A rua alagou, pelo cheiro a notícia chega antes do caldo grosso contaminado de bichos pequenos. No líquido no copo boia um prateado da chuva de quadradinhos laminados, depois do pipoco suave do tubo de papel picado. Fundo musical de filme velho, repetição que mantém vivos os vivos e também os quase mortos e mesmo os mortos. Principalmente os mortos. Me enfiam uma agulha na parte mais frágil do braço, fácil de achar veia nesse corpo magro ainda não desistido, que depois desse assopro da tuba pode até pensar em ir de vez, já deu, não deve ter muita coisa mais bonita que isso pra me segurar aqui desse lado.
Solavanco na nave, um vômito entalou na minha goela, motorista achou que viu outra cor em vez de vermelho na bolota do semáforo, também ficou confuso. Derrubaram cachaça, cerveja e comida. Gente invisível que não lambe nem mastiga do chão deve ter sacudido o braço de alguns ingratos de oferendas. Tudo lembra o de antes, filme passando rápido, deve mesmo ser o último ato. Lembrei de um dia em que bebi mais do que a sede precisa, mas nem era é questão de precisar, mas precisava. De tolo em tolo se faz o mundo que temos. Passei vergonha, mas pelo menos pedi desculpas. Com diz meu amigo, “depois que inventaram o agô...”.
Meu sangue derrete quente pelo antebraço, esqueci se isso é sinal de morto ou vivo. Deve ser vivo, a expressão sangue quente nas veias serve aos viventes. Decidido, estou vivo, e não deve ser pela carreira da ambulância, nem destreza da enfermeira, mas pelo motor do estandarte. As mesmas músicas me trazem pro mesmo lugar de vida e vida é bom, acho que é isso o que entende agora aqui esse corpo pousado longe da desconfiança de quem está lá fora, que carrega pelos pés voando com a festa a certeza de que só assim se vai junto.
O estandarte escrito PAZ, posso escutá-lo vindo do lado direito, bem onde o motorista freou brusco. Não condeno o folião, ele não viu o carro, com certeza. Um murro no fundo da carroceria, dessa vez do lado esquerdo. Esse não gostei mesmo, mas quem sou eu, um folião deitado, sim, mereço respeito, esse murro eu revidaria e não seria o certo, mas eu não sou certo, só vivo deitado e isso pra uns deve inspirar humildade, pureza, é engano, sou uma peste bubônica quando posso. Se a ideia era pena, desista.
A enfermeira xinga de um jeito estranho, nuca ouvi esses palavrões, deveria anotar, mas onde? Acho que ela fala outra língua, ou está bêbada também, essa roupa é fantasia. Quero gritar, tenho meus direitos de cidadão morrendo, tem uma impostora furando meu braço, falando palavras de baixo calão, que inferno é esse, chama algum parente meu, chega dessa humilhação. O parente já está ali, eu sabia, mas tinha esquecido, nem sei se gosto dele, mas ele chora, escuto os soluços, minha cabeça lateja. A enfermeira grita “veio a óbito!” e acho que está falando de mim. Diante desse casting da ambulância, digo com toda certeza que já fui tarde. Mas fui feliz antes. Morri ouvindo o frevo mais bonito, no meio da bagaceira preferida, deve ter sido combinado. Acho que ainda dá tempo de pensar um pouco, mover ondas com a mente, uma concentração de consciência do fim, uma reza. Obrigado, criatura que cuida dos meus minutos derradeiros, responsável pelo traslado, você foi só perfeição, escuto o clarim final e nem é quarta, nem fevereiro. A morte é num dia comum, feito na minha medida, parece até que eu já sabia, devo ter ensaiado.
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