Geralmente

Cara de lobo

TEXTO Karina Buhr

10 de Março de 2023

Ilustração Karina Buhr

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Um cachorro com cara de lobo. Nunca vi um lobo, só nas fotos dos livros e acredito no que elas me dizem. Um bicho se acostuma com gente, trata por dono, come papinha enlatada, obedece, o outro nada disso. Não tenho mesmo dúvida do lobo, se me enganaram funcionou, tenho memória forte do cachorro da floresta, tem um que mora aqui em casa, do lado de fora, mas num canto coberto, sem muito sol e chuva nenhuma, um paninho que afofa a dormida. 

É bom falar “aqui em casa” porque é quase verbo, acontece agora. O teto me cobre e a janela abre, se estiver emperrada abre, se estiver fechada quebra enquanto abre, se não tiver uma, bate até um buraco abrir e funcionar pela mesma ciência. A língua pra fora do animal estirado na pedra quente indica cansaço, sei bem, conheço o lobo desde criancinha. 

Não é carne e osso, é uma escultura, na varanda que tem na frente com uma escada de três degraus antes do pé tocar na rua pouco movimentada. Esse pedaço da morada é vedado por portão de meio metro, com um cadeado desproporcional, já que é fácil pular pra quem pula. Mas ninguém pula porque ali mora um lobo. O medo segura o pulo mais que aquele cadeado inútil que custou mais caro do que o pequeno, mas a aposta na angústia de quem pensa em pular é o principal ingrediente, o terror na cabeça de quem, como eu, nunca viu um lobo, só imagina. 

Do lugar da xícara quente, cuscuz e ovo mexido dá pra ver um pedaço da orelha da fera furando o canto da persiana e todas as manhãs espero que vá se mexer, levar um susto com o carro do abacaxi, revidar em qualquer um que atravesse a faixa. A fumaça da minha bebida sobe, dilui até sumir e a orelha não se mexe, nessa hora sei que falta pouco pro despertador tocar. Sempre acordo antes, o relógio é que nem o cadeado grande, o efeito do medo é real, o pânico da música insuportável tocando logo cedo nunca é do mesmo tamanho. 

– O neném caiu! 

O berro de Juju dissolveu as pedras dos muros, os rejuntes dos pisos, o quarteirão inteiro ficou sabendo, correria total, enquanto o sol grita lá em cima que todos estão atrasados pro ônibus das seis e meia. A tampa do bueiro aberta engoliu “neném”, o irmãozinho que ela cuida enquanto a mãe vai comprar pão. Desespero na boca do buraco do esgoto, um homem já lá dentro procurando o pequeno cadáver afogado, gente chorando, o circo armado e a mãe ainda no pão. Uma policial chega, lenta, pega a menina no colo e pergunta o que aconteceu, colecionando pistas. 

– Meu boneco caiu.
– Não foi seu irmão?
– Foi meu irmão de brincadeira, meu irmão de verdade foi comprar pão com minha mãe.

E esse povo chorando e essa agonia, ninguém podia ter perguntado pra menina pra ver se era mesmo? É falta de assunto, meu povo?

– Eles acreditaram porque eu imitei a verdade bem direitinho, tia.

A mãe dobra a esquina com o saco de papel aberto na ponta pro vapor não molhar, o irmão neném no colo comendo um pedacinho do papel que molhou sim e o cheiro de pão quente reestabelecendo a normalidade no dia histérico, mas era brincadeira.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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