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Defumado de Alfazema

TEXTO Karina Buhr

13 de Setembro de 2022

Ilustração Karina Buhr

A casa com a parede renovada, ainda o cheiro, pigmento verde no cal, janela baixa, elas feito boneca namoradeira do lado contrário, braços cruzados da rua pra dentro, pra ver o ensaio da orquestra. Madeira pintada de azul escuro, elas encostadas pra não perder o camarote, porta arreganhada pra passar as tubas. A engenharia de som que faz o pandeiro ser ouvido por baixo das caixas, surdos, naipe de metais, gritos e da pequena multidão cantando, mesmo por mim, surda primeiramente pros agudos e depois pro resto, a compreensão não alcança. Ontem tinham uns cinco pandeiros, depois quatro porque um foi segurar boneco gigante. 

As janelas do prédio vizinho têm grade do estilo que abre, com cadeado velho que fecha, mas não tanto. Cortina de ácaros cor-de-rosa e uma fileira de formigas que não se sabe o que procuram, a moradia não vê comida, nem gente, faz tempo. Faz calor também. Os três ladrilhos velhos que sobraram ainda enfeitam as laterais pra receber, em segredo, visitantes noturnos desconhecidos e encapuzados, que não roubam, nem teria o que além das cortinas, só dormem, roncam no segundo seguinte, despertam lá pra mais tarde, sem causar desconfianças. Parte do telhado cerâmica no modo velho, bonito e goteira, outra parte amianto, faz mal pra saúde, saúde de quem, não mora alma. 

No vão entre construção e outra era antes uma escola. Agora se aglomeram fantasmas de cadeiras, piadas adolescentes pelos ouvidos mais atentos, quase não existe mais disso, nem a gritaria do recreio. Madeira velha acumulada, algumas ainda boas, tem que garimpar pra achar o que ainda dá uso, o que range, mas enfeita, o que segura um corpo sentado, vivo, e também quando morre e depois alguém encontra. A repartição do lado reclama a propriedade, diz que é de um parente de antes do chefe, um tataravô dos cobres, o comandante primeiro da dinastia do almoxarifado se diz dono do terreno. 

Na frente de tudo, inabalável, um casarão rico, desde o primeiro membro, jamais rebaixados à humanidade corriqueira que desce do ônibus, fofoca no intervalo e café doce na calçada. A clientela sabe de nada, sempre foi assim. Às três da tarde se repõe a bebida preta na garrafa térmica. Os homens da sala sete vão na frente, freiam e dão a vez, educados, ela nunca entendeu direito, uma amiga desvendou depois, era pra seguir logo atrás das saias que subiam os degraus até o dois, quase calcinhas, suspense assediador. Sanguessugas dos rebolados das funcionárias, uma rebelião vai ter na quinta-feira, hora marcada, gritos entupidos da garganta endurecendo já o pescoço, de todo volume represado, cuspido, escarrado, mas só depois de amanhã mesmo. Às três. 

A calma, um fogareiro aceso na mente, dilui o desimportante na hora da digestão do almoço, o olho vidrado no nada, fuga total do cenário. A concentração é a chave da indivídua. Às vezes as coisas funcionam, Marinês, não é só desgraça, ela sabe disso, aprendeu com alguém. É só ajustar um pouco o ponto de vista, equilibrar, equalizar um culiômetro pra cima ou pra baixo, tudo muda pra melhor, nunca foi ruim, quem inventou isso, hoje até é sexta feira, Oxalá. O alívio da fumante depois da terceira reunião seguida. Não carecia nada daquilo, mas quem é ela pra comandar algo. Estômago feito brasa, do fumo, na falta dele do mesmo modo, quando para tudo na tragada funda, fumaça ruim, ninguém nem diz, parece até de cura. A chuva caiu feito sangue, bem na hora do intervalo, maldição, barreira derretida, medo palpável, logo ali na frente, no fim do expediente, baleeiro voador fazendo sombra em cima. Sem muro de arrimo, o prefeito levou falta, todo ano é isso. Hoje vai dar certo, já está estiando, a passagem baixou o preço, o café já é da safra do meio do último turno, a sorte está do lado dela. Alguém passou na frente, defumado de alfazema.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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