Entrevista

“Toda obra imaginativa nos coloca mais facilmente em uma realidade paralela”

Em entrevista à Continente Online, o crítico, escritor e professor Cristhiano Aguiar fala sobre suas influências literárias e o processo de criação do livro 'Gótico nordestino'

TEXTO José Roberto de Luna Filho

08 de Abril de 2022

Cristhiano Aguiar está lançando livro com nove contos que misturam sonho e realidade e traços da cultura pop

Cristhiano Aguiar está lançando livro com nove contos que misturam sonho e realidade e traços da cultura pop

FOTO Renato Parada / Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Cristhiano Aguiar nasceu em Campina Grande, na Paraíba, mas mora já há alguns anos em São Paulo. É professor universitário do curso de Letras da Universidade Mackenzie e tem vários estudos publicados a respeito da literatura contemporânea. No entanto, seu interesse pela literatura vai além das suas pesquisas: Gótico nordestino, lançado este ano pela editora Alfaguara, é o seu quarto livro de ficção. A obra reúne um total de nove contos, possuindo cada um deles pelo menos três elementos em comum: 1) se passam no Nordeste; 2) misturam sonho e realidade; 3) possuem presença marcante de traços da cultura pop.

Mas se engana aquele que acreditar serem histórias com o mero fim de entreter o leitor ocioso. A todo momento, Cristhiano tensiona e recria as imagens da cultura moderna. Sua ficção é mesmo experimental, tendo em vista o caráter tão variado das temáticas e enredos presentes nos contos. A cada história, somos acometidos por diferentes sentimentos. Sentimos repulsa, medo, angústia, horror. Em alguns casos, nos acomete mesmo uma vertigem, tal é a rapidez e a multiplicidade dos acontecimentos narrativos. Como caminhássemos sob o breu de uma macabra rua do Recife Antigo, estamos sempre alertas e nunca sabemos o que nos espera na próxima linha, na próxima página. A todo momento somos surpreendidos, porque o enredo nunca está em acordo com nossas expectativas.

A versatilidade talvez seja o diferencial dessa obra. Dificilmente existirá leitor que não se agradará de pelo menos um dos contos. Afinal, o livro inicia com o conto Anda-luz, talvez o mais experimental, em que a ênfase recai sobretudo na possibilidade de recriação dos espaços sertanejos por meio da linguagem e na capacidade de produzir efeitos estéticos no leitor, indo além da simples elaboração de uma narrativa linear. Firestarter, o meu favorito, por sua vez, explora uma personalidade obsessiva e macabra, marcada pelos estranhos fetiches que vão surgindo na contemporaneidade e que são potencializados pela tecnologia. Aqui, o progresso tecnológico não acompanha o progresso moral, de maneira que um sujeito sente prazer em usar seu celular de última geração para gravar, sem qualquer empatia pelas vítimas, os diversos tipos de incêndio que surgem na cidade. Completamente diferente dos já citados, é A noiva, que combina de maneira inusitada a experiência do horror diante da arbitrariedade: política e existencial. 

A Continente enviou algumas perguntas ao autor, a fim de trazer mais informações sobre suas ideias literárias e também sobre a obra recém-lançada. 

CONTINENTE Quais escritores brasileiros mais lhe influenciaram na criação de um livro gótico e nordestino?
CRISTHIANO AGUIAR Existem três escritores na literatura brasileira que são sempre uma referência para mim: Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. São meus prosadores favoritos. No caso de Clarice, a influência se faz sentir de maneira mais visível na minha escrita por conta de certo tipo de personagens, temas e situações na minha prosa. Por outro lado, há uma limpidez no estilo de Machado que tem sido um norte para mim nos últimos anos. Portanto, a despeito do projeto de escrita com que eu esteja envolvido, essa minha santíssima Trindade é sempre meu norte. No caso específico do Gótico nordestino, há também uma outra base muito importante: o romance de 30, em especial as obras de José Lins do Rego, Raquel de Queiroz e Jorge Amado. Enquanto escrevia Gótico nordestino, eu revisitei as obras desta que é a geração que dá nascimento ao romance brasileiro no século XX. O último conto do livro, Vampiro, por exemplo, é minha tentativa de misturar Menino de engenho, de Zé Lins, com Edgar Allan Poe e mangás de horror. Já Anda-luz, por outro lado, não existiria se eu não tivesse relido O quinze, de Raquel de Queiroz, em 2020. 

