Ilustração Karina Buhr
Fechou o sinal, a buzinada me avisa, agoniada, jurando que tenho pressa. Um braço musculoso segurando a ponta da arma de um soldado, com um medo dos inferno estapeado na cara, que se treme, não atira, mas também não foge. Nada indica brincadeira, mas talvez eu esteja errada. Para quem passa correndo nada indica nada, nunca. Para quem olha para os lados vem o susto, na perenidade, cena atrás de cena, até o dia acabar e começar de novo, tentando olhar sempre para os lados, nem que seja quando for atravessar a rua. Daqui, da ponta da topada do meu dedão do pé, sendo mais dramática do que na verdade é, pelo excesso de gaze com remédio vermelho em cima, uns quinze metros, quase dobrando a esquina da rua da ponte, eles estão ali. Precisar ir por esse caminho eu não precisava, mas agora é que deu vontade mesmo, gosto de assistir o dia dos outros.
A discussão é sem palavra, um braço puxa, o outro também, ninguém sai do lugar, um tem um pouco de raiva, só o suficiente, o outro se finge, eu acho. A plateia cresce e aprecia, doida para que a briga ande, não é que queira que seja ruim, final triste, mas que seja alguma coisa. Olho aboticado é boia, as equipes se juntando pra formar as torcidas, por identificação espontânea. Um homem da blusa rasgada, que estava ali de figurante, vem com uma vassoura na mão acabar com essa palhaçada da gente fazendo barulho, é necessário concentração, e um silêncio instantâneo se faz, desconfiança desse poder que ele tem, ele nem tinha. Ficou olhando encantado com a façanha, todo mundo quieto, cada respiração colada na outra, mesmo com os barulhos dos carros dá para ouvir, e olhe que vai dar cinco horas da tarde, dá nem para ver o chão de tanto comboio.
Os caras com arma entupida com a mão, o medo congelou até a bala, se recusa a sair, mesmo com os trancos de agora, um puxa e encolhe, um balança e tranca, um braço cansa, o outro também, batalha empatada. Um corpo é farda e ferro de passar, o outro, músculos e descalço. Cabeças cobertas as duas, um boné e uma camiseta de armazém de construção amarrada. Uma água que não é chuva respinga e começa a porrada, alguém cuspiu pra cima e a mãe de alguém foi citada.
Uma onda imensa, vinda do rio debaixo da ponte, derruba tudo, corpos pra tudo quanto é lado, mas todo mundo vivo, não é tragédia, as pessoas riem e eu não entendo nada, mas bato palmas e grito umas coisas incompreensíveis, além do forabolsonaro, que eu grito sempre, até quando levei a topada no dedão. Uma carroça, quatro meninos em cima, um maior puxando na frente e cantando Tudo Ok, feliz da vida, parabéns, menino! Pense numa carruagem, que a beleza toda vai nela? É fita, é papel, é flor de garrafa de plástico, é mais plástico, só que tudo organizadinho pelas cores, é tampinha, o mundo todinho de tampinha, é os irmãos agarrados, cada um o cinto de segurança do outro, e um cachorro pequeno e uma bandeira do Brasil toda pichada. E vão embora, estava era bom.
Sigamos, rumo à próxima temporada do dia mal começado, a gente não tem muita autoridade sobre os acontecimentos. Acordo. Não é possível não, era sonho! Nem lembro mais direito, tinha uma arma entupida e uma bandeira pichada. Dormi de novo. Uma árvore imensa, cheia de peixes em cima e nuvens junto das raízes. Bom dia. Acabou o café. Não é possível.