Entrevista

“São estratégias de sobrevivência esses caminhos da arte”

Multiartista potiguar leva seu 'Nordeste Ficção' em turnê na Europa, propondo uma nova simbologia para a região

TEXTO Gabriela Passos e Yuri Euzébio

29 de Dezembro de 2023

Juliana Linhares elaborou disco tendo como referência o livro 'A invenção do Nordeste'

Juliana Linhares elaborou disco tendo como referência o livro 'A invenção do Nordeste'

FOTO Clarisse Lissovsky / Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Pra você, o que, afinal, é o Nordeste? E quantos “Nordestes” existem dentro do Nordeste? Uma das cinco regiões geográficas que formam o Brasil, definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 1969, a área ainda possui uma série de elementos e símbolos que permeiam o imaginário coletivo de forma contundente e que estigmatizam um espaço e, sobretudo, um povo. Você lembra quando você entendeu que era nordestino?

O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, no livro A invenção do Nordeste e outras artes (1999), apresenta uma cartografia nordestina e uma reinterpretação da área, propondo a ideia de que nossa região só foi “criada” por volta de 1910. Antes, o Nordeste simplesmente não existia e o Brasil era dividido em Norte e Sul. Ao longo do livro, o professor traz inúmeros acontecimentos que nos ajudam a criar o que se conhece por Nordeste, explicando que uma série de autores, alimentados pelo pensamento regionalista, começaram a estabelecer símbolos que são usados até hoje para uma suposta visibilidade da região, e sobretudo de uma divisibilidade do Nordeste. Ou seja, a região acabou sendo inventada.

Juliana Linhares, cantora, compositora, atriz e roteirista potiguar, ao entrar em contato com a obra de Durval, decidiu que queria ser porta-voz desse assunto. Ao longo de sua trajetória, estando entre regiões, Juliana foi colocada nesse lugar do diferente, do não pertencimento, e assim ela desenvolve o seu primeiro trabalho autoral, lançado em 2021, o Nordeste ficção. A cantora aprendeu observando os estereótipos, e seus shows cheios de cores, divertidos, com doses de ironia, mostram as diferentes magias e encantos do Nordeste, que nunca couberam dentro das caixas do nordestino inventado. Em tempos em que coisas como sotaque neutro vão ficando para trás, seu projeto, embala diferentes ritmos, contesta, alfineta, faz sorrir, brinca e te pega pela mão para conhecer um nordeste cheio de possibilidades. 

De passos firmes, mas sem perder a leveza, a multiartista parece não se importar com um suposto papel que deveria ocupar ou com convenções para chegar onde pretende. Do tipo que olha no olho e responde com sinceridade todas as perguntas, Juliana tem consciência do espaço que ocupa e de onde almeja chegar. A potiguar leva um projeto que fala do seu quintal para outro continente do mundo, sem nunca esquecer de onde veio ou fazer concessões em sua arte.

Prestes a estrear a turnê europeia do Nordeste ficção, a poucas horas antes de ir ao aeroporto embarcar, Juliana encontrou um espaço para conversar com a Continente por videochamada, a partir da sala de sua casa no Rio de Janeiro. Nesta entrevista fluente e reflexiva, a cantora, compositora e atriz comentou sobre sua vida, família, infância, trajetória nas artes, sua relação e entendimento do Nordeste, suas referências artísticas e curiosidades sobre sua primeira ida em carreira solo ao continente europeu. Para Juliana, o Nordeste ficção também é sobrevivência que carrega palavras de liberdade para ser o que se é.

