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Laroyê Evoé

TEXTO Karina Buhr

14 de Julho de 2023

Ilustração Karina Buhr

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Era Cacilda! no Recife, em algum armazém do porto. Zé Celso me chamou pra tocar e o primeiro momento foi do lado de fora, no cais, com pescadores de uma baiteira que passava na hora batendo palmas e acenando enquanto a gente acenava de volta e cantava "lá no cemitério tem uma caverna toda salpicada de pingo de vela, de quem é meu pai? De quem é, meu pai? É Omolu que mora nela...". Na beira do mar, com Zé, aprendi que um lírio era Billie Holiday, a flor atuava, que aquele Walmor era Walmor Chagas, que Cacilda Becker tinha morrido em cena.

Em 2001, cheguei de mala e cuia em São Paulo no Teatro Oficina pelo convite de Zé feito em 1998, na Soparia, depois de um show da Comadre Florzinha. Ele disse "vocês são as pastoras que comeram o véio", falando de pastoril. O convite foi pra fazer As Bacantes na virada do século. A porta pesada de ferro, um teatro com uma pista no meio que começava enladeirada, onde se atuava, assistia e participava de cima da platéia, de baixo, de frente, de trás, dos lados, em cima do telhado, na rua, no meio, dentro. Zé era Tirésias, o profeta cego que via na gente o que a gente nem sabia que tinha ou guardava fundo e ele trazia o vômito de tudo na cena, o deleite na direção divina que guardo tudo dela, cada suspiro e também as agonias. Fácil nunca foi, nem tinha como. Foi e é das importâncias maiores. 

Às 6:15 de uma manhã de encerramento de um ensaio corrido e aberto de A Luta II, que começamos às 18h da véspera (só paramos nos 20 minutos de intervalo a cada seis horas) eu tinha que entrar de Sandy cantando um cavalo marinho na última cena, mas meu juízo derreteu e eu só conseguia rir e uma risadagem contida ecoou na pista. Nos reunimos na sequência em roda, pros comentários de Zé e ouvi um diretor contrariado reclamar que "teve atriz que fez corpo mole". Eu não fiz, ele estava mole mesmo, mas agradecida pelo atriz, é palavra que tomo como um elogio. A morte me lembra de maravilhas e de besteiras.

Entre 2001 e 2007, depois de Bacantes em cartaz e gravação do DVD vieram Os Sertões - A Terra, O Homem I, O Homem II, A Luta I e A Luta II - muitas estreias e depois tudo completo, de quarta a domingo, em São Paulo e uma turnê por Berlim, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Quixeramobim e Canudos. Sim, a gente foi pra Quixeramobim, terra de Antônio Vicente Mendes Maciel! Sim, a gente foi pra Canudos! 

Em Quixeramobim, fomos recebidos com festa, pela banda na frente da igreja - e Brasilina Sylvia, belíssima, encenou o casamento - pelo boi, pelo bloco… cantamos "adeus, amigo, adeus nosso amor, até para o ano, se nós vivo for! O nosso bloco não tem igual, Adeus, amigo, não há outro igual!". Em Canudos também tivemos festa, o MST e filas imensas por ingresso a cada manhã, lotamos o teatro todos os dias. Tivemos a participação da banda de lata dos Sem Terrinha tocando Asa Branca. Minha mãe apareceu de madrugada, de surpresa, foi direto pro forró. Estávamos quase todos hospedados nas casas dos moradores atuadores, tínhamos um mapa da cidade como um grande teatro. Em Canudos, tivemos fartura. Lembro de frutas, sombrinhas coloridas pro sol rimando com os vestidos, macaxeira, inhame e milho, a lan house, crianças, jovens, velhos e velhas, motoboys de dia fazendo o transporte de todo mundo e de noite bailando de cueca e capacete levantado na mão, pulando ao som da balada eletrônica da cena da festa orgya de O Homem II.

A estrutura de ferro do Oficina, feito um disco voador no sertão de Os Sertões. Lá, minha Ceguinha Joventina, personagem de O Homem II e A Luta II, tinha uma cabrinha que andava com ela, presente emprestado de um menino de Canudos, que eu me envergonho de não ter feito diário de tudo e não ter guardado o nome dele. Ele levava o bode, que eu chamava de cabra, e alimentava o bichinho ali do lado até a hora das cenas de Joventina. "Adeus, bichinhos!" falava Zé na cena da morte de Conselheiro, concentrada, cheia de fogo, inesquecível. 

Me arranhei forte na barriga e pisei num prego numa descida brusca, o corpo com óleo, água e barro, numa esquina de escada das ferragens de Lina plantadas em Canudos. Tomei uma antitetânica que meu braço não ficou bom, não, e parti pra cena com dor, normal de quem tem um corpo. Virou a música Avião Aeroporto. A dose complementar fui tomar depois em São Paulo, mas não deu certo, a enfermeira fez careta e disse “essa vacina não se aplica há anos no Brasil”. Eu tomei no Brasil. "Você vai precisar esperar mais tempo". Esperei mesmo, até hoje não completei, ando sem poder pisar em prego. 

A fonte da Ethernidade, da Oxum, do teatro de Lina, semana passada ficou lotada de coroas de flores de grupos de teatro, de amigos, artistas, lideranças de todo canto, de Lula e Janja. Dormi e acordei pensando nele naqueles poucos dias entre o fogo e a morte decretada, eu cheia de esperanças, feito todo mundo ao redor. Acordei e a notícia pulou na minha cara, como é nos tempos de hoje, em que notícias nos dão murros, sem preparação, nem pausa. Perguntei pra Camila Mota o que fazer, onde encontrá-la e ela disse “estou indo pro Hospital das Clínicas”. 

