Ilustração Karina Buhr
Como é que isso, que eu sinto, tão forte, quando passo aqui, pra outra pessoa é parecido? O cheiro do mar, essa ladeira, o único cinema que ainda não virou igreja, meu primeiro lugar de todos, meu número. Um tempo desse pensei que eu era a única, depois achei justo dividir a sensação.
A aula é às três, dá para respirar um pouco aqui, mas só vale se for sem pensar em nada, limpar a cabeça das notícias de hoje, alienar, só parar, sem nada apertar a mente, sem lembrar dos ponteiros, fazer de conta que não existe aperreio, contemplar, meditar. Antes ainda ligar o despertador para ele me avisar do final do período de concentração. É perigoso mergulhar no nada, gostar e não voltar mais. É importante saber do final, sempre achei que todo mundo devia nascer sabendo o dia que termina, num instante a gente ia fazer as coisas direito, se é que a ideia é construir alguma coisa. Podem só ter jogado a gente aqui e se virem, não temos planos pra vocês, foi um acidente.
Queria saber fazer yoga agora, uma pessoa equilibrada, arquear minhas costas igual aquele portal da praça, estalar cada pedaço, lubrificar as juntas sem fazer esforço, quem passar perto “meu deus, que elástica!”. Mas com o que temos trabalharemos, sentada nessa pedra fria, olhando as casas descaracterizadas, janela de vidro na fachada antiga, esses caixotes descomedidos, fortalezas plantadas nas lajotas de mármore daqui a pouco quente.
Vejamos se sai o texto da aula. “Externe aquele teor irremovível da sua personalidade, a intenção que não se avista de fora e isole, para transformar em uma característica da personagem”. Estou sem forças pra pensar, mas sem isso não passo de ano, sem passar de ano não tenho férias e todo o cheiro de mar que vou sentir é esse aqui, que mora nesses quarenta minutos de folga, tédio, descanso, pausa, chame como quiser, não me importo com palavras.
Essa fachada do antiquário, casa velha, placa querendo ser futurista, era para parecer moderno, mas só pareceu feio. É até de se admirar! Virei fã do dono da loja. Imagina você ter esse espaço pra sua residência, onde pode até ganhar dinheiro sem sair de casa, reconfigurar a parte da frente, decoração nova a cada estação, transformar o dia a dia de quem passa, cores na lateral, no verão uma sorveteria na sacada. Se quiser mais um dinheiro, alugue a salinha da frente, toda formosa no azulejo. Em vez disso fez uma loja de coisas velhas. Eis que me saio uma adolescente intransigente, quem diria. Inspira, deixa o homem fazer a loja que ele quiser na casa dele, isso, expira.
Desse ângulo vejo uns móveis escuros, umas flores de plástico penduradas no mesmo prego que o relógio de parede. Tem uma meia dúzia de relógios ali. Mas, voltando ao dono da loja, ele resolveu abrir um antiquário e, em vez de encomendar uma placa coerente com um lugar de velharias, procurar umas referências de como eram as fachadas na época em que os objetos à venda não eram antigos, não, ele um dia acorda bonito, resolve “vou abrir minha loja”, leva uma foto na xerox colorida do shopping e volta de lá com essa placa amaldiçoada. Não vai durar um mês isso aí, que nem um monte de negócio novo nesse lugar, que abre e fecha na sequência, família toda endividada. Se não tiver cliente que venha por indicação de alguém, com certeza vai falir.
Para. Puxa o vento salgado com o lado esquerdo e solta pelo direito. Agora o contrário. Inspira em quatro a maresia, segura quatro, expira em mais quatro, de novo soro evaporado inundando o nariz, a calma. Agora torna pro caderno, respira, o texto da aula.
Sim, despertador, desconfiei que tinham acabado meus minutos, gastei tudo com a placa terrível da loja que abriu na esquina. É isso, não tem o que fazer, desperdicei as horas, de novo. Vou, pelo menos, usar a energia da raiva pra dar um conselho pro vendedor novato, nos meus últimos minutos de vagabundagem.
– Boa tarde, moço, tudo bem?
– Ainda tem gente que dá boa tarde, nem tudo está perdido. Muito boa tarde, senhorita, o que deseja?
– Eu não queria comprar nada, vou dar só uma olhadinha pra falar pra minha mãe, ela não deve saber ainda que abriu, poder querer que eu leve alguma coisa.
– A gente funciona há quarenta anos, moça.
– Quarenta? Mas moço, como assim? Eu venho aqui a vida inteira e nunca tinha visto que era um antiquário!
– É porque antes não tinha essa placa.