CONTINENTE Você acha que é o mesmo fenômeno que aconteceu com o Carnaval? A gente pode fazer uma comparação entre essas duas festas, nesse sentido?
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA Pode sim, pode-se fazer um paralelo. Porém, me parece que, no carnaval, em algumas localidades, ainda se mantém muito o sentido. Por exemplo, o carnaval de Pernambuco mantém muito mais o sentido do Carnaval originário, vamos dizer assim, do que o carnaval da Bahia. O carnaval da Bahia é muito mais industrializado, muito mais comercializado, privado, hierarquizado. Você tem a pipoca, que é pra população desassistida, e, claro, as pessoas que, mesmo sendo assistidas e sendo intelectualizadas, curtem isso, Porque esses lugares da chamada Pipoca, eles têm mais relação com o Carnaval livre de rua, onde não se paga e onde a hierarquia é minimizada. E tem a parte dos chamados camarotes, aquela área VIP, que é toda loteada, no caso da Bahia, e cara. E ainda os blocos, os cordões dos blocos de rua, que também é uma privatização do espaço público, na rua. E quando a gente fala de privatização, o problema não é só a privatização, é a hierarquização, é a exclusão que isso provoca. Então, se estabelece um status ficar dentro do cordão protegido. São os chiques, são as pessoas que são eleitas da nossa sociedade, e na pipoca fica o resto. Então, claro que esse carnaval no Recife tem uma faceta privada bem menor, porque a maior parte das festas no carnaval do Recife é na rua e gratuita. Quando eu quero dizer gratuita, é claro, patrocinada com o dinheiro da produção social, com o dinheiro dos impostos, principalmente. Então, claro, tem a empresa, também, que participa e tudo. Mas você não paga pra ver um bloco, você não paga pra sair numa orquestra de frevo. Você não paga, ou, pelo menos, não paga muito. Porque você paga um transporte, talvez, pra ir pra lá, mas tirando isso... Muita gente pode ir pro Galo da Madrugada, muita gente pode ir para os outros blocos. Então o Carnaval do Recife mantém um sentido da festa, não é que mantém igual, que a tradição muda sempre, ela é sempre mutante, ela vai se alimentando, ela vai se ressignificando. Mas não vai se comparar com o Carnaval de Salvador, em que você tem uma área imensa de camarotes e que agrega uma quantidade imensa de turistas em um local privado. No Recife, você não vê bloco, praticamente, com cordão que privatiza o espaço da rua. Isso acontece em um ou outro camarote, mas não é a tônica da festa. Então, há diferenças entre a espetacularização do Carnaval do Recife e a espetacularização do Carnaval de Salvador. Assim como também há diferenças na espetacularização do São João do Nordeste inteiro e do Carnaval no Nordeste. Então, há muitas diferenças e há também similaridades. Similaridades no sentido de, por exemplo, a produção de palco, você coloca grupos de chão, de cortejo, em palcos é uma forma de espetacularização também. É um dos elementos dessa espetacularização moderna. A eletrificação dos instrumentos, a amplificação elétrica e eletrônica dos instrumentos, isso é outro aspecto da espetacularização, tanto do Carnaval quanto do São João. Mas, voltando para o São João… O que acontece no São João é que, apesar dos grupos tradicionais tocarem, há uma hierarquização muito grande do tratamento dispensado aos grupos, da renda dispensada aos artistas, também, e também do próprio sentido da festa, que o lado comunitário da festa, em muitas cidades, cedeu espaço a um cultivo pecuniário, do dinheiro, mercantilista e político. Mas o político, também, é traduzido, no final das contas, ele resulta na disputa por poder que, em última instância, é o poder econômico. Então, a festa ganhou esse sentido majoritário em muitos casos, como é o caso de Caruaru e Campina Grande, e obviamente há uma preocupação, também, dos gestores, com relação a isso, porque eles recebem pressão de, por exemplo, de grupos de comerciantes de suas praças e do público também, do público de música. Isso foi uma transformação que não é só de quem gere a festa, mas é uma transformação social mais larga.
