ILUSTRAÇÃO Karina Buhr
A listra amarela acesa na parede, nascida da fresta de frente pro lençol grosso de flor, a essa altura incoerente porque, nesse exato instante, um fio de leve geladinho vem, da mesma espessura, um pouco mais sem força só, o suficiente para a respiração falsear quando entorna nariz adentro. O primeiro espirro do dia. A paisagem da rua de cabeça pra baixo no teto, filme de rolo de fita, cortado e colado na unha, projetor maquinário velho, motor com barulho de trem, garagem do vizinho lava carro feliz, volume de acordar no susto, na hora certa, sem despertador, só da responsabilidade pesada mesmo, nada mais faz acordar cedo no domingo. Se bem que nunca mais fez diferença o dia. Amanheço com pressa pela noite, pra passar logo isso tudo, isso nada, um dia grudado no outro, ações com impulso somente animal, ou o que restar disso, e sem banda, sem as corridas e vividas de fazer a usina moer, a linha roer e estourar mais lá na frente, por motivo torpe às vezes, as violências de sempre e agora uma outra, imensa, cobrindo tudo, estendendo um vazio sem remédio. Com remédio, mas como se não.
Mas o assunto era recheio de bolo quando fui dormir, porque antes era alguma notícia de desgraça que eu cobri de doce, o ponto do bolinho de chuva pra não ficar travoso, mas já azedou antes da primeira amargura. Ano que vem a gente brinca carnaval mas não vai ter de novo, a única certeza é um não tamanho de um bonde, pra tudo, um não, um não tamanho do mundo, impedindo a circulação do ar. Única coisa certa é nenhuma, nada que cure, só o que adoece, aperreia, destrói, entonta. Fico tacando água em tinta, tinta em papel, papel em moldura, como pra divertir, mas é só pra passar. E passa, e passa, mas o lugar pra onde vai é nenhum. Faço um céu listrado colorê, forma de voz estridente de criança agitada, que nem desconfia, mas sabe, um por do sol infantil, caricatura de alegria, televisão desenho desanimado.
Eu queria muito poder me ajudar, passar essa tira rosa mais pra lá, a azul pro lado esquerdo, ornar bem direitinho. Era só isso, encher o papel todo. Gostaria de escrever querido diário, hoje eu ia te começar mas acabou o tempo ruim, não precisa mais, vou tomar um banho de mar, esvaziar a pouquidão do ano passado, vai dar é trabalho mas é bem isso que precisava, sair desse papel, construção terceira dimensão, nem sei se sei andar ainda, mas talvez sim. Se não souber reaprendo, vai ter tempo agora pra tudo. Vou largar essa página, não faz sentido te contar mais porque já passou, perdi tempo, tudo esperando pra inflar de novo, pulmão mais fraco, sem tônus de perna, aquele pedacinho gostoso que tinha na coxa, a parte de dentro, desmilinguiu, mas tudo certo no errado, fez a volta inteira e encaixou, o gosto é outro mesmo, não vai doer.
Esquecer a palavra foi o verbo principal até agora, desde quando mesmo? Um dia desses. Cortar e colar do lado pra não fugir de novo a raposeira, já tem um monte aqui, é reler pra elas ficarem fazendo parte, porque se elas desistirem aí lascou. Estou totalmente nas mãos delas, é assim, mas agora sei não, estranho. Vertigem, desiste, se desistir fica bom, pronto, agora torne, tem muito a ser feito, panelas vazias.
Acho que eu não adoro nenhuma coisa, é outro assunto, mas tem a ver. Observo apaixonados por ofícios, ou pelos dinheiros dos ofícios, por necessidade, vaidade, cada um cada qual, mas eu, pessoalmente, minha própria figura, a essa altura, acho que não gosto muito assim de nada. Eu vou fazendo, até cumpro direito, mas um objetivo, um ponto de mira pra ir nele até o fim, isso aí tenho mais não. Será que passa? Passa tanto as coisas, isso deve também. O sol está tão bonito atrás das árvores, quem vê nem diz!