Anteontem fumaça transparente flutuava dentro e fora do cofre sem segredo. Talvez alguém que tentou arrombar com dinamite, ou foi só um cigarro nos dedos de um ladrão em abstinência. Gelo seco toma a cena, o palco turva miúdo pras vistas atentas que acabam de desistir.
Mais tarde você entra na história, o poeirão tomou todos os cômodos e os seus olhos lá, abertos, sem sofrer nem doer, preparados pro risco que são, pestanas de ferro com rímel velho embolotado. Mas foi miragem porque isso tudo era antes, hoje em dia todos te compram. Eu preferia quando era só o aluguel.
O sucesso apazigua valentes.
Esquece minha cabeça de miaeiro, agora a voz no telefone me diz "suspendemos o serviço por falta de pagamento, para religar sua energia contate-nos pelo app, site, telefone ou agende atendimento presencial".
É preciso estar bem-sucedida.
A chuva forte rasga o teto do planeta bem em cima dessa cidade e eu corro pra fechar as janelas, mas lembro que isso era quando era na sua casa. E faz tanto tempo.
Aqui não molha.
Meu amigo morava sozinho num apartamento e ficou dois anos sem sair de casa, todos em volta preocupados, quem é que consegue passar dois anos sem sair de casa? Umas plantas nascendo nas esquinas das paredes, xingava quem passava na rua. Uns anos depois eu e quase todos os meus amigos de classe média fizemos o mesmo. Quem passa dois anos sem sair de casa?
A gente passou.
Amanhã meu crânio balançado expelirá gavetas velhas de madeira e metal de tétano, boletos com traça, asas de barata e cartas péssimas de pessoas que não lembro de onde conheço, nem por que me tratam com tanta intimidade.
Com a chave enferrujada feche tudo e me garanta que não vai contar pra ninguém.