“São filmes que falam do passado, iluminando o presente”
Selton Mello fala à Continente sobre a comédia "O Auto da Compadecida 2", no qual retorna a Chicó, papel que marcou sua carreira, e o drama "Ainda estou aqui", em que interpreta Rubens Paiva
TEXTO Débora Nascimento
20 de Dezembro de 2024
Foto Laura Campanella/Divulgação
Selton Mello é um dos atores mais adorados do cinema brasileiro. Nas telas, interpretou personagens marcantes, como Leléu, de Lisbela e o Prisioneiro (2003), e Kusco, na dublagem em português de A nova onda do imperador (2000). Mas, sem dúvida, o mais cativante e popular de todos é Chicó, de O Auto da Compadecida (2000).
Com mais de 40 anos de carreira, Selton começou na TV a sua trajetória como ator, atuando em telenovelas como As Três Marias (1980), Corpo a Corpo (1984), Sinhá Moça (1986), Pantanal (1990), Pedra Sobre Pedra (1992), Tropicaliente (1994) e A Próxima Vítima (1995). A estreia no cinema aconteceu em 1990, em um filme dos Trapalhões, Uma Escola Atrapalhada. Mas a primeira atuação de destaque foi em O Que É Isso, Companheiro? (1996). Alguns anos depois, veio a consagração ao encarnar Chicó em O Auto da Compadecida, na minissérie da TV (1999) e no cinema (2000).
Nessa produção, ficou evidente o seu talento também para a comédia. A interpretação do mentiroso e medroso Chicó, companheiro de João Grilo, tornou o ator um astro nacional. A partir daí, passou a ser chamado para papéis cômicos, como em Lisbela e o Prisioneiro (2003) e O Coronel e o Lobisomem (2004). Selton seguiu como um dos nomes mais requisitados do cinema brasileiro, atuando em filmes diversos, como Nina (2004) e O Cheiro do Ralo (2007), ambos de Heitor Dhalia, Árido Movie (2006), de Lírio Ferreira, e A Erva do Rato (2008), de Júlio Bressane, e Meu Nome Não é Johnny (2008). Em 2006, fez sua estreia por trás das câmeras com o curta-metragem Quando o Tempo Cair. Na sequência, vieram os longas Feliz Natal (2008) e O Palhaço (2011).
Na reta final de 2024, o ator, prestes a completar 52 anos, no próximo dia 30, lança a autobiografia Selton Mello: Eu me lembro, volta ao seu papel mais famoso, o de Chicó, na sequência de O Auto da Compadecida, dirigida por Guel Arraes e Flávia Lacerda, que terá sua estreia nacional no dia 25 de dezembro. Neste mesmo período, o artista está no filme brasileiro mais comentado nos últimos meses, Ainda estou aqui. O drama, dirigido por Walter Salles, foi escolhido por unanimidade pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais (ABCAA) para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2025 e já levou mais de 2,5 milhões de espectadores às salas de cinema.
A obra está conquistando prêmios internacionais e recebeu indicação ao Globo de Ouro 2025 na categoria Melhor Filme (Drama) e vem sendo cotada para uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. No total, a produção está apta a ser contemplada em oito categorias. Dentre elas, a de atuação, em que Fernanda Torres está em forte campanha midiática. Mas Selton Mello não pode ser descartado. Afinal de contas, deu ao público mais uma atuação cativante, interpretando o ex-deputado Rubens Paiva, vítima fatal da ditadura militar no Brasil.
Nesta entrevista à Continente, o ator mineiro, radicado no Rio, falou sobre o seu retorno ao universo de O Auto da Compadecida e a expectativa em relação à indicação ao Oscar para Ainda estou aqui.
CONTINENTE O Auto da Compadecida é um dos filmes mais adorados da história do cinema brasileiro. Como é o desafio de voltar a atuar na continuidade de um arrasa-quarteirão?
SELTON MELLO Tenho uma relação de muita gratidão com o filme. Estou de volta com alegria para dar vida ao personagem que mais me acompanhou durante esses 20 anos. Vejo que tem uma geração nova que não assistiu ao primeiro Auto, mas conhece os bordões e ama os personagens. Então vai ter gente que vai adorar O Auto da Compadecida 2 e aí vai ver o primeiro. Algumas pessoas vão preferir o primeiro, e tudo bem. O primeiro vai existir sempre e será sempre um clássico. O segundo vem pra cravar um outro lugar na história do cinema. Não vejo a hora de começar a exibir o novo filme para o nosso público tão apaixonado.
