima: mas só ele, o bom, o fiel, nada percebia, e, com os olhos no passado, toca a citar ditos e atitudes dos imperadores e a curvar-se numa idolatria pelo espírito boníssimo da última imperatriz.
Alguma coisa disso se refletira em casa: tudo ali era sóbrio, monótono e saudoso.
Cadeiras pesadas, de moldes coloniais, largas de assento, pregueadas no couro lavrado de coroas e brasões fidalgos, uniam as costas às paredes, de onde um ou outro quadro sacro pendia desguarnecido e tristonho.
Assim o quisera ele, que até mesmo na hora suprema rejeitara um belo crucifixo que lhe oferecia o padre, voltando os olhos suplicemente para um outro crucifixo mais tosco, erguido sobre a cômoda, e que pertencera a D. Pedro I.
Para ele, naquela cruz não estava só o Cristo: estavam, de envolta com o respeito pelos monarcas extintos, as lembranças de seus folguedos de moço. Talvez mesmo, num volteio súbito da memória, se lembrasse das festas religiosas em que namorara, à sombra dos conventos, a sua primeira mulher, e beliscara com fremias amorosas os braços gordos de Janoca, a mulatinha mais faceira de então... Quem sabe? Talvez que na hora da morte não se possa só a gente lembrar as coisas sérias.
Qualquer hora vivida pode ser recordada rapidamente, sem tempo de escolha.
Como a Janoca não pertencia à história, a família ignorou-a; e pelo ar gélido daquela galeria de espectros palacianos não apareceu nem um requebro quente da mulatinha risonha, que lhes desmanchasse a compostura.
Depois de viúva, a segunda baronesa reformara algumas coisas e confundira os estilos, pondo no mesmo canto um contador Luiz XV, um móvel da Renascença e uns tapetes modernos, entre largos reposteiros de seda cor de marfim.
Aquela extravagância não conseguira quebrar a severidade do todo. Tinha uma fisionomia casta e grave aquela sala.
As virgens dos quadros, de longo pescoço arqueado e rosto pequenino, gozavam ali o doce sossego de uma meia tinta religiosa.
Mas, lá dentro, os dias passavam entre o tropel da criançada, os sons do piano de Ruth e a confusão dos criados.
E era por isso que todos fugiam lá para dentro e que só Ruth, nas suas horas de inexplicável tristeza, se encerrava ali, em companhia da Madona da Cadeira e da Virgem de S. Sisto.
Era nessa mesma sala que ela estava ainda, muda e pálida, em frente do seu amado.
— Ruth... balbuciou Eduardo.
Mas a moça interrompeu-o com um gesto e disse-lhe logo, com voz segura e firme:
— Minha avó mentiu-lhe.
O noivo recuou, num movimento de surpresa; foi ela que aproximou-se dele, com esforço arrogante e doloroso, deslumbrando-o com o fulgor de seus olhos belíssimos, bafejando-lhe as faces com o seu hálito ardente.
— Eu não sou pura! Amo-o muito para o enganar. Eu não sou pura!
Eduardo, lívido, com latejos nas fontes e palpitações desordenadas no coração, amparou-se a uma antiga poltrona, velha relíquia de D. Pedro I, e olhou espantado para a noiva, como se olhasse para uma louca. Ela, firme na sua resolução, muito chegada a ele, e a meia voz, para que a não ouvissem lá dentro, ia dizendo tudo:
— Foi há oito anos, aqui, nesta mesma sala... Meu padrasto era um homem bonito, forte: eu uma criança inocente... Dominava-me: a sua vontade era logo a minha. Ninguém sabe! Oh! Não fale! Não fale, pelo amor de Deus! Escute, escute só; é segredo para toda a gente... No fim de quatro meses de uma vida de luxúria infernal, ele morreu, e foi ainda aqui, nesta sala, entre as duas janelas, que eu o vi morto, estendido na essa. Que libertação, que alegria que foi aquela morte para a minha alma de menina ultrajada! Ele estava no mesmo lugar em que me dera os seus primeiros beijos e os seus infames abraços; ali! ali! oh, o danado! mais do que nunca o quero mal agora! Não fale, Eduardo! Minha avó morreria, sofre do coração: e minha mãe ficou paralítica com o desgosto da viuvez... Desgosto por aquele cão! e ela ainda me manda rezar por sua alma, a mim, que a quero no inferno! Às vezes tenho ímpetos de lhe dizer: “Limpa essas lágrimas; teu marido desonrou tua filha, foi seu amante durante quatro meses...” Calo-me piedosamente; e acodem todos: que não chorei a morte daquele segundo pai e bom amigo!