CONTINENTE Para mim, seus contos têm um elo bastante amplo entre si. Acredito até que cada um agrada diferentes tipos de leitores. Você acha que a relação entre eles é realmente mais fluida?
CRISTHIANO AGUIAR Concordo muito com tua leitura. Cada conto possui sua autonomia. Neste sentido, é bem diferente do que tentei fazer no meu livro anterior, publicado em 2018 pela Lote 42, Na outra margem, o Leviatã. No caso do livro de 2018, eu fiz contos interligados, que compartilhavam personagens entre si. Eu estava muito influenciado pela obra do argentino Juan José Saer. Em Gótico nordestino, ao contrário, eu me preocupei mais em criar uma atmosfera em comum aos contos, brincando com diferentes homenagens e referências em cada um deles. Assim, Lázaro é minha história de zumbis, mas uma história que é menos um apocalipse e mais um melodrama familiar; a Mulher dos pés molhados é minha homenagem a Lovecraft e meu comentário sobre a ideia do Nordeste como um paraíso turístico; Anna e seus insetos é minha reescritura do conto Amor, de Clarice Lispector, mas também minha homenagem ao procedimento do “horror corporal”.

CONTINENTE Algumas pessoas desconhecem, mas o Nordeste sempre foi uma região cheia de histórias assombrosas. Mesmo nas áreas urbanas, há várias lendas que fazem parte do imaginário popular – e mesmo da literatura, cujo melhor exemplo talvez seja o romance A emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. Tendo isso em vista, qual você considera que é a contribuição de Gótico nordestino a essa tradição? 
CRISTHIANO AGUIAR No caso desta vertente bem específica, a compilação de causos assombrosos da nossa imaginação popular, meu livro de cabeceira é Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre. Aliás, saindo do campo mais sociológico das lendas assombrosas, há gótico e insólito em José de Alencar, Aluísio Azevedo, Maria Firmina dos Reis e Augusto dos Anjos, por exemplo. Em Gótico nordestino, exceto talvez no primeiro e último contos, a influência das lendas populares fica em um segundo plano. O quanto o livro contribui para esta tradição? Não consigo avaliar e acho que isto cabe aos leitores e à crítica literária. Posso ter a esperança de que meu livro contribua numa atualização de certos temas e perspectivas.

CONTINENTE É inegável a relação que há entre seus contos e a cultura pop. Em vários momentos, tive a impressão de estar lendo as graphic novels mais macabras da Vertigo. O uso desses elementos é uma forma de demonstrar que eles têm mais a oferecer do que se espera deles? Isto é, demonstrar que há algo além do mero entretenimento nesse tipo de arte?
CRISTHIANO AGUIAR Quando os quadrinhos que mais tarde seriam publicados ou republicados pelo selo Vertigo, da DC Comics, surgem no mercado de língua inglesa, a visão sobre essa mídia já é bem diferente. Ali, nos anos 1980 e 1990, temos um mundo dos quadrinhos, no ocidente, que é pós-Watchmen, pós-Maus, pós-Cavaleiro das Trevas, pós-Incal. No momento em que passo a ler os quadrinhos da Vertigo, bem como as graphic novels mais adultas da Marvel (sim, a Marvel já quis ser adulta) e a revista Heavy Metal, que publicava no Brasil os grandes autores do quadrinho europeu, há um processo de amadurecimento dos quadrinhos em estágio avançado. Nós, brasileiros, no caso dos quadrinhos, até há pouco olhávamos com excesso somente para os Estados Unidos, mas há décadas já havia muita maturidade no quadrinho argentino, japonês, espanhol, britânico. Quando eu começo a ler, na adolescência, a Vertigo, a ler Sandman, Monstro do Pântano, Hellblazer, Livros da magia, Os invisíveis, eu ia de maneira consciente buscando nos gibis a densidade que eu encontrava na literatura e no cinema. É possível que toda esta conversa suscite preconceitos – “como assim misturar referências eruditas literárias com quadrinhos?” – mas, sinceramente, cheguei a um ponto da minha carreira em que não me importo com nada além do que acredito que, criativamente, devo fazer. 

CONTINENTE Qual você considera ser a importância de uma literatura imaginativa em tempos de realidade tão sombria?
CRISTHIANO AGUIAR É comum que escritores que se dedicam a um modo narrativo – seja este modo o realismo, ou o fantástico – façam algum proselitismo em relação ao que mais gostam, antagonizando literatura fantástica x literatura realista, por exemplo. Eu preciso de ambas. Sem um bom domínio das técnicas da escrita realista, um projeto como o meu naufraga, porque eu parto da construção de personagens, tempo e espaço verossímeis para em seguida colocá-los sob a ameaça do sobrenatural ou de algum evento realmente esquisito. Assim, Gótico nordestino é uma obra que se filia à tradição da literatura fantástica, em especial ao terror e ao gótico, no entanto ele também é, ao seu modo, prosa realista. Dito isto, narrativas imaginativas como Gótico nordestino têm um potencial de reverberar com especial intensidade em tempos sombrios. Por que isto acontece? Dois são os motivos. Primeiro, porque toda obra imaginativa nos coloca mais facilmente em uma realidade paralela, uma realidade que nos alivia do cotidiano sombrio e opressor do nosso entorno. Porém, e aqui está a astúcia da coisa, a imaginação fantástica, caso se proponha a tanto, pode condensar em imagens e metáforas a essência do horror do presente, fazendo com que a gente o experiencie de uma maneira nova. Uma maneira catártica, uma maneira que conduz a um diferente conhecimento acerca da experiência histórica na qual estamos imersos? Penso que sim. Não faço ideia se Gótico nordestino chega a tanto. Cada leitor e leitora é que vai me dizer. 