CONTINENTE Com a espetacularização da festa popular, parece que o sertanejo está ganhando mais destaque nas festas juninas que o forró. Queria uma análise sua sobre o impacto que isso provoca na música e na cadeia produtiva da música tradicional de Pernambuco.
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA Sim, o forró se tornou uma música mais recorrente nas festas, mais frequente nas festas juninas, é bem verdade. Mas não é só o forró. O coco é muito forte nas festas juninas, é muito característico de várias regiões do Nordeste, de vários estados do Nordeste. O coco é muito frequente na Paraíba, em Pernambuco, em Alagoas, no Rio Grande do Norte, e uma partezinha do Ceará também. Nessas localidades, por exemplo, o coco é muito forte durante o São João. E é ligado, inclusive, aos ritos de São João em determinadas localidades. Lembrando também que o coco é muito presente nos terreiros afro-brasileiros e que o coco é uma música de origem afro-brasileira, e é uma música praticada, até hoje, principalmente por pessoas negras e pardas. Então, o coco tem uma característica muito forte de ser ligado ao São João. Essa celebração junina tem muito a ver com o coco, que muitas vezes não é falado. Fala-se muito no forró. Mas, além do coco, inclusive, tem outras tradições, como, por exemplo, as bandas de pife, que são muito ligadas também ao São João, as bandas de cabaçal. E isso varia de estado para estado. Certas tradições em João Pessoa, na Paraíba, são ligadas ao São João. No Maranhão, já tem vinculação de várias tradições com São João e também com o reggae maranhense. Então você observa que não é só o forró que entrou nessa coisa da tradição. Agora, o forró ficou sendo a música mais recorrente. E sobre isso as outras tradições reclamam de uma suposta hegemonia do forró, antes que houvesse essa hegemonia da música sertaneja e de outras vertentes pop, como o que hoje se chama de piseiro. Era pisadinha até bem pouco tempo, agora é piseiro. E ainda tem outra, cujo nome esqueci agora, que é essa vertente aí do João Gomes, que também vem do piseiro. Mas tem outros nomes que já se utilizam. Essas vertentes mais ligadas aos grandes espetáculos da música pop, elas realmente vêm ocupando os principais espaços. São uma espécie de mainstream. E, no caso do João Gomes, ele está muito mais ligado ao forró, à tradição do Nordeste, por conta do aboio, que ele funde com outros ritmos. Ele funde aboio com esses ritmos, aí, do piseiro, que, na realidade, são ritmos muito parecidos com o ritmo do baião, só que tocados por uma batida eletrônica. Mas o João Gomes, por exemplo, e outros parecidos com ele, têm uma ligação, sim, com o forró. No entanto, ele, do ponto de vista da festa, se os signos sonoros têm a ver com o forró, o sentido está muito mais ligado aos grupos de sertanejo.
CONTINENTE Por quê?
