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Adivinhando chuva

TEXTO Karina Buhr

14 de Junho de 2021

Ilustração Karina Buhr

Adivinhando chuva que se diz. Minha cara de paisagem. Uma insônia da asma que me mata, mas não me vacina e uns sons soltos na madrugada, normal, madeira rangendo porque mais frio ou quente, mudanças repentinas do clima da cidade, o vento ventando. Não ligo mais, nunca é nada. Vou para o quarto de escrever, desenhar e tocar trombone, por mais que nada disso tenha sido posto em prática ultimamente. Fico ali fazendo o mesmo que eu faria no colchão, mas em outro cenário. Lendo no Twitter notícias das desgraças mais recentes, a essa hora na língua dos outros, forçando a tradução. Todo dia é isso, a madrugada é das bad news e quando amanhece vêm as notícias ruins. 

Relembrando as cenas da véspera, um jogador tendo mal súbito, morrendo e ressuscitando nas mãos dos médicos mágicos e outro com convulsão muito forte e os colegas, desesperados, abanando com as camisetas do clube. A vida é besta mesmo. O nariz é entupido e aí muita água pra evitar antialérgico e corticoide essa semana. Chá bom, chá ruim. Tentativas. Assuntos alheios e incoerentes passando feito filme, falta de sono é basicamente isso, não ter força suficiente pra produzir nada, ter força suficiente pra não pregar o olho de jeito nenhum. Todos dormem no quarteirão, diariamente, menos eu. 

Não preciso levantar, mas acho que vou, é necessário verbos pra chegar quatro e meia da manhã, a hora perfeita pra adormecer, quando todo mundo já desistiu, menos você e aí é a glória na tranquilidade do peso perfeito nas pálpebras, na medida delas descerem lentamente e aí hoje só amanhã, já passada da hora, tendo que responder a todos os diálogos de compromissos deixados no vácuo começando com “desculpa”, autodepreciação diária nesses tempos últimos, que serão os primeiros. Dou uns passos moles até o corredor, a caminho do banheiro um vulto na janela! É o lençol da vizinha dando umas voadas, já seco, não sei por que não recolheu, sei sim, dessa forma que funciona, no próximo temporal ela tira. Volto pro quarto do trombone e das escritas, leio mais umas tragédias, queria coisa boa, mas está faltando e não tenho motor de arranque para procurá-las em lugares inóspitos, queria que elas apenas pulassem no meu colo, então não acontece.

Os estalados de novo, mas não é nada. Vou pegar um copo d’água, revisar o basculante da cozinha, com cuidado para não derrubar o café de São Benedito, ver se não tem um fantasma ou pior, gente, ali naquela parte. Não teria nada pra levar dali, mas, sei lá, coisa ruim não precisa de motivo pra acontecer. Tudo certo, mato a sede e trago ela de volta imediatamente, que nem o médico do futebol, com uma colher de brigadeiro gelado, dizem que não faz bem, mas essa é uma grande mentira. No percurso de volta, de novo o vulto, mas relaxe, é só o lençol. Dessa vez não! Não é possível. Tem um homem ali! A janela fechada só no vidro, vivemos dando esse vacilo e não travamos a parte de madeira.

Ele está olhando pra mim, fincamos uma comunicação. Um leve calafrio e sem condições de reação, inclusive pode ser só um convidado da vizinha com insônia também. Mas ele começa a se mexer estranho, acho que não é um convidado não. João! Ele, que acorda com qualquer ruído, agora não me ouve, dorme feito pedra, teve vinho na véspera. O convidado da vizinha, a poucos metros de mim, pula pro nosso telhado, mais perto ainda, seguimos na comunicação, ele sai correndo pelas telhas e emenda na laje do outro vizinho, não acompanho o desfecho, sem ângulo de visão. Acho que ele estava roubando sim, não deve ser uma pessoa tentando cortar caminho por cima das casas no meio da madrugada. Não tenho coragem de gritar. Não acredito, foi isso mesmo, ele roubou a vizinha e meu grito de “João!”, se ele mesmo não ouviu, imagina as casas de perto. Acho que gritei pra dentro. 

O cara tinha um saco de Papai Noel, uma máscara cirúrgica toda certinha na cara, daquele jeito bem raro, ladrão orgulho da OMS. Tinha uma touca também, só um pouco espaço pra visão noturna, gatuno esperto, a câmera da casa da frente pegou, impossível reconhecer alguém naquele disfarce. Mas isso eu só soube depois, dormimos das sete às onze e, na ressaca da quase invasão da nossa casa, obrigada asma, pensamos em como falar com as pessoas da rua sobre o ocorrido. Não parece ter sido de verdade, sensação esquisita. Lá pras duas da tarde um burburinho perto do portão. 

– Amiga, roubaram algo? Vocês não estavam em casa, estavam?
– Não. Fomos em São Francisco do Conde, enterro da sogra da minha filha, morreu de Covid. De quando descobriu a doença pra morte foi uma semana, minha filha abalada demais, tínhamos que ir, e acabamos só voltando agora. Levaram meu computador, que ainda nem paguei, a aliança do meu filho e a cafeteira. 

O cara levou a cafeteira, me identifiquei. A aliança, será que roubou por ciúme? Perceba que estou carente de enredo na vida real, mas é que achei interessante a escolha dos objetos. Me desceu um peso na consciência de pensar tanta besteira, como consigo? Ela ficou sem o computador, meu deus, me arrepio de pensar na possibilidade de ele ter entrado aqui e levado nossas coisas também e teria acontecido não fosse minha falta de sono e de ar. Egoísmo, mas se bem que não, não se deprecie de novo, foi torança mesmo. 

Como pude não ter reação nenhuma? Eu podia ter gritado. Se bem que não, daqui que alguém ouvisse, levantasse da cama e chegasse no portão, ele já estaria longe. E ele podia também atirar em mim com o susto do grito. Aliás, obrigada, senhor assaltante, por não ter atirado em mim. Obrigada também pela máscara, você e a gente aqui em casa somos os únicos a usar o artefato nessas paragens. Você está de parabéns. Ele também deve ter me agradecido por eu não ter atirado nele. Nos alegramos com as coisas simples. O otimismo é a alma do negócio.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.

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