CONTINENTE Para início de conversa: Como começou a sua carreira? Qual foi o seu primeiro contato com as artes, com a música?
JULIANA LINHARES Eu comecei ainda criança cantando. Acho que teve a ver com teatro e com o que a escola oferecia de atividades culturais. A minha família é uma família de interior, de origem mais humilde mesmo, nunca teve acesso a nada e é aquele povo que tentou dar para os filhos aquilo que nunca teve, sabe? Então, eu estudava, meus pais trabalhavam muito e toda vez que vinha alguma coisa da escola: “Vamos abrir um curso de teatro! Um grupinho de artes”, a minha mãe tentava me colocar em tudo o que ela podia, era até engraçado, lembrando agora. Ela conta que, quando eu era muito criança, um dia ela chegou na escola e eu tinha pego o microfone da professora, que estava rouca, e eu estava puxando umas cirandas na sala. Ela entrou na escola e falou “Nossa! Essa voz é da minha filha”. Eu era muito pequena. Então, ali, ela viu que eu tinha uma atitude pra me apresentar, né? Mais do que cantar ou atuar, era estar ali com o microfone na mão. E aí, mais velha um pouco, entrei no coral infantil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e essa foi a minha primeira parte de musicalização mesmo, na minha vida, foi o coral infantil. Me apresentei muito com o coral, nós viajávamos, abria encontros de corais maiores e tal. Depois eu entrei no teatro. Aí, durante a minha vivência no teatro, eu unia a música às cenas. Quando eu fui ficando mais velha, fui fazendo cenas de teatro cantadas, peças musicais, e nisso eu ia cantando em casa e a música foi fazendo morada na minha vida. Quando virei cantora mesmo, eu falava com o meu irmão em casa: “Nem sei como danado isso foi acontecer” e ele sempre respondia: “Juliana, você passava horas tomando banho cantando em casa”. E eu nunca tinha me dado conta de que aquilo fazia parte de mim e eu não percebia mesmo.

CONTINENTE E essa Juliana que gostava de cantar no chuveiro já tinha se imaginado chegar nesse lugar de cantora onde você está hoje?
JULIANA LINHARES De jeito nenhum. Era intuitivo, eu não pensava sobre isso. É muito louco! As pessoas falam: “Ah! Eu sempre te via cantando” e eu sempre tive essa coisa que é muito doida, é Nordeste Ficção total, a menina de Natal que o povo dizia “Tu tem uma cara de quem é de fora daqui” e eu fazia: “Por quê? Eu tenho cara de fora? O que é cara de fora?” Enfim, o que é que dá a cara de ser de fora do Nordeste? Quer dizer que se você usa um cabelo platinado, tem cara de fora, quer dizer que tem coisa que diz, que o que é mais pra frente vem de fora? Isso é uma coisa absurda de se pensar e que nós acostumamos a absorver, né? Mas eu nunca pensei em sair de Natal até o dia em que eu saí, sabe? Foi de uma hora pra outra, eu não pensava, não sonhava, não me via, eu gostava da minha vida lá, eu tinha uma vida boa. Tinha minha família perto, meus amigos, eu fazia faculdade de Arquitetura em Natal, na UFRN, fazia parte de um grupo de teatro e cantava à noite. Eu ainda estava muito perdida na vida, eu queria ser atriz, na verdade, aí veio a luz de fazer assim: “Cara, vai pro Rio estudar teatro”. Quando fui estudar teatro, comecei a cantar profissionalmente. Foi um sopro, foi tipo “Vai!”. Hoje em dia, tenho cantado tão pouco no chuveiro, minha gente. Não dá nem tempo mais. Não consigo nem tomar banho mais, porque não dá tempo. (risos)

