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Tamanha

TEXTO Karina Buhr

11 de Novembro de 2022

Ilustração Karina Buhr

Era outro texto, era outra coisa, mas Gal. Eu também sei que nenhuma palavra faltou por ela, pra ela, viva de tudo. É só porque ela se impõe e a caneta breca e o vazio daqui de dentro simplesmente recebe. Um tipo de dor pouco equivalente, quieta, buraco. Dá um freio, sobra nada por um tempo. Acredito que os que vão daqui pra sempre se espalham na gente, que talvez a gente melhore um pouco com as qualidades e piore um tiquinho dos mesmos defeitos diluídos. Quando se morre não sei, e tem sido tanto, que parece que a gente é o que sobrou. Viramos esses restos ressecados no dia seguinte. Sendo que já estava só o trapo mesmo, tinha nem de onde tirar.

A mulher que gerou milhões de timbres, a voz dela com a de cada um por cima, gerando uma terceira forma a toda pessoa que se aproximou. Isso ficou gravado. Cantar por cima da voz de Gal sempre foi uma brincadeira comum, a cada disco, respirar junto com ela. Falam que é coisa de cantora, acho que é coisa de qualquer pessoa. Será quem tem alguém que nunca botou a voz por cima da dela, indo junto atingir os agudos mais impossíveis e todo lugar que dá pra chegar? Já fui pra um tudo com o canto de Gal, aquela nota que a gente achava que alcançava, mas era ela, fazendo a voz base no disco preto rodando. E também tinha a descoberta de que alguns a gente alcançava mesmo, mas aí a descoberta era por causa dela.

Música pra Gal cantar, todo mundo que faz já fez. Fiz uma que entrou numa concorrência e perdeu, nem lembro dela. Desclassificada. Fiz outra, que mandei pra canto nenhum, mas escuto ela cantando e quando eu gravar vou tentar ouvir a voz dela na base, que nem era antes, me puxando.

O que pode ser visgo
grudado
sem mais muito sentido
saudade longa

A metade toda ela ocupa
puxa pro chão
íman, contramão
e agora é um meio-dia de sol
reaviva o que é fora
pra ver se a pele faz peneira
e um fio aceso passa
corta e já estanca
aglutina o vermelho líquido

como desfeita memória
um zero apenas
vazio, nada, sem pintura
inventar um em frente
que trance de um jeito
a não parecer remendo
mas novidade boa
independe de mim
é tudo na outra pessoa

O que pode ser visgo
grudado
sem mais muito sentido
saudade longa

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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