É bom falar “aqui em casa” porque é quase verbo, acontece agora. O teto me cobre e a janela abre, se estiver emperrada abre, se estiver fechada quebra enquanto abre, se não tiver uma, bate até um buraco abrir e funcionar pela mesma ciência. A língua pra fora do animal estirado na pedra quente indica cansaço, sei bem, conheço o lobo desde criancinha.
Não é carne e osso, é uma escultura, na varanda que tem na frente com uma escada de três degraus antes do pé tocar na rua pouco movimentada. Esse pedaço da morada é vedado por portão de meio metro, com um cadeado desproporcional, já que é fácil pular pra quem pula. Mas ninguém pula porque ali mora um lobo. O medo segura o pulo mais que aquele cadeado inútil que custou mais caro do que o pequeno, mas a aposta na angústia de quem pensa em pular é o principal ingrediente, o terror na cabeça de quem, como eu, nunca viu um lobo, só imagina.
Do lugar da xícara quente, cuscuz e ovo mexido dá pra ver um pedaço da orelha da fera furando o canto da persiana e todas as manhãs espero que vá se mexer, levar um susto com o carro do abacaxi, revidar em qualquer um que atravesse a faixa. A fumaça da minha bebida sobe, dilui até sumir e a orelha não se mexe, nessa hora sei que falta pouco pro despertador tocar. Sempre acordo antes, o relógio é que nem o cadeado grande, o efeito do medo é real, o pânico da música insuportável tocando logo cedo nunca é do mesmo tamanho.
– O neném caiu!
O berro de Juju dissolveu as pedras dos muros, os rejuntes dos pisos, o quarteirão inteiro ficou sabendo, correria total, enquanto o sol grita lá em cima que todos estão atrasados pro ônibus das seis e meia. A tampa do bueiro aberta engoliu “neném”, o irmãozinho que ela cuida enquanto a mãe vai comprar pão. Desespero na boca do buraco do esgoto, um homem já lá dentro procurando o pequeno cadáver afogado, gente chorando, o circo armado e a mãe ainda no pão. Uma policial chega, lenta, pega a menina no colo e pergunta o que aconteceu, colecionando pistas.
– Meu boneco caiu.
– Não foi seu irmão?
– Foi meu irmão de brincadeira, meu irmão de verdade foi comprar pão com minha mãe.
E esse povo chorando e essa agonia, ninguém podia ter perguntado pra menina pra ver se era mesmo? É falta de assunto, meu povo?
– Eles acreditaram porque eu imitei a verdade bem direitinho, tia.
A mãe dobra a esquina com o saco de papel aberto na ponta pro vapor não molhar, o irmão neném no colo comendo um pedacinho do papel que molhou sim e o cheiro de pão quente reestabelecendo a normalidade no dia histérico, mas era brincadeira.
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