CONTINENTE Você saiu de Natal e foi muito jovem para o Rio, construiu toda sua trajetória profissional lá, imaginamos que isso acaba te colocando em um “não-lugar” por vezes, né? Nem potiguar, nem sudestina? Como é pra você ocupar esse não-espaço?
JULIANA LINHARES Eu estava conversando sobre isso esses dias, porque, com o sucesso da série Cangaço Novo, saiu uma entrevista de uma amiga atriz da série falando sobre ela ser uma artista potiguar, mas artista potiguar de verdade, porque ela não saiu de Natal para fazer sucesso no Sudeste, ela ficou em Natal, né? Isso mexeu muito comigo, claro, porque quem sai sempre deixa um fio ligado, é muito difícil. E você faz assim: “Cara, será que era pra eu ter saído mesmo?” Você não tem tudo, ganha um mundo, mas perde o outro. É difícil mesmo, você abre mão de muita coisa, de muita troca, muita vivência com o seu lugar para estar em outro, porque a presença é muito válida nessa hora. Você precisa estar presente na vida das pessoas. A quantidade de amigo meu que diz “Ah, você não aparece mesmo”. Gente, eu estou presente em outro lugar com mil demandas e é difícil lidar com todas assim. Manter Natal e Rio, naquela época, pra mim, era mais complicado. Hoje até acho que tenho mais maturidade pra lidar com isso e esse lugar de dizer que “você é uma artista potiguar de verdade porque você ficou aqui, se fez aqui” mexeu comigo. Porque aqui eu não sou considerada uma artista sudestina de jeito nenhum, nem em editais, nem nada. E em Natal, também não sou considerada uma artista potiguar de verdade porque eu não estou lá. Então, é um não-lugar doloroso mesmo de conviver, mas eu acho que combina um pouco com o Nordeste ficção, porque ser nordestino é isso também, é um não-lugar hoje em dia que é: você é nordestino e você não é. Ao mesmo tempo, a gente é, como eu já falei várias vezes, porque aquilo já é construção histórica mesmo, cultural, nós somos nordestinos. Não tem como não ser. Mas, ao mesmo tempo, nós temos a consciência e o estudo de entender de onde isso vem. Então, eu gosto de brincar com esse ser e não ser, eis a questão, em vez do ser ou não ser, que eu vi isso junto com a peça do Carmim junto com o livro A Invenção do Nordeste. Eu fico pensando, ser e não ser, né? O que é que diz? Eu tenho um gene nordestino? Características? Então, quer dizer que a minha cara e o meu cabelo não são nordestinos? O que é isso? Então, eu sou e não sou? Que conjunto de estereótipos é esse que eu preciso absorver para ser o que você quer que eu seja? E eu acho que esse não-lugar é uma coisa muito confusa na minha vida hoje, porque eu vivo viajando de um lado para o outro, não tenho casa em lugar nenhum. Eu chego em Natal e muitas vezes eu sinto isso, essa dificuldade de absorção em alguns lugares, outros não. E também no Sudeste a mesma coisa, às vezes um grande abraço e em outros um: “Volte para onde você veio!”, sabe? Eu vi agora esse vídeo que viralizou nas redes da mulher de Portugal e é um absurdo, né? E isso aconteceu muito e acontece com o nordestino. A gente vive ouvindo por aí, muitos sudestinos que proferem um discurso absurdo de “Volte! O que é que você tá fazendo aqui? Já que tá ruim pra você, por que não volta para onde veio” é esse lugar. Então, é muito duro, porque tudo é construção política, econômica, social e nós somos frutos e resultado de um monte de manipulações de muito tempo, e aí você chega em um lugar e não é bem recebido, aí também chega no seu e não é. Se eu quero absorver São Paulo, eu vou absorver porque eu tenho essa possibilidade, esse direito real e não porque um paulista vai dizer que eu não posso, isso daí não existe. Então, é um não-lugar curioso e que move também, nos faz sentir a raiva necessária para agir.

CONTINENTE Ainda dentro dessa ideia de Nordeste e Sudeste, há um tempo, lemos, em um livro de Lélia Gonzalez, que a gente só começa a entender certas problemáticas sociais com profundidade quando saímos de onde estamos e somos colocados numa posição de subalternidade. Sente que isso aconteceu com você? Falar sobre o Nordeste, exaltar os olhares e a pluralidade nordestina, foi algo que surgiu a partir dessa ida ao Sudeste ou sempre foi algo que te tocou?
JULIANA LINHARES Pra mim, foi muito diferente, eu morava em Natal, vivia em um círculo que ninguém falava: “Oi, nordestina!”. Não existe isso. Nós não pensamos assim, é normal. E aí eu saí de um lugar onde, em qualquer situação, eu era apontada como a nordestina, eu falei: “Peraí! Eu sou uma coisa que eu nem sei que eu sou? De um jeito que eu não sou”. Peraí, o que é que eu sou aqui nesse espaço para essas pessoas? E, muitas vezes, eu fui desvalorizada e colocada no lugar de inferioridade assim, de capacidades inferiores, sabe? De inteligência inferior, enfim. Eu sou uma mulher branca, então falar hoje disso, pra mim, é muito delicado, porque há pessoas que passam por situações muito mais graves, questões de gênero e questões raciais que eu não posso falar, mas eu fui, como nordestina, e lésbica também, em inúmeras situações, muito desvalorizada mesmo. As pessoas não acreditavam em mim, quando eu cheguei ao Sudeste. Parece que o seu trabalho não vale o mesmo. E também muito rotulada: “Ah! É!? Então, você é isso aqui. Vou te botar aqui que eu quero e tô vendo aqui que você é isso”. Tinha uma dificuldade muito grande para abrir o olhar e o ouvido para aquilo que eu realmente sou e pra minha dificuldade de me entender. Porque eu não sabia quem eu era, eu tava me descobrindo e rapidamente eu virei um monte de coisa para um monte de gente. E aí, quando eu tava com cabelo platinado, cantando forró, as pessoas não compreenderam e falaram: “Jesus! Que aberração”. Ao mesmo tempo, é isso, uma pessoa que se coloca de determinadas maneiras, e é sapatão também, não é absorvida na cultura LGBT, porque tem outras demandas. É confuso mesmo. São espaços que você está o tempo inteiro aprendendo a ocupar, sabe? E a dialogar mesmo, para que, como eu falei, o meu intuito na minha vida e na minha arte, seja bom, que nós tenhamos bons diálogos. Que seja grande para a gente, que nos sintamos imensos, com o peito cheio, com vontade de ser feliz, de viver e não o contrário. Acho que o meu lugar como artista é meio esse, e ocupando um monte de lugares ao mesmo tempo.