CONTINENTE Sei que é difícil, mas qual seu conto favorito? Se não houver um favorito, qual você considera que encarna melhor o projeto estético do livro?CRISTHIANO AGUIAR Toda mãe vai dizer que não tem um filho ou filha favorito, embora isso com certeza não seja verdade. Por outro lado, eu gosto de todos os nove contos de Gótico nordestino e me sinto orgulhoso por cada um deles, não necessariamente porque os considere perfeitos – longe disso –, mas porque eu enxergo em cada um deles a realização de propostas que me são bastante pessoais. Me sinto satisfeito com eles porque estou criativamente à vontade com cada um dos textos, entende? Porém, se você me pedir para escolher um, e apenas um, dos contos do livro como aquele que o representa, não hesito em dizer As onças. Eu o escolho porque, quando o finalizei, eu disse para mim mesmo “Opa, tem um caminho novo pra mim aí”. No entanto, acho que a cada semana eu tenho um conto que ocupa minha mente. Um dos contos de Gótico nordestino que tem dividido opiniões é Firestarter. Algumas pessoas gostam muito, outras nem um pouco. Inclusive, você ter escolhido este conto como o seu favorito já me deixa imensamente feliz. 

CONTINENTE No atual cenário mundial, quais você considera serem os escritores que têm afinidades eletivas com seu projeto?
CRISTHIANO AGUIAR Na ficção científica, sem dúvidas os contos de Ted Chiang. Quando eu li pela primeira vez os contos dele, eu tive uma iluminação, algo como “e dá pra fazer desse jeito também?”. Claro, Chiang não inventou a ficção científica de qualidade, porém seus contos me lembraram das possibilidades literárias da ficção científica. Eu me sinto muito próximo da literatura latino-americana contemporânea, de nomes como Mariana Enríquez, Samanta Schweblin, Giovanna Rivero, Roberto Bolaño, mas também Silvina Ocampo, Bioy Casares, Juan Rulfo e Borges. Tenho uma admiração recente pela escrita de Djaimilia Pereira de Almeida e de Ungulani Ba-Ka Khosa. Admiro escritoras contemporâneas como Elena Ferrante, Lucia Berlin, Ursula Le Guin, Alice Munro, N.K. Jemisin, Darcey Steinke. E sou fanático por Philip Roth. Li muito Roth, por sinal, enquanto escrevia vários contos de Gótico nordestino, em especial Lázaro e Anna e seus insetos. 

CONTINENTE Você acredita que existe uma relação entre sua atuação como crítico literário e seu ofício de romancista? Se sim, qual?
CRISTHIANO AGUIAR Esta tua pergunta me deixou em crise. Porque eu inventei uma autoimagem “romântica”, na qual o Cristhiano acadêmico, o Dr. Jekyll, nada tem a ver com o Mr. Hyde que escreveu Gótico nordestino. Mas não é verdade, até porque o médico e o monstro são sempre uma só entidade. Quando a gente promove um livro novo, há toda a movimentação de responder a entrevistas, como esta que a Continente gentilmente faz comigo. Ora, cada entrevista que eu concedo me ensina camadas de Gótico nordestino. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que, nos nove contos, ao menos algum personagem pode ser considerado como afligido por uma enfermidade, seja física, seja mental! Enquanto eu escrevia Gótico nordestino, eu passei a desenvolver um projeto de pesquisa sobre... doença e literatura, tendo a Covid-19 como foco. Tenho escrito e publicado textos de crítica literária sobre como a literatura brasileira tem criado representações ficcionais sobre a Covid. Você próprio me revelou outra dimensão disto. Me refiro a um ensaio inédito, lido por você e que sairá como capítulo de um livro, no qual eu faço uma defesa do realismo de base flaubertiana/tchekhoviana, realismo este que é base da mimesis – esta palavra já foi cancelada? – de Gótico nordestino! A gravata da ABNT, portanto, está frouxa em meu pescoço, mas não desaparece quando escrevo ficção. 

JOSÉ ROBERTO DE LUNA FILHO, mestre em Teoria da Literatura pela UFPE, com dissertação sobre a obra de Graciliano Ramos e sua relação com a modernidade.

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