CONTINENTE Qual foi a sua reação ao receber o convite para voltar a atuar nesse universo do Auto?
SELTON MELLO Senti uma alegria absurda, pois seria o reencontro com o personagem mais icônico, mais popular da minha vida. Eu não dou um passo em qualquer lugar do Brasil sem que alguém venha me falar do Chicó. Todo mundo, independente da geração e da classe social, conhece o Auto. Tem gente que tem DVD até hoje, tem gente que sabe as falas, faz batalha de dublagem nas redes sociais, é uma coisa muito poderosa. Quando falamos em fazer o segundo, fez sentido por tudo isso, pelo amor que as pessoas sentem por essa dupla. É um carinho que a gente oferece para o público.
CONTINENTE Como é voltar a interpretar um mesmo personagem 24 anos depois? O personagem está mais velho? O que mudou na sua atuação?
SELTON MELLO Ele continua sendo um frouxo, o maior frouxo que ele mesmo já conheceu (risos). Eu adoro essa coisa dele ser medroso, e isso continua firme e forte, mesmo na continuação, onde é um homem feito, não mais um menino. Mas, claro, 20 anos depois, agora ele virou um homem, então, de vez em quando, ele vira uma chave da maturidade. Ele vai lidar com algumas questões da vida amorosa, quando Clarabela, nova personagem da Fabíula Nascimento, se encanta por ele, e Rosinha retorna à cidade. Sobre a atuação, foi muito curioso, porque era como se eu só precisasse colocar a roupa e virava o Chicó de novo. Foi lindo demais!
CONTINENTE Como é a química entre Chicó e João Grilo após tantos anos separados?
SELTON MELLO Eu e Matheus temos muita química em cena. É como se esses palhaços já estivessem dentro da gente, apesar do longo tempo sem revê-los. Nós somos dois capricornianos e a gente se complementa sem combinar. Ele faz um negócio e eu faço outro, parece que a gente nasceu pra fazer esses personagens. Nesse tempo todo não trabalhamos juntos em outras produções. Portanto, continuamos uma dupla, no imaginário brasileiro. Quando a gente se junta é para fazer João Grilo e Chicó, e eu acho isso uma coisa muito curiosa e linda.
CONTINENTE Depois de O Auto, você estreou como diretor. Essa função modificou sua forma de atuar?
SELTON MELLO Desde que comecei a atuar, tenho esse olhar da direção, que foi sendo aprimorado ao longo dos anos. Quando eu era criança e comecei a fazer novelas, já gostava de mexer nas câmeras, observar o foco, a luz e outras etapas da criação que dizem respeito à direção. Então minha forma de atuar foi muito influenciada por essa minha inclinação natural. Mas claro que são dois pontos de vista diferentes e, como ator, eu escolho trabalhar com diretores que confio e admiro o trabalho. Eu conheço o método e a linguagem da Flávia (Lacerda) e do Guel (Arraes) muito bem. Com o Guel, fiz também Caramuru (2001) e meu filme predileto, Lisbela e o Prisioneiro. Sou, com orgulho, um “ator do Guel”.
CONTINENTE Como foi receber o convite para interpretar o ex-deputado Rubens Paiva?
SELTON MELLO Foi emocionante, pois eu sabia que estava diante de um trabalho muito sensível. O Marcelo Rubens Paiva é meu amigo há muitos anos e eu não imaginava que, um dia, eu faria o papel do pai dele. O Rubens era uma pessoa muito carismática, muito querida, e que as pessoas gostavam muito dele, por onde ele passava. Então juntei tudo isso e tentei prestar um tributo à imagem e à memória dele.
CONTINENTE Na exibição de Ainda estou aqui, no Janela Internacional de Cinema do Recife, em novembro, o diretor Walter Salles Jr disse que o Rubens era a última pessoa que ele imaginava, que as pessoas imaginavam, que seria presa pela ditadura. Apesar de ser uma história triste, o filme passa muito essa ideia de alegria, a ideia de família, também. Como foi construir esse personagem que todo mundo hoje adora?
SELTON MELLO Era um personagem que precisava ser muito marcante, e que você precisava amá-lo logo, pra você sentir a dor da perda junto com a personagem da Fernanda. Foi um trabalho muito sensível, como tudo que o Walter faz, muito bonito.
CONTINENTE Como foi o processo para elaborar a sua interpretação?
