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Encruzilhada do Guarda

TEXTO Karina Buhr

13 de Agosto de 2020

Ilustração Karina Buhr

Capacete mete medo se estiver sem ele na moto. Com ele na cabeça, se for o guarda, serve pra meter medo nos outros. Preciso explicar pro menino que eu não sou polícia. O guarda tem metido medo. Mas não é certo isso. Mas compreendo, é de se confundir mesmo e, como é caso normalmente de vida ou morte pra uns, é um instinto de sobrevivência até. Te entendo, menino.
Do lado da cidade onde o soldado faz o que quer e normalmente não é coisa boa. Deve ser estranho ser o guarda.

Mas eu sou o guarda, um guarda triste. Os paralelepípedos antigos, como todo paralelepípedo, foram costurados no chão, assim nessa simetria perfeitona, por mãos que não podiam escolher montar ou não esse quebra-cabeça de pedra.
A estampa completa tem as quatro faixas de pedestres, uma em cada braço de rua, daqui de onde vejo, do miolo da encruza. E tem as pedras guardadoras do conceito, aquelas mais redondas, tem umas aquadradadas, já mais recentes, de uma época em que a maioria pensa que é livre. É uma ilusão boa até. Eu entendo, é questão de sobrevivência.

O sinal fechou e na mesma hora abre o outro, isso talvez me confunda, não lembro se é de tarde, de noite, ou manhazinha, esse céu escroto dessa fuligem de tanto carro que tem nessa cidade. Eu poderia ser guarda em outra cidade, algum lugar cheio de velhinhos Manoéis, velhinhas Coralinas, som de viola e cheiro de bolo, crianças que correm e apertam campainhas das casas. Ia ser uma vida boa.
Passa, caralho! Abriu sim a porra do sinal, mas eu também sou gente, também pisco!
Agora aguardo minha própria multa depois do almoço.

Bom dia, encruzilhada, todo dia isso.
Podia ao menos ser o bairro da Encruzilhada, porque saudade é coisa grande e comum na vida, porém nesses dias está tudo bem pior.

A cúpula da construção da esquina de lá é mais pomposa que a de cá. Acho a de cá mais bonita, apesar. O pessoal que construiu a de lá gastou mais dinheiro, provavelmente. Na verdade, quem construiu a de lá nem gastou porque nem tinha, os da de cá também não. Pra que tanto pensamento tão cedo, precisava só deixar passar os carros, mandar passar os carros, deixar passar gente, mandar parar gente, ouvir uns bom dias de pessoas que rezam quando acordam com as galinhas e levar cara fechada de racista que acorda cedo.

Câmeras de segurança, muitas delas, umas quatro de um lado, mais três do lado de lá, porque uma quebrou, essas da lojinha de brinquedo caro e as que vigiam o camelô, que resiste, apesar. O rádio eu quebrei pra perder os flagrantes, pra dar tempo dos caras correrem antes de polícia chegar. Não sou polícia, sou guarda, posso respirar tranquilo, dormir de noite pois no meu nome apenas multas e minhas duas filhas.
Falar em filha, cadê a mulher do mingau de milho?

Maciel, você viu dona Zefinha? Já vai dar seis e meia e nada dela. Preocupado aqui, isso nunca aconteceu antes. Tens o celular do filho? O maior? Esqueci o nome dele. Junior, nome de menor. Não consigo ligar agora, sem bateria, esperar dar meio dia pra parar pra isso.

Dá meia noite hoje, mas meio dia não dá. Dona Zefinha, danada, esteja bem, não vou suportar outra possibilidade.

Correria, gritaria e confusão, tiro, porrada e bomba na esquina, eu devo merecer. Parem!
Meu deus! Fecha, Mariano, fecha esse lado, que eu fecho esse!
Que danado é isso, meu deus do céu!! Que tanta gente é essa e não são nem sete horas?
Meu deus, é Junior de dona Zefa!
Mariano, é Junior no chão, meu deus!
Como assim esse sangue, o que é isso? Não podia!  
Você não podia ter passado na frente da bala, Junior, não podia! Inferno de polícia, meu deus! Assassino!!
Era a carteira dele, miserável! A arma quem tinha era você, filho do demônio!

Por isso ela não veio, não trouxe meu mingau de milho, por isso sem cheiro de São João, por isso cheiro de metal sanguinário, por isso minha tristeza encruzilhada.
Dona Zefinha, que Deus te segure! Consiga ficar inteira! Fique viva!
É impossível, mas consiga!
Não vou suportar outra possibilidade.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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