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA Por causa do investimento e do posicionamento que é dado a esse sertanejo pop, e que ocupa a maior parte dos principais espaços da festa. Essa hierarquização obviamente incomoda as pessoas que primam pela tradição, tanto do ponto de vista sonoro quanto do ponto de vista desse sentido da festa, que, muitas vezes, a pessoa não fala com essa narrativa, com essa linguagem que eu estou falando, mas, em uma conversa demorada com essas pessoas, a gente observa que é mais ou menos por aí. O incômodo se dá justamente por uma priorização de determinadas práticas e determinados signos que fogem dos preceitos, que fogem dos sentidos da festa. Imagine que hoje você vai comer milho e esse milho é transgênico. Então, as pessoas que tomam conhecimento disso, elas podem tomar, primeiro, o gosto do milho. Outras não, já conheceram o milho transgênico. Então, elas não vão reclamar. Pode até ser que ela ache muito tradicional. Eu não estou querendo dizer aqui que os grupos sertanejos são transgênicos, não é isso. Mas a música, pra quem já cresceu, na juventude, que costuma ser o foco da mídia pop, quem já cresceu ouvindo sertanejo pop e cultivando essa música, não vai se incomodar com isso. Pelo contrário, vai querer isso. Então, é um assunto complexo. Não é uma questão de ressentimento apenas com a música sertaneja. Claro que a gente se ressente. A gente se ressente, sim. Mas não só por esse elemento do São João. Tem uma série de coisas na música sertaneja, como, por exemplo, a associação dela com os agroboys, com toda essa coisa que está acontecendo na política brasileira, e isso também ressente. E vai aumentando esse choque de sentidos entre o que a festa se tornou e o sentido que a gente gosta, o sentido que a gente quer, o São João que a gente quer. Por exemplo, você quer sentar à beira de uma fogueira num bairro e comer um milho, uma batata assada, e tomar um quentão, isso no São João não é muito fácil de encontrar. Por outro lado, se você for a muitas cidades do interior, você encontra, sim, um grupo de música sertaneja. A outra coisa é que a música sertaneja, aí a gente pode dizer, numa atitude xenofóbica, que a música sertaneja não é nossa. Não, ela é nossa também. Porque os nordestinos não querem fazer, ainda que tenha sido por causa da audição compulsória. Mas aprendeu-se a cultivar e a gostar dessa música. Então, não é uma coisa fácil de você simplesmente rechaçar, combater. Mas discutir a festa eu acho que é muito importante. Porque o sentido que a gente quer pra uma determinada festa não é só o do entretenimento, tem muita coisa em jogo. Tem identificações em jogo, tem signos em jogo e esses signos nos identificam, eles nos unem de uma determinada maneira ou de determinadas maneiras. E que a mudança do sentido modifica esses laços, modifica a maneira como a gente se junta num determinado lugar pra ter uma determinada celebração, que é a das festas juninas. Então, acho que devemos cultivar a tradição que a gente quer, que é essa tradição, esse sentido da festa comunitária. Acho ele mais importante do que o sentido ultra comercial da festa.
CONTINENTE Na espetacularização, o público fica apenas ali, como uma plateia que não tem uma participação ativa na festa, ao contrário da festa comunitária, em que todos participam e têm um espaço para, exatamente, a transformação daquela criatividade que é cultivada dentro do coletivo da comunidade. O público não é mais um protagonista, ele fica ali apenas como espectador. Ao contrário da festa comunitária, em que todos desenvolvem um papel. Você acha que essa espetacularização afeta mesmo a criatividade do público? O que você acha disso?
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA Sim, veja. A cultura participativa, a música participativa, comunitária, tem outro papel. Os músicos são muito mais próximos. As pessoas definem culturalmente, baseadas na tradição, o repertório. Então, se você chega numa festa comunitária, as pessoas que estão ali estão decidindo mais sobre que repertório será tocado e essa decisão tem mais participação, tanto a participação momentânea naquele momento da festa, como uma participação que vem de outros momentos da tradição. Essa participação popular na festa tradicional do São João, que é comunitária e participativa, essa interação é maior entre músicos e público. Você pode ver até no tamanho do palco, na altura do palco, no aconchego do local. Então, você tem uma hierarquização menor na divisão entre público e artistas. Então