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— É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência, mas cedi. Dou-lhe a liberdade de restituir a sua palavra à minha família.
Ruth falara baixo, precipitando as palavras, toda curvada para Eduardo, que lhe sentia o aroma dos cabelos e o calor da febre.
Em um último esforço, a moça fez-lhe sinal que saísse e ele obedeceu, curvando-se diante dela, sem lhe tocar na mão.
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O outro está morto há oito anos... ninguém sabe, só ela e eu... Está morto, mas vejo-o diante de mim: sinto-o no meu peito, sobre os meus ombros, debaixo de meus pés, nele tropeço, com ele me abraço em uma luta que não venço nunca! Ninguém sabe... mas por ser ignorada será menor a culpa? Dizem todos que Ruth é puríssima! Assim o creem. Deverei contentar-me com essa credibilidade? Bastará mais tarde, para a minha ventura, saber que toda a gente me imagina feliz? O meu amigo Daniel é felicíssimo, exatamente por ignorar o que os outros sabem. Se a mulher dele tivesse tido a coragem de Ruth, amá-la-ia da mesma maneira? Se a minha noiva não tivesse me dito nada, não seria o morto quem se levantasse da sepultura e me viesse relatar barbaramente as suas horas de volúpia, que me fazem tremer de horror! E eu, ignorante, seria venturoso, amaria a minha esposa, à sombra do maior respeito e com a mais doce proteção... E assim?! Poderei sempre conter o meu ciúme e não aludir jamais ao outro?
Ele morreu há oito anos... ela só tinha quinze... ninguém sabe! Só ela e eu!... e ela ama-me, ama-me, ama-me! Se não me amasse e fosse em todo caso minha dir-me-ia do mesmo modo tudo? Não... parece-me que não... não sei... se não me amasse... nada me diria! Daí, quem sabe? Amo-o muito para o enganar parece-me que lhe ouvi isto! Se eu pudesse esquecê-la! Não devo adorá-la assim! É uma mulher desonrada. A pudica açucena de envergonhar sensitivas é uma mulher desonrada... E eu amo-a! Que hei de fazer agora? Abandoná-la... não seria digno nem generoso... Aquela confissão custou-lhe uma agonia! Se ela não fosse honesta não afrontaria assim a minha cólera, nem se confessaria àquele que amasse só para não sentir a humilhação de o enganar. E o que é por aí a vida conjugal senão a mentira, a mentira, e mais ainda, a mentira?
O outro está morto... ninguém sabe, só ela e eu! Ela e eu! O que nos importam os outros, tendo toda a mágoa em nós dois só?! Antes todos os outros soubessem... Não! Que será preferível — ser desgraçado guardando uma aparência digna, ou...? Não! em certos casos ainda há alguma felicidade em ser desgraçado... Ela ama-me... eu amo-a... ele morreu há oito anos... já não lhe falam sequer no nome... Ninguém sabe! ninguém sabe... só ela e eu!
Eduardo Jordão passava agora os dias em uma agitação medonha. Atraía e repelia a imagem de Ruth, até que um dia, vencido, escreveu-lhe longamente, disfarçando, sob um manto estrelado de palavras de amor, a irremediável amargura da sua vida. “Que esquecesse o passado... ele amava-a... o tempo apagaria essa ideia, e eles seriam felizes, completamente felizes.”
O casamento de Ruth alvoroçava a casa. A baronesa ocupava toda a gente, sempre abundante em palavras e detalhes. Só Ruth, ainda mais arredia e séria, se encerrava no seu quarto, sem intervir em coisa alguma.
