ILUSTRAÇÃO Karina Buhr
Não tenho matemática, mas, pelos meus cálculos, movimentos cada vez mais contidos. Músculo atrofiado, circulação lenta. Morte em ascensão. Os gráficos mostram os passados, em luto ainda e de novo, atrasados. Em comparação com o mesmo período da última temporada sempre muito pior, mesmo na melhoria, garantia de nada, euforia na ignorância, terminando semana no negativo, quase de ré pela casa. Um fantasma de agora, topo da coerência, translúcido, passando um café de novo, está meio velho, repetição, mugido do dia, motor ligado nas fagulhas do sol frio, corrente de ar bem aqui.
Do portão até a pia da cozinha são treze passos, três deles utilizamos da porta que dá pra rede esgaçada na ponta até os temperos à esquerda, alguns um pouco secos, que afogarei sem dó na comida de logo mais e, mais à direita, uma pequena piscina de plástico simbolizando o mar. Nosso clube de regatas. Fui pular corda no salão central do cenário, defronte do pé de mirra, Jesus na causa e os Reis Magos, pois não infartei nem sei como. No quarto pulo fingi normalidade, coração na boca, sabe essa expressão? É muito realidade. Era pra ser um treinamento pro próximo carnaval, que nos espera daqui há uns dois anos, talvez? Melhor afastar a corda pra não me distanciar do planeta Terra redonda antes da hora. Sim, sabemos que não tem isso de hora. Posso sair sem pular, vou andando, atrás da tuba, me encaixo ali e permaneço até a parada completa do som.
A morte ronda e a inutilidade da vontade da gente. A dona mais antiga e certa, perambula pela rua do lado, da frente e de trás, ela despenca de cima e emerge do chão, cercados, ônibus lotados, ela é lógica, mortes matadas, ela não se esforça, sacrifícios oferecidos pelo homem que manda, o eleito. Demônio! Trens abarrotados, quem olha pro céu não diz nada, só sente o bafo dela, terrível e esparramada, na maior parte das vezes sobre os mesmos corpos. Podia ser ficção. Um auto do absurdo em cordel, quem dera, balançantes na corda, coloridos na xerox. Isso que se chama de dia seguinte não traz com ele esse conceito cores, passou, ele só chega e é levado de novo, num ciclo tacanho, balada triste, dedo em riste, dó menor.
Começando de novo, zera o game, estira o tatame, separa o ingrediente, ferve o leite, limpa o derramado com a língua, se finge de gato. Fazer de conta que não foi pra se manter estirado em pé, tudo antes era impressão, dobrando a esquina vem um outro enredo, mergulha nele, se esbalda, segue o vulto, gargalhadas guardadas, gente se acostuma com tudo. Podia ser, quisera que, fracasso, não valeu, pode tentar de novo? Só mais uma chance. Perdeu.
Não sei se deu pra entender, foi um bilhete estranho, essa mania de acordar e anotar o pesadelo todo dia não sei se foi saudável, quem inventou isso? Achei terrível essa pessoa, ando melindrada, mas mesmo assim. Mais interessante correr pra escovar os dentes, hortelã falsiê, sangue na gengiva, passar por cima, torar tudo, um banho gelado, o pulmão sem ar, melhor não saber. Tarde demais.
Ideal desmontado e torcer, rezar, fazer sentido, acender uma vela, concatenar. Não lembrar do medo, do tudo pelo avesso, do assassino escolhido, acarinhado por multidão, a essa altura sobretudo. Dentro do metrô o vírus, o tiro, o choro, a porta arrombada pelo protetor, diz isso no documento dele, sangue no colchão cor de rosa, inferno continuado, veia cortada na infância.
Não tem condições, religiões, ressignificações que remediem na medida do necessário. Acordo e durmo, torpor relativo. Aguardo, protegida de algumas coisas, outras corroem o meio, ateio o fogo, unção extrema, poema desligado, descarecido. Armaram um plano, a personagem que deu vestiu a camisa, deslizou desesperançada, sem força, nem sentido, só um pedaço de pão doce ganhado na esquina, creme e goiabada na última mordida, se revestiu de ausência, pra aguentar o tranco, o barranco, a valentia alheia. Quase sem sentir, me junto na descida feroz, skate macabro, o samboco do joelho, esperneio, sinto a brisa, respiro com dificuldade. Para o frio arrumei sopa, dor e cobertor. Persisto. O caminhão do lixo é meu despertador.