Ilustração Karina Buhr
O celular gritou, atendeu na carreira e deu bom dia pra um robô com pausas dramáticas humanas. Confusa no amanhecer. Ela sempre discute um pouco com o teleatendimento até descobrir que é voz gravada. São sete e meia e das próximas vinte e quatro horas não deve se exigir muito, os sinais são claros.
Um café na xícara mais gorda até esborrar, outro pra São Benedito, já deu dez e meia, sim, acabou dormindo de novo e perdeu a hora, insone, ela tem disso, de noite esbugalha o olho fazendo conta errada, é do setor de números, e quando chega o sol é lutar contra o relógio, daqui a pouco acaba o dia novamente, prazo estourando a bolsa.
Um dia sem nada seria ótimo, apesar de não remunerado, procura um botão onde encomendar. Parágrafos curtos, pocas ideia, como se diz na cidade que, de tão grande, fica pequena, convive com os colegas do ônibus da ida e da volta, a moça da mesa do lado e o pessoal da sala do intervalo, entre panos no chão com rodo e brinde com copinhos de plástico de uma dose só. Troca de perdigotos pra desejar saúde, episódios do passado. Já voltou o costume, mas ela se apegou um pouco ao desespero.
Tem como ídolo o Dia Nada. Os dias cheios de verbo, cenários e horários servem, além do salário, para bulir o sangue na engenharia estufada das veias, na busca dos alicerces a patrocinar justamente os dias sem nada. O grande objetivo são os tempos vazios, puros de metas, eles são o troféu, a chegada partindo a fita, sempre acha que dói essa tira acochando a caixa dos peitos, mas nunca se falou sobre isso, então deve ser agonia besta, a cara de desespero dos atletas é só emoção da chegada mesmo.
Anotou na agenda declarar amanhã um dia sem objetivos. Mentira, a lista do por fazer é extensa. Antes de começar, procrastina, reza, reflete sobre o que é sintoma pós-praga mundial e o que pode ser qualquer outra coisa, enquanto recolhe os tufos de cabelo que caem profissionalmente e quase não fazem mais parte dela, mas da decoração da casa.
Semana que vem gostaria de passar uma tarde perto do mar, nem pediria um mergulho, só o vento salgado, passar as horas pintando pano de prato com carimbo de quiabo, as flores roxinhas, as folhas podem ser desenhas à mão e também os caules. O bordado dos bicos vai ficar devendo.
Antes da semana que vem, todos os dias despertador, como uma vida normal é, um pouco mais cedo na quinta-feira, e de jejum, fazer um exame, agulha tesa e ingrata. Dá um conselho pra enfermeira, maquiando preocupação, especialidade em dizer coisas como se fossem provocar projeções melhores pros outros, mas deve ser só egoísmo, o mesmo da especialista portando uma injeção. No meio do expediente, poucos clientes, fingindo férias, bateu um bolo de chocolate, exagerado como deve ser, no modo antigo, colher de pau e bacia, e comeu com vinho branco, daquele é quase uma sprite, sabor de aventura, no copo do aniversário do sobrinho, feito na loja da plotagem, com uma foto dele feliz, com um pouco de gelo.
No fim do turno, em pleno aperreio do trânsito do por do sol, o motorista pisou no acelerador e bateu num poste carregado de maçãs maduras. Cortou em quadradinhos, uma salada de frutas tranquilas pra desenfernizar as ideias. Não é pra agora, só depois que almoçar. Acordou sem lembrar. Passa bem.