Relia devagar a carta do noivo, em que o perdão que ela não solicitara vinha envolvido em promessas de esquecimento. Esquecimento! Como se fosse coisa que se pudesse prometer!
A moça, de bruços na cama, com o queixo fincado nas mãos, os olhos parados e brilhantes, bem compreendia isso.
Entraria no lar como uma ovelha batida. O perdão que o noivo lhe mandava revoltava-a. Pedira-lhe ela que lhe narrasse a sua vida dele, as suas faltas, os seus amores extintos? Não teria ele compreendido a enormidade do seu sacrifício? Seria cego? Seria surdo?... dono de um coração impenetrável e de uma consciência muda? As suas mãos estariam só afeitas a carícias que não procurassem estrangulá-la no terrível instante em que ela lhe dissera — eu não sou pura? Ou então por que não a ouvira de joelhos, compenetrado daquele amor, tão grande, que assim se desvendava tudo?! Ele prometia esquecer? Mas no futuro, quando se enlaçassem, não evocariam ambos a lembrança do outro? Talvez que, então, Eduardo a repelisse, a deixasse isolada no seu leito de núpcias, e fugindo para a noite livre fosse chorar lá fora o sonho da sua mocidade... Sim, a sua noite de núpcias seria uma noite de inferno! Se ele fosse generoso ela adivinharia através da doçura do seu beijo os ressaibos da lembrança do primeiro amante: e quanto maior fosse a paixão, maior seria a raiva e o ciúme.
Esquecimento!... Sim, talvez, lá para a velhice, quando ambos, frios e calmos, fossem apenas amigos.
Queria um veneno que a fizesse adormecer sonhando; e quanto dera para que nesse sonho fosse um beijo de Eduardo que lhe pousasse nos lábios!
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De luto a casa. Ramos e coroas virginais entravam a todo o instante. Quem saberia explicar a morte de Ruth? Foram achá-la estendida na cama, já toda fria.
Agora estava entre as duas janelas, na grande sala sombria, espalhando sobre o fumo da essa as suas rendas brancas e o seu fino véu de noiva. Parecia sonhar com o desejado esposo, que ali estava a seu lado, pálido e mudo.
Entravam já para o enterro e foi só então que uma voz disse alto, saindo da penumbra daquela sala antiga:
— Vai ficar com o padrasto, no mesmo jazigo... Eduardo fitou a morta com doloroso espanto. Estava linda! Na pele alvíssima nem uma sombra. Os cabelos negros, mal-atados na nuca, desprendiam-se em uma madeixa abundante, de largas ondas.
— Quê! Seria ainda para o outro aquele corpo angélico, tão castamente emoldurado nas roupas do noivado? Seria ainda para o outro aquela mocidade, aquela criatura divina, que deveria ser sua?!
E a mesma voz repetiu:
— Vai ficar com o padrasto...
Com o padrasto, noites e dias... fechados... unidos... sós! Fora para isso que ela se matara, para ir ter com o outro! Aquele outro de quem via o esqueleto torcendo-se na cova, de braços estendidos para a reconquista da sua amante.
Alucinado, ciumento, Eduardo arrancou então num delírio o véu e as flores de Ruth, e inclinando um tocheiro pegou fogo ao pano da essa.
E a todos que acudiram nesse instante pareceu que viam sorrir a morta em um êxtase, como se fosse aquilo que ela desejasse...
DAS MULHERES DA VIDA
Na janela
Lima Barreto
— Você sabe: o Alfredo não me trouxe o broche.
— Que desculpa ele deu?
— Que o 7 não tinha dado a noite toda...
— Vai ver, Mercedes, que ele foi gastar com a Candinha... Ah! os homens! São uns malandros!
— Não sei, mas... enfim todos eles são iguais.
— No começo é aquilo, parece que a gente é pouca ou que eles são muito mais. Vivem atrás de nós, descobrem, adivinham os nossos pensamentos; depois... não sei o que dá neles... esfriam, esfriam...