CONTINENTE O livro A Invenção do Nordeste, de Durval Muniz de Albuquerque, fala de um período, onde o Brasil era dividido apenas entre Norte e Sul. E aí, uma série de autores, alimentados pelo pensamento regionalista de Gilberto Freyre, começaram a estabelecer símbolos que são usados para uma suposta visibilidade da região, e, sobretudo, de uma divisibilidade do Nordeste, ou seja, a região acaba sendo inventada por esses criadores de narrativas. Sua intenção com o álbum foi sair do estereótipo do que é o Nordeste? Ou uma ideia que perdura no Nordeste?
JULIANA LINHARES É, um pouco. Eu acho que quis lançar essa ideia no ar, sabe? Fazer com que esse estudo de Durval fosse, na verdade, mais conhecido. Hoje eu falo com muita gente que diz “Eu li o livro já! Eu conheço Durval”. Mas, nesses anos de disco, avançou muito nesse sentido, e não estou dizendo que fui eu. Acho que as coisas que aconteceram, a própria peça e as pessoas também estão se interessando mais em entender o Nordeste, de verdade. Porque nós vimos que o Nordeste sofreu, aliás, sofre, mas teve uma supervalorização do olhar sudestino de um tempo pra cá, né?  E eu queria mais era ser uma porta-voz desse assunto, para que, dentro desse assunto, pudéssemos falar também sobre a nossa valorização e pudesse dizer assim: “No fim das contas, o Nordeste é muito mais do que você pensa. É muito mais do que esse estereótipo. É muito mais do que uma coisa só, é muito mais do que uma região, é um monte de coisas.” Então, na minha cabeça era assim: Será que, com esse assunto, eu consigo abrir portas pra gente falar sobre isso e acender uma luz na cabeça das pessoas para olhar para o Nordeste de uma forma mais ampla, mais poderosa, mais profunda? E eu acho que a gente consegue, sempre que eu falei sobre o disco, foi abrindo um espaço nesse sentido. As pessoas ficam: “Nossa! Eu não sabia disso. Nossa! Caramba! É mesmo!” E aí, sei lá, é olhar para outras coisas que o Nordeste tem e as pessoas não olhavam. Quando eu fui fazer o disco, eu saí perguntando: O que você pensa quando fala em Nordeste na sua cabeça? E é sempre o mesmo estereótipo, de Lampião e Maria Bonita, praia e gente engraçada. E isso é muito curioso, quando eu fui fazer a letra da música Nordeste Ficção, pensei muito nisso, no cacto e em brincar um pouco com esse humor, porque nós também fomos colocados em um lugar de bem-humorados que sustentam tudo, né? Quando eu falo “lugar hostil de gente tão pacífica”, é tudo irônico. Hostil, porque foi criada a ideia de como se fosse um lugar hostil mesmo, quente e desagradável e de gente tão pacífica porque é esse povo que tá “Olha! é tão acolhedor o nordestino!” e é mesmo, é isso que eu falo a gente é, pior que a gente é, é cultural. Mas, ao mesmo tempo, existe uma construção e uma sociedade que se aproveita dessa construção para montar na gente. Não é que não possamos ser, mas precisamos olhar pra isso e dizer: “Tá, a gente é, mas a gente também não é imbecil, não é idiota. A gente não tá aqui sem saber”. Então, não venha com aquele: “Ah, não! Eles são acolhedores. Eles são tão resistentes” e bota pra trabalhar 24 horas no metrô porque a gente é resistente mesmo, é o cacto. Eu adoro o cacto, mas eu acho que precisamos criar as camadas de entendimento em relação às coisas, senão, vira isso: é lindo o cacto resistente na seca, guarda água dentro de si. Eu acho que o Nordeste Ficção tem muito disso pra mim, por isso que a música fala de uma pessoa que saí pra tentar a vida, porque a quantidade de nordestino que você vê no Sudeste trabalhando em situação de subemprego é de chorar. Botaram a gente pra segurar essa onda mesmo. Então, pra mim, a construção do Nordeste Ficção é um empoderamento de uma nordestina no palco falando dessas coisas, fazendo a gente se sentir mais poderoso, mais livre, construindo junto com um monte de artista contemporâneo, que está fazendo um monte de coisa. Eu acho foda, cada um na sua área mostrando essa potencialidade que a gente tem, seja no rap, no brega. Tudo a gente tem uma quantidade de gente imensa olhando pra isso e ampliando as possibilidades da nossa profissão.

