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Migalhas de metal

TEXTO Karina Buhr

13 de Fevereiro de 2023

Ilustração Karina Buhr

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Queria ir fantasiada de Madonna, mas não dá mais tempo. A vizinha perdeu a chave no banho de mar, disse que ia clorar a água inteira pra achar, até chorou, mas era besteira, esperou o chaveiro abrir e bom dia. Dormi vermelho na bolota do olho, foi cansaço. Ardeu até mais ou menos o meio do pesadelo quando uma onda quebrou pesada nas minhas costas e acordei do baque. Tenho narrado os dias pela manhã, mas são dias que não existiram, não se preocupe. Bilhete na geladeira que mais preocupa que resolve, diários morgados. 

Duas crianças borbulham cuspe na ponta dos beiços sem cair, achei bonito e isso decepcionou. Trocaram de brincadeira, mas meu interesse na cena passou. O pé de planta pendendo feito Natal, enganado pelo tempo, as flores feito sinos exalando açúcar pra abelha, mas elas não vieram, quando abelha não vem é que o mundo está se acabando. Do lírio maior pinga uma água pequena, sem som de queda, enquanto a troça passa e os pães ainda não comprei. Nesse tapume aqui, no compensado naval que tem o rosê que eu gosto, tem tudo metido embaixo pra esconder não sei de quem porque todo mundo sabe que é pra fingir que não vai derrubar a casa antiga, a única bonita do bairro, adubando o cenário feito estrume, fedendo por dentro, a promessa de embelezar por cima.

A mulher de trinta e dois comemorou que não estava velha pra amiga de quarenta e cinco e silêncio, despertador pra daqui a dez anos voltar nesse diálogo. Ela se ajeitou, um grude pra colar purpurina, feito o que minha avó fazia pras bandeirinhas de São João e pregou na testa. Migalhas de metal fazendo maquiagem brilhante, o metal crespo misturado com o esgoto salpicado na queda que não foi forte, só sujou, uma peruca barata pra gastar no calor, mas nem gasta, é só pra chegar, alguém revende depois, ou somente usa mesmo. Na saída só é importante estar viva. A ferrugem antiga esquenta, o pó da sobra alaranjada com fiapos de roxo escorrendo ralam a córnea, pra dar problema só depois. A gota do olho cai como sempre, meio salgada meio doce e voltando pra fonte quando se deita, pra depois cair de novo e novamente chover ao contrário. A placa do prédio diz pra alguém “usamos água de reuso”, podiam escrever “reutilizamos água”. Pensamento tão inútil quando a placa dirigida a seu ninguém como se pra todo mundo. 

Lá vem a outra. Chegou ainda de ontem, sem apresentar desânimo, só cansaço, dos que curam com banho e comida. Quase todos curam com banho e comida. Foi um dia longo, daqueles que emenda tudo, mas sem trabalho porque tirou folga, porque pode. Foi pros shows dos grandes artistas de cachês milionários na parte da noite, durante o dia pros dos grandes artistas com cachês cem vezes menor e até com mais distância. Funciona assim, sem piso pro que ganha pouco, nem teto pro que ganha demais, em cima do demais que já tem. O pai dela sempre achou justo, fala em meritocracia e eles discutem o ano todo porque ela discorda, mas no Carnaval ela não liga e temos pai e filha felizes, ele conservador nos costumes, os dois liberais na política cultural. 

O vendedor passa com o isopor com adesivo da prefeitura, conseguiu a senha, a multidão e o calor inundam tudo aos poucos. A música é bonita, mas hoje não vou, divago com meus seis pães quase frios, meio desacordada, na beira, feito a chave da vizinha. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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