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Quebra-corrente

TEXTO Karina Buhr

13 de Abril de 2020

Ilustração Karina Buhr

Toda vez que alguém contava pro meu pai alguma façanha superlativa de um parente criança ele cochichava pra gente, de um jeitinho todo específico e nada discreto, fazendo a gente morrer de vergonha, “com certeza é um gênio”. 

Se alguém mostrasse foto do bebê parente, ele, sincerão, comentava pra pessoa “tem jeito de inteligente” e aí então cochichava pra gente “não consigo dizer que é bonito”.

Seu Augusto era justo. 

Falando em inteligente, lembrei da placa escrito INTELIGENTE que Livinha, irmã de Lila Jéssica, me recebeu no Aeroporto Internacional do Recife Guararapes Gilberto Freire. Isso porque Pitty falou em alguma entrevista que não gostava quando gritavam “gostosa!” no show dela. 

Falei eu gosto, porque, sei lá, Zé Celso, kundalini, acho que todos nós somos gostosxs por enquanto do show, quem faz e quem assiste, a não ser que esteja uma bosta mesmo.

Mas, voltando, desde então Lila grita “inteligenteee!” nos meus shows. 

Obrigada, Lila; obrigada, Pitty.

Show, o que é show? 
É uma coisa que a gente fazia antigamente.
Faz uma live! Estou mais pra dead

Não sei se estou com as funções pulmonares debilitadas, mas não me veio ainda um arranque, uma vontade forte de cantar e tocar. Meus parabéns para quem está tinindo das ideias, vontades e realizações.

Estou na janela que tem um muro na frente. Em compensação, uma mirra, uma espada de Ogum, uma espada de Iansã, uma babosa, uma bromélia, uma orquídea e um coentro, aguardando por Beto Guedes, pra ver se em setembro as boas novas vêm andar nos campos. E é bem o mês que apareceu o primeiro show depois do fim do mundo. Axé!

Daqui pra lá alguma reinvenção há de haver.
Talvez depois eu mude de laboro, sei lá qual.
Ou talvez seja só esse temporal. 
Mas houve outros temporais. 
Mas cada temporal é um. 
Provavelmente é isso.

Uma música é mais importante do que quem fez a música, agradeço e louvo quem as faz e quero ser louvada também, muito obrigada, mas a música, ela própria, assim ela sozinha, é muito maior e independente, não se tem esse domínio todo depois que ela saiu andando. 

E não estou nem falando de mercado, mercado é outra ciência e tem gente que tem talento pra ele, que sorte, mas é outro saber e, a depender das medidas, a engrenagem gangrena. 

A música, essa importante, a rua do Carnaval na Cidade Alta cantando todo ano coisas que viraram parte das plaquetas do sangue, um pedaço da multidão cantando a letra errada, dividindo a autoria, plenos pulmões – sem falhar jamais nas melodias do metal que cada um elegeu pra solfejar – e nem se sabe muitas vezes quem compôs. Menos ainda as letras que as melodias. 

É muito bonito música que virou paralelepípedo, fotossíntese com as pessoas todas, mais um ano aquilo tudo, cansaço no limite do corpo, sangue quente borbulhante. A multidão tem razão. Nem sempre.

E no dia do São João cancelado me bateu com força saudade de aglomerações. Sonhei com multidão, saudade daquela crise de asma em pleno Homem da Meia Noite, a bombinha na bolsinha, o dinheiro no plástico dentro da meia, dentro do tênis molhado pisado. 

E na Sexta-Feira da Paixão de Cristo cancelada, o filme reprisado na minha cabeça foi eu, Walmir Chagas e Roger de Renor em mil novecentos e noventa e talvez dois, na porta de Nova Jerusalém pra ver o espetáculo e sem os ingressos. 

Peço parênteses pro teatro pra falar que, não por acaso, o nome de Roger foi inspirado em seu Roger Avanzi, o palhaço Picolino, o Santo Antônio do Circo Nerino. Procure saber.

Aos soldados que guardavam a entrada Roger, bem natural e sério, ator que é, alheio e sendo Jesus Cristo, apresentou a gente como “Jesus, Santa Maria e São João dos Carneirinhos”. O soldado não lembro se riu, mas tamanha a audácia deixou a gente entrar. E foi certo o soldado, justo como Augusto, não ia ter Paixão sem Jesus. Assisti e chorei.

O público sendo coro épico, já nascido ensaiado, teatro como ele veio pra ser. 

Na Semana Santa e na profana, sigo quebrando as correntes. As de oração, as de discos que ouve sem pular uma música e marca quatro amigos e mais as que aparecerem.

Também estou levando falta nas chamadas de vídeo com amigos. 

Cada um funciona de um jeito. 

É estranho o juízo final.

P.S.: A música que vira multidão e paralelepípedo mandou recado pro Brasil, aquele que tem um carnaval em cada esquina muito também pelas mãos de Moraes Moreira.

Salve, Moraes! Minha criança, minha Bahia, tanta coisa você sempre acendeu e acende! Minha vida tem trilhas infinitas suas. Obrigada.

Um abraço, um carinho em todos da família e os amigos todos que te amavam e amam. O que sua música alimentou não morre nunca, nem você! Adubou bem adubadinho amor em montanhas. Obrigada!

Axé!

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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