CONTINENTE A ideia do Nordeste Ficção surgiu a partir da leitura do livro de Durval? Queríamos saber quando foi que você leu esse livro? E como foi depois ler um texto do Durval citando o Nordeste Ficção?
JULIANA LINHARES Eu fiquei próxima de Durval, eu tive a sorte de conseguir o contato dele e aí quando eu fui fazer o disco, nós fizemos uma aula online. Tiramos muitas dúvidas, falei com ele, expliquei o disco, ele ouviu, me falou muitas coisas interessantes. Durval tem uma visão, né? Hoje eu tenho a dele, mas tenho muitas outras também pra misturar. Dia desses, eu postei um negócio de Durval e as pessoas, os famosos haters, que falam: “Sim, mas o Nordeste não é só Durval”. Eu falo: “Gente, eu sei! Eu tô abrindo aqui uma outra linha”. É um negócio que foi pouco visto. Então vamos olhar para isso e absorver também. Não falar assim “Não é isso”. Eu acho Durval uma das pessoas mais inteligentes que a gente tem. Um gênio e é muito massa de conviver e poder aprender com ele, claro que cada um é um, tem a sua própria experiência. Tem que saber ter discernimento para poder absorver as coisas, ele mesmo fala coisas fantásticas do tipo: “Eu saí do país e me emocionei ouvindo Asa Branca”. Ele é uma pessoa que quer falar de um assunto, e é radical porque é difícil segurar a onda que ele segura, né? Mas ele também não está com toda a razão só pra ele. Eu acho que ele tem os posicionamentos e a luta dele nessa pesquisa, eu acho interessante. Eu vi a peça, pedi o livro a Quitéria Kelly, que é lá de Natal, diretora e atriz, ela me emprestou e eu fui lendo o livro e falei: “Cara, é sobre isso!” Vou juntar tudo que eu já pensava e botar nesse conceito. Mas, foi a partir do livro que eu entendi o fio da meada do que eu queria, só que trazendo o conceito para ser discutido as várias nordestinidades mesmo no álbum. Não era negando o Nordeste, mas brincando com essa possibilidade da ficção.