— Meu marido foi assim. No tempo de noivo, nem sabia falar quando estava perto de mim; olhava-me só e o seu olhar parecia que me vestia, que me beijava, que me ameigava... Meses depois de casada, deixou-me só, sem dinheiro, sem parentes, nesta cidade tão grande... Bem fez você que não se casou!
— Mas namorei...
— Muitos?
— Sem conta!
— Você não amou nenhum?
— Não sei... Creio que todos me agradavam o bastante para casar.
— É difícil compreender.
— Ora, é fácil... Eu fui sempre engraçada. Aos treze anos, quando saía com meu pai, todos na rua me olhavam. Um dia até, no bonde, uma senhora de aparência rica, muito grande, muito alta, perguntou a meu pai: é sua filha? Sim, respondeu ele. A senhora olhou-nos muito, a mim e a ele, virou a cara e sorriu duvidosa. Aos quatorze, tive o primeiro namorado. Era o caixeiro da venda... Um portuguesinho louro, que dizia “binho”, “benda”, mas com uns olhos azuis cor do céu pelas bonitas manhãs. E daí não parei mais. Tive um segundo, um terceiro... quando cheguei ao quinto já escrevia cartas. Minha mãe pegou uma e deu-me uma surra; mas não me emendei — continuei. Não sabia resistir... Eles choravam, juravam... e eu namorava quase ao mesmo tempo. Era como se — em grande riqueza inesgotável — não negasse esmolas. Você sabe: quando se tem muito vai se dando. Parece que não acaba; mas acaba e então chora-se pitanga. Fui assim: pediam-me beijos, abraços, cabelos; e eu dava por pena, unicamente. Se eu tivesse sido mais sovina, não estava “nesta vida”... E a sorte, que se há de fazer?
— Mas, e o “tal”?
— É verdade! Um dia fui a um baile, como sempre, tinha lá uma chusma de adoradores; mas apareceu um novo. Não sabia quem era, muito diferente de todos. Educado, parecia doutor ou estudante de verdade, de estudos difíceis. Olhou-me e eu olhei, e namorei-o. Não troquei palavra. Dancei com ele e o ouvi falar a um outro. Que voz! Antes da meia-noite saiu. No outro ano, em dia de festa na mesma casa, já não pude ir lá mais; tinha vindo a tal encrenca... corpo de delito... Você sabe... Não deu em nada; ou antes: deu “nisto”.
— Nunca mais você viu “ele”?
— O “tal”? Há dois anos que sempre o vejo na Rua do Ouvidor, nos teatros...
— Ele não fala com você?
— Não. Olha-me um instante e baixa a cabeça.
— Engraçado! Outro qualquer...
— É verdade! Perguntei quem era, disseram é um doutor fulano de tal e é solteiro.
— Mas nunca você procurou falar com ele?
— Só uma vez. Cheguei-me e sem mais aquela sentei-me à mesa em que estava. Perguntei-lhe se não me conhecia. De vista, respondeu. Se não tinha ido a um baile assim, assim. Nunca! afirmou. Contei-lhe então a história e indaguei-lhe se, de fato, fosse ele não se daria a conhecer. Hesitou e, por fim, respondeu-me umas coisas embrulhadas que, afinal, me pareceu quererem dizer que eu, a menina do baile, era outra coisa que não sou eu mesma atualmente; e quem me tinha visto no baile não me via ali, num jardim de teatro.
— Era um tolo; um...
— Não. Eu o vi, mais tarde, muito alegre, com uma outra no automóvel...
Nos elétricos que passavam, os passageiros que olhavam aquelas duas mulheres com olhares cheios de desejos não seriam capazes de adivinhar a inocência de sua conversa, na janela de uma casa suspeita.
ELIANE ROBERT MORAES, professora de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do CNPq e autora de diversos ensaios, entre eles: O corpo impossível (Iluminuras/Fapesp, 2002/2016), Lições de Sade – Ensaios sobre a imaginação libertina (Iluminuras 2006/2011) e Perversos amantes e outros trágicos (Iluminuras, 2013).
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EXTRA:
Confira na íntegra a matéria de capa da edição #172, de abril de 2015, sobre literatura erótica.
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