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TEXTO Karina Buhr

19 de Outubro de 2021

Ilustração Karina Buhr

Boa noite, seu Jairo, me diga uma coisa, um carro bem velho, o senhor tem? Basta caber três ou quatro pessoas, sem bagagens. Sim, eu e as meninas, o de sempre. Não precisa responder agora porque não posso esperar, tenho que correr, separa o mais velho que o senhor tiver, bastar o motor pegar. Sim, pode ser feio, diria que deve. Quem vai buscar é Jadiah, umas oito da manhã. Uma coisa importante, ele precisa estar virado pro norte e com as duas portas abertas. Quando ela chegar, peço que reviste tudo na frente dela, é necessário certeza absoluta que é só um carro comum, sem material explosivo. 

Não, não vamos pra batalha, é o contrário, vamos fugir dela e de todas as outras a partir daqui. A gente só tem que deixar parecer que vamos lutar nela como sempre foi em todas. Só aparências, pra ganhar tempo. Não, senhor, não desistimos, é só aproveitar o tempo que resta, muito tempo isoladas, com armas penduradas e matando os que mataram os nossos. Resolvemos passar o bastão pras que estão chegando, mais esperançosas, e a nossa vingança agora vai ser no mar. Por sinal, o senhor devia fazer o mesmo. Estou brincando com assunto importante, desculpa. Como? O senhor quer ir com a gente? Olhe que a gente leva a sério, espero que seja recíproco, não tem volta, viu! Oi? Pois muito bem, seu Jairo, combinado, às oito Jadiah busca o senhor e o carro e seguimos para o mar do norte, sem marcha ré. 

Um caminho todo coisado de luz de tudo quanto é cor, nem parece que acabou-se o mundo, que morreu tanta gente, eita sobra boa. Saudade das pessoas, sim, mas das coisas não, essa paisagem basta. Saudade das árvores também, mas esse degradê até funciona para alguma alegria nos dias finais. Como será depois? Queria me vingar, não foi de brincadeira que falei, será que dá? Acho que não, que era só isso mesmo. Então não faz sentido? É, é só isso, tanta expectativa pra quase nada, tanto que passou e agora a gente só precisa acertar como vai ser nosso fim, mas sempre contando com o fator surpresa. Um tsunami vindo exatamente das praias do norte, um vulcão surpreendente e arredio, teimoso com as previsões, uma tempestade de areia e agro, outros vírus, outros tiranos no comando. Às vezes você se abaixa e vai, às vezes é só torpedo na sua cara. 

Olha ali, meninas, mais um varal abandonado, vamos pegar umas roupinhas? Pra que você quer umas roupinhas, seu Jairo? Pra chegar bem apessoado na praia, pra morrer formoso, sei lá. Então vamos. Esse vestido, Jadiah, é bonito, não é? É, bem bonito. Vou ficar com ele, acho que com essa minha bota de vaqueiro combina. Está lindo mesmo, se tivesse a máquina tirava um retrato pro futuro. Se a gente achar uma no caminho a gente faz, deixamos nossos fósseis de papel, pra quem acaso existir depois e queira estudar o antigamente. Combinado. Gente, vamos, já estamos bonitas, maravilhosas, só não estamos cheirosas, mas não importa. Vamos correr pra chegar nessa praia antes da tempestade, já pensou se for mesmo a última? A gente morrer aqui, montadas, impecáveis e sem banho de mar. Prefiro morrer nas ondas. Eu também, tempestade de areia gosto não. Pois avie, vamos pro mar. 

Uma foto! Vamos nessa, Jairo, pra que foto? É mesmo, sempre esqueço que não adianta guardar nada. Se não tiver vento forte pra levar a gente, alguém acha a foto e faz melhor proveito. Vocês desistiram mesmo, né? Sim, tem outro jeito? Tem, a gente encontrar um rio de água limpa, deve ter algum ainda, e começar tudo de novo, plantar, colher, girar a roda pra fazer energia, devagarinho, pode dar muito certo. Começar tudo de novo? Melhor não.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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