CONTINENTE Nordeste Ficção possui um olhar para a região com uma lupa para a diversidade, entendendo o Nordeste como um espaço múltiplo e misterioso. Quais olhares artísticos te ajudaram a enxergar esse Nordeste plural? Quais as referências artísticas que formaram a ideia de Nordeste pra você?
JULIANA LINHARES Eu tenho uma referência muito grande de sempre que é O Grande Encontro; Raul Seixas, eu ouvi muito todos esses artistas. O próprio Tom Zé também, eu ouvi muito forró a minha vida toda dentro de casa e em todos os lugares. Então o forró da antiga é uma parada que me sustenta. Taí o Tareco e Mariola no disco, porque é uma música que quando eu cheguei no Rio, ninguém conhecia e eu falava “Nossa! Existe uma fronteira imensa”, porque isso é um grande sucesso em todo lugar que eu vou, como é que ninguém aqui sabe? Então, eu aprendi muito quando eu me vi olhando essas diferenças. Mas, muitos artistas contemporâneos também têm no disco. No show eu canto a Karina Buhr, que eu acho uma artista cênica, performática interessante. Trouxe a Letrux para o disco, que é uma mulher que, no palco, cruzou muito forte comigo. Acho ela muito interessante, pessoa inteligente que sabe criar dramaturgia mesmo, eu gosto dela. O próprio Pietá é uma referência de trabalho da minha vida, que cruza com o Nordeste Ficção, Cátia de França, a Khrystal minha conterrânea, a galera aí do Reverbo: Juliano Holanda, Almério, Martins, as meninas todas. É uma galera que eu troquei uns anos atrás e me ensinou muito, me fez olhar para o Nordeste de maneiras diferentes. Eu também tenho grandes referências aqui, né? Elza, Elis Regina, Gal, Gilberto Gil. Esse povo todo não tem como a gente não ter influência. Muita coisa, tem artistas da dança também: a Angel Vianna, de Pina Bausch a outras coisas. Enfim, eu tenho referências visuais que me formaram também, muita gente mesmo. É um negócio imenso, sei lá, que é até difícil de falar assim. É isso, eu já vi filme de Almodóvar e fiz uma música por causa de uma frase, eu acho que eu sou meio antropofágica. Tem Rita Lee, Zé Celso e tem toda a galera do teatro, porque eu vi Zé Celso muito nova, quando cheguei aqui no Rio, aquilo mexeu muito comigo. Falei: “Gente! Olha isso. Eu não sabia que isso era possível”. Cartola que me faz entrar na música profissional. Eu cantava em barzinho, então cantei muita bossa nova. Mas, eu sou muito dessa geração do Pietá, fruto dos artistas contemporâneos mesmo porque a gente trocou com muitos músicos da nossa geração: Caio Prado daqui, cantores que nós gravamos juntos e pra mim foi um aprendizado imenso na época, de estar começando a cantar e ter essa oportunidade. O próprio Chico César, poxa. Chico César pra mim é um ouro da música brasileira, é um negócio de outro mundo. E eu tenho a chance de ter Zeca Baleiro e Chico César no disco como parceiros. Então pra mim é muito massa e hoje ter cantoras amigas que eu troco. É ver um povo massa chegando e fazendo coisa nova, tava Getúlio Abelha também, uma figura, uma performatividade potente. De Fernanda Montenegro a Quitéria, Titina Medeiros, o povo da minha cidade que eu vi começando a fazer teatro, sabe? Vi todas elas, olha que sorte! Vi em cena, pude vê-las todas e vibrar. Alice Carvalho que tá aí a protagonista de Cangaço Novo, que é minha amiga de Natal. Então, eu tenho muitas referências bonitas que me enchem de inspiração e aprendizado.

CONTINENTE A gente sabe que essa colonização do olhar, essa invenção do Nordeste, coloca o nosso povo como inferior ao Sul e Sudeste. E também existe isso numa esfera macro, global, né? Entre Europa (os colonizadores) e Brasil, América Latina (colonizados). E agora nós já não queremos ir pra Marte, né? Queremos ir pro Ceará. Isso é algo que você pensa agora indo fazer turnê na Europa?
JULIANA LINHARES Não é uma coisa assim: “Ah! Eu tenho que ir. A Europa que vai dizer o que o meu trabalho representa”. Eu acho que é mais sobre ampliar o mercado, ampliar poder, recuperar dinheiro mesmo e trocar cultura. Mostrar que a cultura da gente é muito forte, tem valor e tem público. Além de abrir uma fonte, porque o mercado internacional tem muitas portas, quando você vai abrindo, você conhece um mundo com a tua música que vem do teu quintal, aquela velha história. Pra mim, é isso. Não é sobre valorizar mais o de fora, até porque eu tô aqui batalhando muito aqui dentro. É aproveitar a oportunidade de olhar pro mundo, levar nossa música, e aprender com isso porque o mundo é foda também, tem muitas culturas diferentes, muitas pessoas passando por situações diferentes e é importante a gente olhar pra fora, né? Para entender melhor quem nós somos no mundo e poder utilizar melhor essa função. Valorizar até mais a volta. Tô indo muito feliz mesmo, acho que é uma conquista imensa, tenho muitos amigos de Natal e do Brasil lá e acho que essa força de levar nossa brasilidade pra quem está lá longe, alegra bastante. Eu sei o que é viver longe, não é brincadeira. Então, eu estou muito feliz de poder ir.