SELTON MELLO Eu não tive acesso a nenhum vídeo dele. Eu só vi fotos, ouvi histórias sobre ele e conversei com os filhos. Conversei também bastante com o Walter, pra entender o tom que ele queria para esse personagem. Eu não estava interessado em imitar trejeitos ou o jeito dele andar. Eu precisava entender como ele se comportava, como era o espírito dele. Quis investigar como ele era com os filhos, com a esposa, com os amigos, e o que ele emanava. Um trabalho mais espiritual, eu diria. Menos técnico. Com mais acesso ao que eu achava que devia imprimir para eternizar a figura do Rubens Paiva no imaginário brasileiro, em um filme, para sempre.
CONTINENTE Como é estar, numa mesma temporada, em dois filmes de gêneros cinematográficos tão díspares e baseados em brasis tão diferentes?
SELTON MELLO Me sinto realizado em estar em duas produções tão diferentes em que pude explorar lados distintos das minhas possibilidades. Ambas prometem cativar o público, cada uma com sua linguagem e proposta. Ainda estou aqui traz um realismo maior, que a própria premissa pede, já que foi baseado no livro do Marcelo Rubens Paiva. Já O Auto da Compadecida 2 tem uma aura de fábula, descolada do realismo. São filmes que falam do passado, iluminando o presente. Ambos são importantes para esse momento cinematográfico do Brasil e mostram que fazemos cinema para todos os gostos, para todos os públicos. É ótimo, eu me sinto representante do cinema brasileiro, que eu sempre fui, com Meu nome não é Johnny, Lisbela e o Prisioneiro, O Palhaço, O Filme da Minha Vida, filmes que eu dirigi também. É um amor muito grande pelo cinema e é uma alegria ver o cinema sendo celebrado como ele está sendo nesse momento, as pessoas lotando as salas para ver Ainda estou Aqui, como vão voltar agora para ver O Auto 2. Isso é muito bom. É um prazer muito grande, porque a gente fez com muito amor o nosso cinema, que é a nossa identidade, é o espelho de uma nação. Quando você olha na tela, e ouve português, você está se vendo. Isso é muito bonito.
CONTINENTE Como está sua expectativa com relação a uma possível indicação de Ainda estou aqui ao Oscar?
SELTON MELLO Tem uma torcida brasileira grande, pra gente, pra nossa cultura, pro nosso cinema, e tem sido saboroso acompanhar de perto. Pode ser que o Oscar aconteça, mas o mais importante é que fizemos um filme lindo, necessário e estamos orgulhosos com a trajetória. Acho que ele vai ficar como um retrato de um período marcante do cinema brasileiro. É um filme sensível, muito bem realizado e muito emocionante. Também estou na torcida e espero que a gente vá longe. Eu acho que a gente tem muita chance no Oscar, também, de estar entre os cinco indicados para o Melhor Filme Estrangeiro, que agora se chama Melhor Filme Internacional. É um filme lindo, importante, é um momento muito bonito, isso que a gente tá vivendo. Não só eu estou vivendo, claro, porque eu estou nesses dois filmes, mas pro Brasil é importante. A cinematografia brasileira é importante. E esse amor do público novo, para uma geração nova que está encantada com Ainda Estou Aqui e que vai ver o Auto 2 e que vai ver outros filmes brasileiros, porque agora pegou gosto de ver as nossas coisas. Então isso é uma coisa extraordinária. E eu ser um agente desse momento é motivo de muito orgulho.
CONTINENTE Você está lançando um livro agora.
SELTON MELLO Lancei um livro chamado Eu me lembro. É um livro comemorando meus 40 anos de carreira. Então, eu falo de tudo, falo do Auto, falo do Ainda estou aqui, falo de toda a minha trajetória. Falo da minha família, falo da minha mãe, que faleceu este ano, mas lutou contra o Alzheimer durante anos. É um livro íntimo e bonito. Foi uma decisão de comemoração, 40 anos de carreira, eu vi que estava acontecendo isso e falei, "nossa, acho que precisa documentar isso". É uma carreira bonita, eu tenho orgulho de tanta coisa vivida, e o Chicó é uma espécie de cereja do bolo. É o meu personagem mais popular. Em todo lugar do Brasil, por onde eu passo, as pessoas amam o Chicó e sabem alguma fala do Chicó. E agora vão decorar as novas. As novas mentiras, as novas histórias.
CONTINENTE Eu vi, em algum lugar, que você não pode dizer "não sei"...
SELTON MELLO É, que o pessoal já fala, "só sei que foi assim".
DÉBORA NASCIMENTO, editora-assistente das revistas Continente e Pernambuco