- Parece que foi aquele velho do incêndio do apartamento.
- Mas ele não morreu não, morreu?
- Morreu.
- Como é mesmo o nome dele?
- João alguma coisa
Eu falei é Zé. Zé? Sim, Zé Celso.
Chegou Pascoal da Conceição e Lúcia Gayotto, abraços de amor e tempo. Não ensaiamos isso. E agora? A gente chorava com risos e a memória falava pela nossa boca. "Vocês são atores do Oficina?", perguntou uma repórter que filmava a gente meio de longe. Sim. Luciana baca da medicina vem lá de dentro e nos atualiza sobre as coisas da carne, "o Zé não tá mais aí". Abraços, me diz que vou dar o compasso do dia com meu tambor. A gente, esse elenco gigante, antigo e novo, junto com o público de todos os tempos, se dirigiu espontaneamente por dois dias, era Zé na gente, devorado, espalhado, uma coisa muito impressionante. Chegou Fabiana Perosa, Celsim. Jornalistas cercaram Pascoal no que virou uma coletiva de imprensa. Ele, mestre, ministro do teatro e das comunicações, atualizava a imprensa na firmeza e lágrimas. Um jornalista não foi pra roda em volta de Pascoal e veio entrevistar a mim, Celsim e Lúcia. Perguntou quem a gente era, qual nossa ligação com Zé e falamos rindo, meio fracos, que éramos bacantes. Celso respondeu a uma pergunta cantando uma música, aprendemos assim, eu e Lucia só assinamos embaixo.
Vamos pro teatro, agora! Zé não está mais aí, Luciana já disse. Zé foi pro teatro. Por volta das 13h, chegamos e fomos encontrando os mais próximos. Dor, muita dor. Chegou Marcelo, o que podemos falar sobre dor? Tudo. Marcelo, Ricardo e Victor estão vivos! E Nagô. Vivas!
Deu 16h e tive que ir passar o som pro show que eu tinha às 20h. Fiz o show e voltei direto pro teatro com meu tambor. Uma multidão explodida pela rua. Elisete Jeremias me disse pra puxar o cortejo na frente do carro que já ia chegar com o corpo. O corpo de Zé. Ali fiquei, do lado do bebedouro, na frente da bilheteria. Ito Alves maestro veio ver como estava do lado de fora e me falou “Você vem com a gente, vamos sair do palco juntos”. Fomos. Ito mudou de ideia e disse “Vá puxar o carro mesmo, você, Lagartixa e mais alguém que não lembro o nome agora”. Lagartixa eu não via desde 2007. Abraçamos. O carro vem vindo e começo a tocar baixo, movida pela brisa, no que meus amigos me acompanham, Carlota Joaquina rege todo mundo com palmas na cadência daquela coisa tão triste e tão bonita. Era um coro guerreiro, era tudo o que Zé foi e é, todos aprendemos, a multidão respirava junta na levada solene.
Entramos até o Citerron das bacantes, do lado da árvore que fica dentro e fora do vidro. Abriu-se o caixão, o corpo exposto pra ser velado. Ouvi um samba na rua, era Mariano Mattos corifeu e fui puxada feito ímã, corri pra rua como nas peças e voltamos multiplicados. Éramos gente pra tudo quanto é lado, lotação de estreia, de encerramento, de qualquer coisa muito maior, éramos mutação de apoteose, cordão de ouro, líquens, sertanejos, soldados, zabaneiras, o Bixiga, um coro vivo, ligado, concentrado absurdamente na dor e no êxtase da alegria do Teat(r)o.
Às 6h, já quase sem voz de uma noite virada de gritos, cantos e encontros pra além do antes e depois, tive que ir embora, dormir alguma coisa, tinha show de novo e ia precisar cantar. Acordei 9h30 agoniada, não queria ter vindo embora e achava que não dava mais tempo de voltar pro teatro, mas Celsim falou “Estou indo”. Também estou. Cheguei às 11h, faz um ano desde às 10h de ontem. O teatro respira uma calma triste e ressacada, alguns dormem pelos cantos, muitos virados, com purpurina, suor e coroas de hera, outros chegaram de manhã, uns de outras cidades. O sol brilhava tudo, cantamos mais um pouco, mais palmas, balidos, gritos, energia total, silêncio e mais música, bacantes de novo em cena e o momento que ia chegar de todo jeito, o caixão sendo levado por amores pra fora do teatro, dessa vez pra cremação. Precisei de cada segundo daquilo tudo, queria que não acabasse, queria mais e entendi que o que vai dar conta são os palcos. O espetáculo Mutação de Apoteose segue no nosso terreiro eletrônico e pipocam notícias de mais e mais acontecimentos. O livro de Letícia Coura, que já vinha e veio. Cada espetáculo, show, filme, festa que a gente fizer e assistir, cada ingresso comprado, vendido, cada aplauso dado e recebido, ali vai ter Zé, o rito é vivo, sem sala de visita, na fé cênica, etherno. "Ô, Zé, quando for lá pra lagoa toma cuidado com o balanço da canoa! Ô, Zé faça tudo o que quiser, ô, Zé, só não maltrate o coração dessa mulher!".
Obrigada, mestre!
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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.