Geralmente

Contêm frutas

TEXTO Karina Buhr

15 de Março de 2022

Ilustração Karina Buhr

É sorvete de mangaba. A calçada, desde o primeiro passo, trançado na calça o pé tropeçado, que era o esquerdo naturalmente na frente, que lembrou de trocar em cima da hora, para dar sorte no primeiro dia dos novos tempos. Não deu. Os dedos esticados no último volume, quadrado depois do outro, respeitando do desenho a parte clara, a escura, a colorida. O fim do movimento já emendado com o próximo, caos completo, pra alcançar o degrau da escada na subida do ônibus, atravessando a porta sabor de frutas, os mesmos dedos de antes ainda esticados em câimbra, a batata tensa da perna, tudo endurecido por minutos compridos, tamanho suficiente pra terminar no limite do ajeitado o movimento contente de domingo coletivo. Destino: fazer nada.

As famílias com perfumes fortes, notas doces, todas, uma sinfonia açucarada, alvoroçados em férias, fúrias de alegrias descontroladas, sorvetes. Dava pontadas na cabeça aquela garapa transpirando glacê, da primeira ruga estirada do lado direito, perfurando e se estendendo a todo espaço existente acima do pescoço, explodindo agudo, seringas de agulhas finíssimas entrando e alagando com o cheiro da pressão do êmbolo. No cérebro causa um torpor que a ciência explica, a parte rente ao cabelo arrepiando, quase descolando do resto, uma espécie de enjoo que não era lido assim, entorpecia os movimentos, tudo mais lento pelo mar, pelo sol, pelos abraços entupidos voltando moles, se jogando coro e outro, tudo tão bom, só aqueles fins de semana chegavam na altura.

Não precisava, mas sempre voltava pra lá, costume. A família sabor da fruta, lambendo a água da boca, se afogando cada um no seu, degustação hecatombe. Nunca gostou de sorvete. Era só mesmo essa coisa boa se ficar ao alcance das mãos. Essa é a capa, a calda, de um tempo que era bom e nem sabia e que agora se esforça para entregar o mínimo, tentando o máximo.

Arrepiou-se, viu que, no fundo, não estava mais vendo nada de graça alguma. Nem escutava o que dizem, nunca nada de importante assim que o sol vai embora, por isso precisava que ele ficasse, sem prestar atenção direito, só esquentando, brilhando, queimando, faiscando, todas as propostas de um astro que mantém isso tudo. Um vento sempre dobra essa esquina na glória do triunfo do fim de tarde, naquela temperatura antiga, lembrando que é de novo aquela cidade. Podia estar com venda nos olhos e os ouvidos funcionando pouco, o de sempre, mas tudo era ali a revelação, banco de cimento esburacado, as camadas de tinta a óleo entupindo os buracos pra deixar um pouco parecidos com bonitos. A ladeira da central da praça era um caroço, a carne dela era toda das plantas um pouco feias e elogiadíssimas, a casca, a cerca transformada em jaula pra inspirar segurança. Criança é bicho que grita.

Os muros das casas velhas salvam a existência inteira, ela é ingrata, mas eles trazem os significados pra perto, cada grão antes de derreter, e, do lado da praia, aquele calor melado, que na hora que sentia lembrava dos porquês do aceite daquelas tardes, que se explicasse não serviam, mas bastava lamber fruta gelada e fazia sentido e era por isso que voltava, pra não esquecer. Esquecia, pra lembrar de novo na próxima mangaba enjoada, adorada por todos, menos por ela, que fingia em nome de sentir isso, pra ficar bem e tudo voltar pro seu lugar original.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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