CONTINENTE E você já tinha ido tocar lá na Europa? Ou é a primeira vez?
JULIANA LINHARES Então, com o Nordeste Ficção é a primeira vez. Mas, lembrei de uma coisa: ano passado, fui com o Pietá (projeto formado entre os artistas cariocas Frederico Demarca e Rafael Lorga com a cantora) e fui ver uma mulher cantando fado. No final, ela sentou na minha mesa e eu falei: “Se eu pudesse perguntar para você, que é uma cantora profissional de fado, o que eu poderia cantar se eu quisesse aprender um fado simples?”, ela olhou pra mim e falou: “Jamais cantarás fado!” Aí eu fiquei: Nossa! E a primeira resposta que eu dei pra ela já foi entrando pra briga: “Tu acha que eu não posso cantar um fado, nem diante de toda a colonização? Nem com essa herança colonial, essa situação toda, tu acha que eu não tenho direito de aprender a cantar um fado?” Aí ela já gaguejou, se embananou todinha. Porque caralho, que resposta, né? Numa boa. Então, esse ano eu vou lá cantar um fado. Foda-se! Eu vou cantar lá e vou dizer isso: “A mulher falou que eu jamais iria cantar um fado, vocês cantam bossa nova, samba, cantam tudo e eu não vou poder cantar um fado?”. Porque pra cantar fado tem que ser um lisboeta do sofrimento? Gente, eu respeito. Eu não quero virar uma cantora de fado e nem ferir a cultura de vocês, eu quero cantar um fado, pedir uma licença, aprender, dividir, absorver a cultura de vocês, que foi tão próxima, sei lá. Dividir um pouquinho, compartilhar mesmo, por que não? A mulher falou que eu jamais cantaria fado e eu vou lá cantar, se não quiser paciência. Vou cantar só um fado também, eles vão ficar querendo mais e eu não vou querer fazer (risos). Então, tem isso, eu tô indo com tudo isso, com essa bagagem aí. Indo pra cantar mesmo. Falando assim: “Nossa! Depois que eu fiz shows com milhares de perrengues, eu tô levando meu show pra lá e aberta às surpresas de como vai ser ouvir um sotaque nordestino na Europa, de como vai ser essa recepção, de como é a comunicação dessa canção em outra língua”. Enfim, eu tô curiosa pela experiência humana mesmo do rolê, sabe? E acho que vai ser massa pra todo o mundo. E tá a minha família inteira emocionada porque eu vou cantar lá em Paris. Pronto, tá bom, já vai ser legal.

CONTINENTE E dos lugares em que você já se apresentou, onde é que você se sentiu mais potencializada nos palcos?
JULIANA LINHARES Olhe, eu vou dizer para você, eu fiz muitos shows do Nordeste Ficção e os shows do Nordeste foram muito bons. O show de Natal foi emocionante, minha família estava toda lá, os meus amigos, que eu não via há anos, foi muito foda. O show de Olinda foi muito especial, emocionante, parecia que estava tudo acontecendo ali naquele momento, umas coisas meio milagrosas assim. Muito doido. Tinha uma senhora na plateia, aí ela falou: “Por favor, canta o Rabo do jumento!” eu nem cantava essa música na época, agora eu botei. Nem pensei muito, falei “Vou cantar!” e fui cantando pra ela mesmo. Eu cheguei na mesa, ela olhou pra mim, eu cantei pra ela, e no final, vieram umas pessoas falarem comigo: “Você sabe o que aconteceu?” E eu: “Não!”. Aquela mulher está com câncer terminal, ela pediu pro médico pra vir no show e ele liberou, ela trouxe a família dela inteira, é muito sua fã. Eu fiquei assim embasbacada e, no final, eram os filhos dela uns abraçados aos outros, todos chorando e me agradecendo. Eu não sabia nem onde enfiar a minha cara e ela me abraçava. O povo perguntava: “Você sabia?” E eu: “Não! Claro que não”. Aquele momento do final, eu não acreditava. Então aconteceram umas coisas que são mistérios mesmo. Mas, lembro de outros também. O show de Fortaleza, no Cariri, Ceará foi uma coisa de outro mundo, porque era isso: eu cantava “...E não quero ir pra Marte, quero ir pro Ceará” e era assim uma explosão. O show do Ceará, que demorou tanto e foi tão lindo. Foram muitos shows bonitos mesmo, mas os do Nordeste tem um lugar especial na minha vida.

