Geralmente

Desculpe, Uauê!

TEXTO Karina Buhr

12 de Maio de 2023

Ilustração Karina Buhr

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

Década de 1980, mulheres penduradas nas bancas de revista, a maioria nua, como musas ou namoradas de alguém, amantes ou então mãe (branca) com bebê (branco), existindo pra enfeitar um mundo masculino, numa rinha de competição. Até tenho uma música velha sobre isso “na banca de revista, buceta, punheta e regime, no máximo bebês, no máximo decoração e jardinagem”. Não sei se faz sentido sem a melodia. Com a melodia também não sei se faz, não importa, só lembrei. Na época, a ridícula e cafoníssima frase “desejada pelos homens e invejada pelas mulheres” era repetida por homens da imprensa sempre que uma nova gostosa despontava. Rita se pendurava em outras árvores, ela tinha Rocambole, o namorado dela, que quando os dois se beijavam se engoliam. O apelido dele era Uauê, ela fez uma música pedindo desculpas, ela não queria magoar ele. Ela usava um batom vermelho maior que a boca e eu imitava. 

Nesse texto de maio, dias depois de Rita viajar na luz, quando falo “eu” sou eu mesmo, é tipo carta, aquilo que se mandava pelo correio. Todo mês insisto “gente, não sou eu, é um personagem!”, mas agora é diferente. 

Lá por aqueles tempos descobri um camarada chamado Mick Jagger e pensei eita, imita Rita Lee também! O tempo foi mostrando que todos se engoliam, não só o namorado dela, nem eram cópias os brincantes do rock, eram influências e bebidas na fonte. As letras que ela fazia iam mudando de sentido pra mim conforme o calendário, música mutante. 

Essa menina lançava esse perfume e influenciava todo mundo, é mentira que só influenciou mulheres. Claro que ela abriu um monte de caminho pras mulheres, mas representatividade não é na base do menina influencia menina e menino influencia menino. Lembrei de minha amiga Elke Maravilha, que falava “eu não sou mulher, eu sou gente”. Enquanto isso eu cantava o refrão “laça, laça perfume”, bem criança rodeio. 

Cheguei em São Paulo, muito chão pós-bancas de revista com musas penduradas feito morcego, e ouvi alguém falar “desbaratinar”. Como assim, o pessoal transformou em verbo a palavra que Rita Lee inventou?   

Achei engraçado muita coisa que li falando do teor sexual, sensual de muitas letras e eu nunca tinha visto assim, música é mesmo mistério. O que se escreve chega de um jeito aqui e às vezes o contrário ali, quem ouve também compõe. Tantas Ritas, tantos significados. “Me deixa de quatro no ato” pra mim era, sei lá, o ato da peça de teatro, de quatro, era não sei, pra ver se estava bêbada, fazendo assim com a perna sem cair? 

Fui lendo as homenagens, todo mundo de algum jeito muito abalado por tudo que essa mulher fez, tão bonito ver o alcance disso, relembrar, rever fotos, vídeos, entrevistas, até secar e acordar no outro dia no mesmo pique, um vazio imenso e ao mesmo tempo preenchimento completo, que sorte nossa que ela deu uma passadinha por aqui pra arrombar a festa. Pensando nela rindo vendo as homenagens que ela já tinha previsto, a feiticeira era o que lhe interessava, e não a perseguição da juventude, disse pra Bruna Lombardi, quando tinha um pouco menos que a idade que tenho hoje. Emocionante o coro cantando Lança perfume no velório, no planetário todo do jeito que ela pediu pra estar, e Rocambole filmando.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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