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Nebulosa

TEXTO Karina Buhr

14 de Julho de 2022

Ilustração Karina Buhr

Descobriram uma estrela que estava presa numa nebulosa, coitada. Nasceu, foi pra luz, sendo luz ela mesma, não entendo, mas admiro. Paredes de poeira cósmica e gás. Escolher essa notícia como cobertor das tenebrosidades diárias, que nem bem se recupera de uma, cai outra bomba no colo. O cobertor fura rápido, a faísca tem hora que incendeia um pedacinho, a linha vai comendo toda, gruda na outra e a desgraceira aparece de novo, é só um pouco de calma, pausa quase nada. 

Em Olinda, sábado passado teve costura no buraco queimado do cobertor. A manha é ir remendando, tentativas, não que eu tenha uma fórmula, é só vontade, testes e impressões. Funciona por algumas horas e o rombo abre de novo. Na sede do afoxé Alafin Oyó, na rua do Sol, beira do mar, com a Orquestra de Babá do Trombone, que também é Babá do gogó, com a banda Eddie, Lala K no corpo de baile, Peneira também, Dee Jah chegou depois, mas chegou, claro. O povo bebendo, dançando, suando, eu feliz, eu tensa, perdigotos, abraços fortes e grudados, amor de tuia, variante, agora não, espaço aberto, fé na vacina, na vida, na morte. Cantamos e tocamos por nossos mortos também, que não são poucos, que nunca foram tantos e que vêm até aqui celebrar também, “na beira do rio, na proa da maré”. Viva Beta Vovô! Viva Naná! Viva Aurinha! Viva Zé da Macuca! Viva Luiz Paixão! Viva Porquinho! A sorte é acreditar que ir de vez, ninguém vai. Fica com a gente pra bem mais que a lembrança de tanta coisa e a função de continuar. A vida pro ateu deve estar ainda mais difícil, força, irmãos. 

Do lado de fora do Alafin, ladeira pra cima e pra baixo, alguém passa pelo largo do Guadalupe e chora, segue mais um pouco e chega no aniversário, Orquestra de Maestro Oséas, que engatou no chororô também no colo de Ró, o filho, dono do bar que deixei uma fantasia que estava me matando de calor, no último carnaval antes do fim do mundo e nunca fui buscar. Não quero mais essa fantasia, me matava de calor, mas me interesso por saber dela, embora possa não parecer. Será que eles deram pra alguém? Virou cortina? Pano de chão? Guardaram pra eu pegar três fevereiros depois? Ela ficou encruada num carnaval que não passou e que agora volta, aos barrancos, trancos e vontade maior que as possibilidades, dentro do que sei lá o que se possa chamar de saúde, esse cálculo entre o corpo se manter inteiro e o que a gente precisa dentro pra segurar isso, se não, nem adianta. Toda conta é difícil, mas essa é mais. 

Lu Maciel cantou os clássicos, Maciel Salu chegou junto também. Lembrei de Jules, amigue irmão de Berlim, que “no subir de ladeira, eu caio eu derrubo”, depois do terceiro bloco, mandou uma dúvida sincera “por que os blocos têm nomes diferentes se tocam as mesmas músicas? São sempre as mesmas músicas mesmo?”. É uma pergunta que eu sei responder demais, mas com palavra fica difícil e a lógica delu estava certa, mas é que carnaval não é pela lógica, é pelo sei lá, sangue fervendo e arrepiando o corpo. Tem a ver com repetição, tempo, vê que não sei dizer direito? A muvuca, um aperto de quase morrer, John Travolta indo, Alafin voltando, boneco gigante correndo, doidice lotação dos inferno, a perfeição divina na Terra redonda. A bombinha do aerolin só entra em ação no Homem da Meia Noite, que é quando estamos em perfeita paz na multidão sem milímetro livre pra passagem de ar, na concentração plena, a lágrima na beira esperando o calunga sair na porta gigante da Estrada do Bonsucesso e a polícia chega. Ela sempre chega e com ela a asma e alguém, que nunca sou eu, apanha. 

Um julho desse jeito, estranho, sem milho, só mesmo o cuscuz transgênico, o orgânico do MST nem sempre encontro fácil, é bom, acaba logo. Um mês desse, ótimo em relação ao do ano passado e péssimo se comparar com o de depois. Perceba meu otimismo, valorize-o, coisa rara que dá nessas paragens, no mormaço e chuva, o cobertor parece novo. Aguardo, no local, eu e meu tênis passado, sonhando nele com o molho de mijo, lama irradiada de bueiro e confete grudado, às seis e meia da manhã da noite virada, depois do Calunga passar a chave pro Cariri e ele vir ali, “com saco de pegar criança, pegando menino e moça, pegando tudo que a vista alcança”. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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