Ilustração Karina Buhr
Nas segundas-feiras passa gritando alto o caminhão de lixo trambolhudo, se desmanchando no quebra-molas, perto das dez, bem na hora de cortar os cubinhos transparentes de cebola e sacudir pra estralar na panela enquanto amassa o alho. Ela corre atrasada, perde quase sempre, e essa é sua rotina de exercícios. Nas casas do lado de cá, sacos pretos despachados no momento certo, a quantidade de cada qual, coerência nos entulhos, uns estufados de excesso de consumo e outros magrelos, encostados no poste, um mijo de cachorro de coleira escorrendo por cima. Pelos paralelepípedos oleosos do betume dos ônibus, tem sempre saquinhos de cocô canino abandonados no sol, vento e tempestade. Era melhor não ter botado no plástico, agora é milhões de anos pra desintegrar, o cocô some, o plástico fica lá, vazio e eterno. Sempre digo isso, é que a imagem do cocô sumindo enquanto o saco sobrevive ficou presa na minha mente. A família da frente é no estilo quatro caixas de pizza povilhando a lixeira, caroços de azeitona e rodelas de calabresa seca rodando no asfalto, feito pneus de carro velho com o tranco da colisão, lá pelas oito e meia, quase mofo, gato lambendo. O primeiro dia da semana é banquete sempre.
Na esquina, a lojinha que fica do lado do armazém de construção, nas segundas, fica à meia porta, não sei o que acontece ali, manequins expostos da cintura pra baixo o dia inteiro. O triângulo do biquíni azul de cortininha em primeiro plano, logo atrás a sunga estampada e mais pra lá a roupa de ginástica com tiras escuras laterais que mudam a visão do quadril, consideram isso bom e deve vender bem, o manequim hoje está nu. Na calçada do Encanto da Brincadeira, a loja de brinquedos baratos, tem toda cor de fruta estraçalhada, rebarba da feira do domingo e a filha, que deve ter ido junto pra compra do presente de aniversário do irmão, escorregou derrubando o cubo mágico, aquele dos quadradinhos nas cores da frutaria esmagada, nada com nada, ninguém de parente sabe montar, talvez tenha curso, vídeo de como montar cubo mágico, essa ciência oculta. A menininha gargalha alto, chega a quase engasgar, enquanto escorrega na tentativa de resgatar o presente.
A mãe acaba de atravessar a rua sem levar a pequena. Ninguém abandona uma criança desse tamanho enquanto ela procura um brinquedo perdido, sem instruções, embalagem ainda fechada, na calçada sabor frutas, a mercê de violências, de sair correndo na frente de um carro, de não ter final feliz. Apaga esse pensamento, moça. A criança não chorou, a mãe não olhou pra trás, tive que ir lá tentar entender. Cheguei onde a menina estava e não tinha nenhum sinal dela, só um cubo mágico sujo jogado, que só vi porque sabia dele, todo misturado com o chão colorido. A mãe agora bate um prato feito sem pressa, do outro lado da rua, no restaurante perto da poça de esgoto. Os veículos pesados do estacionamento defronte metem a roda com tudo na água podre, que respinga na salada quando passam por cima. Um monte de pombo.
A dona da loja veio buscar o cubo, me agradeceu por ter encontrado, ela estava procurando desde a hora que ele caiu embolando no chão, quando a mulher do almoço do outro lado da faixa passou estabanada. Sigo o restante do caminho sem a exata noção do que aconteceu aqui. Pode ser sonho, aguardar mais um pouco pra ter certeza. Pode ser delírio pela luz do sol batendo nos meus óculos vencidos, no ângulo perfeito de criar crianças onde não tem. Pode ser um recado, uma lembrança voltando pra sacudir ou somente uma saudade. Pelo sim, pelo não, comprar uns docinhos na São Jorge Protetor e misturar com a calda de fruta que mela os pés, onde tinha antes um cubo mágico e uma menina.