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Pelamordedeus

TEXTO Karina Buhr

13 de Julho de 2021

Ilustração Karina Buhr

Um céu muito azul e cedo, um monte de urubu na cabeça, carniça por todo canto. Mas a primeira vez que olhei pareciam anjos, ainda parecem, são bichos muito bonitos, a carniça era a gente. Agora não sei mais se aves de rapina ou criaturas bondosas lá em cima. Minha lembrança embaça a imagem, feito a foto na porta da geladeira, para quem não conhece como ela era quando foi pregada no imã. Para quem tirou o retrato, tudo sempre ali, na timbragem perfeita dos verdes das plantas, a expressão exata da cara, a quantidade de rosas até chegar no alaranjado. Mas preciso levantar, depois vejo o significado, sonhar com anjos, sonhar com urubus e o que for melhor eu escolho. Agora o que importa são os hóspedes, que chegam em meia hora.

Para visitantes pode parecer desleixo, combinando certinho com o tanto de folha seca no quintal, nunca devem ter varrido. Um recém aportado nunca sabe de nada, talvez aprenda depois, mas, no que chega, vê o que já via em qualquer canto, só umas lapadas no lombo vão abrir, quem sabe, os olhos novatos para o que é a normalidade da outra pessoa. Para mim, os pinguins em cima da geladeira e o casamento ocupam um lugar fora da curva, quase uma transgressão dos planos. Que besteira, a visita nunca vai se importar, oito dias não dá tempo pra nada além de comer e tomar banho. Comer, tomar banho e julgar. Que nada, ninguém vai nem prestar atenção nisso, eu é que estou precisando de enredo.

Você foi na cidade dos coqueiros? Conta! Normal, nada demais, fiquei na casa de uma mulher casada, com o marido viajando e pinguins em cima da geladeira. Riremos bastante, pobre casal dos pinguins, que sorte a nossa sermos sensíveis e observadores. Viajantes que não saem do lugar, isso sim é um trunfo, pode ver, fazemos de toda essa andança um território só, temos o dom, qualquer canto do planeta é nossa casa, quem quiser que se adapte a nossa valorosa presença.

Tolos no outono, vou fingir que não ouvi, deixo passar, não adianta falar e, mesmo se adiantasse, ando preferindo o silêncio, não é de hoje. Se a iluminação deles é tanta não deve ter sobrado nada pra mim, me estaciono aqui, nessa falta de palavras, nessa falta de vontade. Já foram bater perna, agora é tirar a poeira dos pinguins, jogar um bicarbonato em cima e deixar meia hora, esquecer e pegá-los amanhã, gordurosíssimos das últimas refeições, digo nem de ontem, de dois meses pra cá. Estou entendendo tudo de frituras, não sei o que é fruta, verdura nem paciência, mas não há saída extra resignação, oração malfeita. O roteiro para falar falhando na cabeça, mas a intenção lá, inteira, suando sinceridade. Santa mãe de Jesus, eu sonhei também que você tinha gêmeos e acredito ser uma mensagem, dá-me a vontade como o pão, ela de sobra pra compartilhar com os enlutados, endividados, os que restaram, eu mesmo nesse grupo, não é pensando em mim, mas, dá-me fartura para que me sobre um pouco mais que os restos desse deserto, esse pasto vasto de intenções sem resposta.

Não sei fazer promessa, esse é um defeito, pelo ponto de vista de antes, se for pelas referências de agora, acho que é só normal. Não quero negociar com os deuses, nem com os santos, mas desconfio que seja mentira, que quero sim, que faria qualquer coisa, um banquete na beira da lagoa, em cima de um pano branco, dois mil pulos, três quilômetros de joelhos, vinte e cinco quilômetros a pé, ou de pés, como dizia minha amiga. Minha amiga também falava “eu queria não acreditar nos deuses, admiro quem não crê porque não negocia. A gente que acredita fica negociando, num grau ou noutro, a gente fica”. Ela tinha razão, essa amiga sempre tinha razão.

Pois então, mãe ou pai de Jesus e do irmão, eu tenho um pedido que eu estava querendo falar desde o começo aqui dessa conversa, é uma coisa pequena, medíocre, quase nada. O que eu quero é um motorzinho de arranque, do tipo que liga em gente, o de automóveis não serve. Pelo que eu estudei nesses tempos, vejo que o de aviões pode funcionar, quando ele aumenta o som, naquela trovoada do volume máximo, turbina explodindo, nessa hora, se conectar, acho que o ser humano engata e vai. Era só isso mesmo, tem gente que diria que isso é ciência, não é de se pedir para deus, muito pelo contrário, que é ou um ou outro, mas olhe, eu não concordo. Eu sei bem direitinho que, se você não quisesse, o motor não ligaria.

Devaneei, Senhor ou Senhora, eu sei, já vou voltar. Esqueça minhas divagações, se concentre no principal, eu só queria uma vontade, uma força matinal, um empurrão pra atravessar o dia com alguma energia mínima e mais tranquilamente, é só isso mesmo, acordar e ficar inteiro até a hora de deitar de novo. É quase uma vitamina, sabe? Deve ser muito fácil pra você, me dá essa mão? E tem outra coisa que eu quero também, ia pedir de noite, mas vou aproveitar e anexar. É fora Bolsonaro, Deus, inclusive, tendo isso, nem precisa se importar com o resto, já vai ser automático. Obrigada. Amém!

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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.

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