Liguei pra Celsim e ele ainda não sabia. Choramos devagar e combinamos de encontrar Camila e quem desse no hospital. Cheguei às 10h30. Do lado de fora, a imprensa posicionada e eu zonza furando a pequena multidão de jornalistas e lambida pelo burburinho deles nos microfones "morre Zé Celso", "o diretor do Teatro Oficina faleceu essa manhã", "um incêndio leva o gênio do teatro brasileiro". Fazia um pouco de frio com sol, fazia São Paulo. Dois velhos do meu lado conversavam tranquilos e curiosos com tanto jornalista.

- Morreu alguém famoso?
- Parece que foi aquele velho do incêndio do apartamento.
- Mas ele não morreu não, morreu?
- Morreu.
- Como é mesmo o nome dele?
- João alguma coisa
Eu falei é Zé. Zé? Sim, Zé Celso.

Chegou Pascoal da Conceição e Lúcia Gayotto, abraços de amor e tempo. Não ensaiamos isso. E agora? A gente chorava com risos e a memória falava pela nossa boca. "Vocês são atores do Oficina?", perguntou uma repórter que filmava a gente meio de longe. Sim. Luciana baca da medicina vem lá de dentro e nos atualiza sobre as coisas da carne, "o Zé não tá mais aí". Abraços, me diz que vou dar o compasso do dia com meu tambor. A gente, esse elenco gigante, antigo e novo, junto com o público de todos os tempos, se dirigiu espontaneamente por dois dias, era Zé na gente, devorado, espalhado, uma coisa muito impressionante. Chegou Fabiana Perosa, Celsim. Jornalistas cercaram Pascoal no que virou uma coletiva de imprensa. Ele, mestre, ministro do teatro e das comunicações, atualizava a imprensa na firmeza e lágrimas. Um jornalista não foi pra roda em volta de Pascoal e veio entrevistar a mim, Celsim e Lúcia. Perguntou quem a gente era, qual nossa ligação com Zé e falamos rindo, meio fracos, que éramos bacantes. Celso respondeu a uma pergunta cantando uma música, aprendemos assim, eu e Lucia só assinamos embaixo.

Vamos pro teatro, agora! Zé não está mais aí, Luciana já disse. Zé foi pro teatro. Por volta das 13h, chegamos e fomos encontrando os mais próximos. Dor, muita dor. Chegou Marcelo, o que podemos falar sobre dor? Tudo. Marcelo, Ricardo e Victor estão vivos! E Nagô. Vivas!

Deu 16h e tive que ir passar o som pro show que eu tinha às 20h. Fiz o show e voltei direto pro teatro com meu tambor. Uma multidão explodida pela rua. Elisete Jeremias me disse pra puxar o cortejo na frente do carro que já ia chegar com o corpo. O corpo de Zé. Ali fiquei, do lado do bebedouro, na frente da bilheteria. Ito Alves maestro veio ver como estava do lado de fora e me falou “Você vem com a gente, vamos sair do palco juntos”. Fomos. Ito mudou de ideia e disse “Vá puxar o carro mesmo, você, Lagartixa e mais alguém que não lembro o nome agora”. Lagartixa eu não via desde 2007. Abraçamos. O carro vem vindo e começo a tocar baixo, movida pela brisa, no que meus amigos me acompanham, Carlota Joaquina rege todo mundo com palmas na cadência daquela coisa tão triste e tão bonita. Era um coro guerreiro, era tudo o que Zé foi e é, todos aprendemos, a multidão respirava junta na levada solene.

Entramos até o Citerron das bacantes, do lado da árvore que fica dentro e fora do vidro. Abriu-se o caixão, o corpo exposto pra ser velado. Ouvi um samba na rua, era Mariano Mattos corifeu e fui puxada feito ímã, corri pra rua como nas peças e voltamos multiplicados. Éramos gente pra tudo quanto é lado, lotação de estreia, de encerramento, de qualquer coisa muito maior, éramos mutação de apoteose, cordão de ouro, líquens, sertanejos, soldados, zabaneiras, o Bixiga, um coro vivo, ligado, concentrado absurdamente na dor e no êxtase da alegria do Teat(r)o.

Às 6h, já quase sem voz de uma noite virada de gritos, cantos e encontros pra além do antes e depois, tive que ir embora, dormir alguma coisa, tinha show de novo e ia precisar cantar. Acordei 9h30 agoniada, não queria ter vindo embora e achava que não dava mais tempo de voltar pro teatro, mas Celsim falou “Estou indo”. Também estou. Cheguei às 11h, faz um ano desde às 10h de ontem. O teatro respira uma calma triste e ressacada, alguns dormem pelos cantos, muitos virados, com purpurina, suor e coroas de hera, outros chegaram de manhã, uns de outras cidades. O sol brilhava tudo, cantamos mais um pouco, mais palmas, balidos, gritos, energia total, silêncio e mais música, bacantes de novo em cena e o momento que ia chegar de todo jeito, o caixão sendo levado por amores pra fora do teatro, dessa vez pra cremação. Precisei de cada segundo daquilo tudo, queria que não acabasse, queria mais e entendi que o que vai dar conta são os palcos. O espetáculo Mutação de Apoteose segue no nosso terreiro eletrônico e pipocam notícias de mais e mais acontecimentos. O livro de Letícia Coura, que já vinha e veio. Cada espetáculo, show, filme, festa que a gente fizer e assistir, cada ingresso comprado, vendido, cada aplauso dado e recebido, ali vai ter Zé, o rito é vivo, sem sala de visita, na fé cênica, etherno. "Ô, Zé, quando for lá pra lagoa toma cuidado com o balanço da canoa! Ô, Zé faça tudo o que quiser, ô, Zé, só não maltrate o coração dessa mulher!". 

Obrigada, mestre!

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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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