Geralmente

Verso do guardanapo

TEXTO Karina Buhr

10 de Outubro de 2022

Ilustração Karina Buhr

Uma pizza de queijo prato, queijo coalho e molho de queijo. Tem uma quatro queijos, moça. Obrigada, quero a de três mesmo. Ela é mais cara. Me veja, por favor, a outra então. Todo mundo prefere a outra quando falo do preço. O garçon solidário. A máquina de bolinhas de chiclete, em compensação, na dobra da esquina no banheiro, fica na altura exata dos olhos das crianças, uma covardia. Elas param na frente, prendendo o xixi na última hora, encanto com as cores e a possibilidade de uma moeda só gerar isso esse brinde espetacular. Esferas brilhantes, de toda cor de toda fruta, o aroma que chama moeda, criança sugada pela oferta. Na altura dos menores também tem outra maquininha, um tamanho certo pra cada qual, agora que vi, eu e o bebê da mesa do lado.

Molho de quê? Não entendi. Qual molho na pizza? Não é o de queijo que vem acompanhando? Esse era o da outra. Certo, não sei mais, molho de sem molho. Seca? Não muito, só sem molho. Obrigada. Eu que agradeço. Molho de choro, rodelas finas de pepino, que esqueceu de tirar pra sair de casa, caem das olheiras, que vão do canto de dentro, esticando pras laterais, até só acabarem porque terminou mesmo o tamanho da cara. O cabelo vem logo depois, desanimado, pendendo mais pro lado contrário da franja repartida, nem liga, beleza é besteira. Os discos de pepino com três queijos escorregam derretidos, bom o gosto, mas só importa o tempo passando, respiração de conflito, mas é só a ansiedade desses dias, que já são alguns anos, mas dizem que daqui a três semanas passa.

Antes do cardápio eu estava pensando no poeta, se ele ia encontrar umas palavras aqui e rir, escrever um bilhete pra vender pelas mesas, pra alguns comprarem e outros não, mesmo todos gostando. Uma poesia bonita, barato demais. Ele iria para outro canto, o roteiro com outras dezenas de coisas, agrupadas por modalidade, nas listas com preços. Ele tinha muitos amigos. Quem não era amigo dele queria ser, quem não quer ser amigo de um poeta? Digo, de alguém como ele, tem poeta que é chato, é comum de gente, em toda profissão acontece. Era certeiro, às vezes só uma frase riscada arranhando por onde passava, uma roupa bonita, ele sempre estava bonito, mesmo quando tudo era desmorono. Uma bata amarela, um estrondo. Uma camisa de flores com babado na borda do braço, espaço pra muito vento no pescoço. Todo mundo chorou foi rios, não era coisa pra se acreditar. "Que sorte ter vivido no mesmo tempo que ele" e essas coisas que se diz quando se tenta falar coisa bonita sobre a morte, já que não tem jeito, mostrar pros outros a importância que é pra você. Ele andava por toda rua. No outro dia sempre o mesmo, mas nunca igual.

A pizza esfriou, massa de queijo emborrachado, o garçon olhando pra minha cara de pepino com um ar de pena. Falei pra ele não se preocupar, pedi pra embalar pra viagem. Na saída do estabelecimento, ele trouxe um guardanapo rabiscado, moça, você esqueceu! Desculpa, mas eu li sem querer, vi que tem escrito "o céu é no sexto andar", é o livro de Miró, não é? Você conhece ele? Quem não conhece? Tem gente que não conhece, acredita? Saí mais pra feliz do que pra triste, melhor do que quando entrei e olhe que nem jantei. Vim pra falar do poeta e escrever no verso do guardanapo. O guardanapo não tem verso. Agora tem. A caneta velha rasgou algumas letras:

MIRÓ MORREU
MAS FOI UMA VEZ SÓ
QUANTAS VEZES VIVEU MIRÓ?


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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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