CONTINENTE Você é uma artista plural. Cantora, compositora, atriz, roteirista e muitas outras coisas. As linguagens se misturam quando você tá desenvolvendo um trabalho?
JULIANA LINHARES Pode ter certeza. Completamente! Quando eu vou desenvolver um trabalho, é tudo meu envolvido ali, tudo o que eu penso e absorvo, essa pessoa caótica que fala trezentas coisas ao mesmo tempo. É essa pessoa que vai interferir no trabalho que eu estou assinando. Eu não consigo pensar na música e não pensar na luz, não consigo pensar no tema e não pensar no texto. E é um caminho mais difícil mesmo de ser entendido pelo público, pela crítica, porque é muita coisa mesmo. Tem uma performatividade, mas também dentro de um lugar nordestino, as pessoas às vezes, se não for rock n’roll ou brega, acham confuso esse lugar da MPB misturado com uma estética mais pop. É difícil, né? Mas, eu sou essa pessoa que tenta fazer as coisas com a artista que eu sou, que vem muito do lugar do teatro. Acho que o teatro influencia muito nas minhas escolhas musicais mesmo.

CONTINENTE Nesse lugar do sentir mesmo, o que é para você o álbum Nordeste Ficção?
JULIANA LINHARES Cara… Nossa! Difícil responder essa. O que é? Eu acho que ele é a minha sobrevivência em todos os sentidos, sabe? É a minha sobrevivência, ele me dá quase tudo o que eu tenho mesmo. O meu trabalho me dá muita coisa: amigos, dinheiro, aprendizados, trocas, surpresas imensas. É uma sobrevivência, é uma bússola. Como foi na pandemia, é uma esperança que faz você sobreviver, porque você acredita naquilo e aquilo te faz mover. Aquilo faz você acreditar que amanhã tem que levantar e buscar isso e aquilo, mesmo difícil porque te dá caminho, caminho de esperança e sobrevivência mesmo. É a minha saúde o meu trabalho, é onde eu sou quem eu sou mais potente também, sabe? É onde eu consigo ser uma pessoa que brilha com alegria e encanta, troca, e é o que eu gosto de ser. E aí, se volta para a minha família, tá lá o meu pai feliz e emocionado, minha mãe: “Nossa! Eu nunca imaginei” e o meu irmão compondo canções comigo, a minha namorada fazendo os vídeos de show. Então, o meu trabalho, o Nordeste Ficção, me deu uma sobrevivência além dessa sobrevivência física e terrestre. Uma sobrevivência espiritual, mesmo nesse mundo de maluquice, uma sobrevivência de quem consegue, em alguns momentos, atingir uma outra energia mesmo de vida, sabe? Que às vezes, você faz: “Nossa! Quem é que tava cantando aqui?” e é muito bom abrir esses espaços de canal para trocar mesmo com as pessoas, receber. É muito legal mesmo, também é muito corrido, por vezes, eu fico assim: “Meu Deus! Cadê eu? Não consigo nem dormir, comer e nem tomar banho, nem nada.” Às vezes é meio doido. Tem que aprender também a ter equilíbrio e saúde, mas é massa.

CONTINENTE E pra finalizar: o que a arte representa pra você? Esse lugar de artista, que possibilidades te permite?
JULIANA LINHARES A vida é muito doida, né? E quando você é canal para esse tipo de coisa, quando você consegue estar presente e aberto é foda. Porque é isso: você sobrevive a uma guerra, a coisas horríveis, porque alguma coisa te dá estrutura e amparo para que você consiga seguir, porque não é brincadeira. Nós vivemos em um mundo hoje que não tá fácil, o povo fica postando coisas de apocalipse e a gente olhando isso nas redes. Enfim, estamos todos um pouco lascados, então são estratégias de sobrevivência esses caminhos da arte, da música, da liberdade, desse lugar da emoção. São caminhos que alentam e dão suspiro e sustento mesmo para as pessoas. Então, é bom fazer isso um pouquinho. Levar isso para as pessoas. É cura.


YURI EUZÉBIO
, jornalista.
GABRIELA PASSOS, jornalista.

 

 

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