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Chuva ácida

TEXTO Karina Buhr

13 de Maio de 2022

Ilustração Karina Buhr

Um dia comum, péssimos costumes de sempre, furacão de trânsito, janelas fechadas, máscara sim, máscara não, esperança imprensada no abafamento do transporte coletivo na capital, superlotado é sobrenome, a vizinha de corredor chupando um chocolate derretido. Gotas de plástico líquido escorrendo grossas pela testa, um calor que vem do âmago, estopô dos inferno, montanhas de saliva derretendo na boca aberta que ninguém vê, nariz entupido mais ao alto, pronta pra cuspir pra cima, pra chover um pouco, mesmo que baba. Refrescar. A espera sem a paciência necessária, mas respira, ela vem, se instala, por absoluta falta de condições de ser de outro jeito. 

Zero acontecimentos, estranha essa parada de ônibus sem ninguém, é meio dia de sol estatelante, de trabalho, ofegância e rotina, de bilhete torcendo pro motora e seu possante chegarem logo, sustenta ainda meia hora com o preço de ida e volta, tudo perfeito, menos cadê todo mundo? Acabou-se a civilização e eu estava dormindo? Só sobrou eu? Onde estão os mortos? Quem enterrou a multidão? Olha, não que eu espere alguma coisa de coerente ou bom desse ano da graça em que vivemos, mas não ter nem com quem comentar um acontecimento desses é de um mau gosto desse roteirista estranho, que sei não. 

Quarenta e sete minutos, minha gente? Eu estou falando com quem? Chega, não é possível uma coisa dessas. Vou andar, desisto, expediente não tem mesmo hoje, tentar descobrir, periga chegar no bairro vizinho e a população inteira ter sido sequestrada por algum demônio, que nem aconteceu aqui mesmo, esse filme já vi. O que eu estou dizendo? O sequestro foi exatamente esse, já estava tudo aqui, mas antes a gente se movimentava, agora só sobrou eu, por algum descuido do destino, esse cruel. Vou me paramentar, fazer uma colcha de retalhos com bandeiras rubras, arrastando pelo chão feito véu de Claudia Raia no mundo antes desse, mas tingido. Vou limpar o chão da rua toda, latinhas, tampinhas, embalagens de todo material, os lixos e a limpeza por onde minha cauda passou aguardando os mortos voltarem, duelar com o demônio e expulsá-lo de todos os cantos, com seu séquito de fantasmas comedores de dinheiro e cadáveres, ladrões de ouro da terra, matadores entupidores de rios, subir em cima da pilha em decomposição e acordar o carnaval no grito, clarins já na esquina de lá, o corpo elástico e com saudades de tudo o que já tinha visto antes desse desmantelo. 

Acorda suando, gotas plásticas do rímel à prova d'água fora da validade, olheiras roxas da maquiagem derretida parecendo surra. Morremos aos muitos, os que ficamos vingamos os que foram e expulsamos o demônio no mês dez do ano corrente, cansados da festa e querendo mais. Oi, capital de país, é um tipo de feliz ano novo, bom agouro, bom dia!

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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