a dança, a dança de casal, na tradição junina, ou então a dança solta, no caso do coco, é uma dança, como você falou, em que há uma grande participação do público. Portanto, o público também é artista. No palco dos grandes espetáculos, tem uma imponência de luzes, de cenário gigantesco, uma iluminação bem complexa e bem espetacularizante, e uma distância muito grande que se revela, desde a altura e a distância entre público e palco. Até, inclusive, uma distância, por exemplo, também nessa participação em relação ao repertório. Então, se uma banda, se o Wesley Safadão, se João Gomes e outros vão tocar, eles não vão observar no público se eles tão gostando mais de uma música ou de outra. Não, o espetáculo está pronto, o público está mais ou menos sabendo o que vai ser apresentado. Uma parte dele. Claro, que esse público também é heterogêneo. Mas há uma grande homogeneização. E não há muita interferência do público, porque essa interferência do público, essa participação existe, mas ela é mediada pelos empreendedores da mídia. Os empreendedores que compram espaço da mídia ou que difundem na internet, os empreendedores que produzem o espetáculo, eles são mediadores entre o público e esses artistas. Então, muitas vezes, esses artistas, até a marca do artista, o nome da dupla sertaneja, por exemplo, às vezes é propriedade do empresário e ninguém está sabendo disso. Acontece bastante. Algo que não acontece quando você está dançando ao som de, por exemplo, uma banda de pife, um grupo de coco ou um trio de forró. Então essa espetacularização da música pop massiva é bem diferente do espetáculo da música comunitária. O espetáculo comunitário tem menos hierarquia, tem mais participação e qualquer músico de coco, de forró, quando ele está cantando, às vezes, até o público pede uma música. E daqui a pouco ele tá tocando, ele muda de xote pra baião e de baião pra xote, de acordo com o contexto que ele tá vendo. Então você vê que tem uma participação. Estou falando de aspectos mais visíveis, mais simples de se detectar, mas é uma gama muito grande de aspectos. Você vê que o sentido da festa é outro, a participação é outra, é bem diferente o aspecto participativo da festa. Então, aquela participação no mega espetáculo é uma participação muito menos decidida pelo público. O público participa? Participa, mas muito mais passivamente, do ponto de vista da criatividade e das práticas do espetáculo, das práticas da cultura musical. Então, obviamente que, se isso acontece, e se essa outra cultura musical, essas outras culturas musicais precedem a cultura pop, não é nenhuma xenofobia afirmarmos que houve, sim, uma descaracterização, que está em curso e que é ostensiva. E que não é uma coisa fácil de resolver. Eu sei que não é, porque envolve muito trabalho de muita gente. Agora, acho que os amantes das culturas musicais tradicionais precisam se posicionar. Se eles são realmente amantes, se eles sabem realmente a importância dessas tradições musicais, sabem que realmente isso é uma maneira de contar, também, a história da nossa sociedade, a história das nossas vidas, dos nossos antepassados e do nosso presente. É uma maneira de reafirmar traços dessa história e de se identificar diante do mundo que teima em nos tornar um número e uma mercadoria, ou uma pessoa anônima, sem identidade. Nós, que teimamos contra isso, temos que nos posicionar. E não tenham receio de dizer que há uma geopolítica, sim, no contexto da música. Há uma geopolítica sonora, uma geopolítica de espaço da música, e nas festas juninas isso é muito patente. Então a gente precisa ter coragem de discutir isso, sim. Coragem de ser, de arriscar, inclusive, ser retaliado por determinados grupos políticos que utilizam discurso de multiculturalismo pra poder dizer que o São João é multicultural e que precisa incluir todos, quando, na verdade, pega 90% do orçamento para alguns e uma parte do orçamento para outros, e aqueles alguns são contemplados, desde o tratamento até a mídia que é colocada. Você escuta uma mídia de São João, você escuta numa festa como Caruaru, dez nomes na mídia, três, quatro nomes. 'Ah, vai ter fulano, cicrano, cicrano e cicrano', quando você tem mais de duzentos artistas na festa. Só que desses duzentos artistas, 30 artistas estão nesse mainstream e 170 não são nem citados na mídia, porque não fazem parte desse jogo de interesses que tomou o empreendedorismo da festa, que se incube do empreendedorismo da festa. A gente não precisa mais ter medo disso, é preciso encarar essa discussão. O forró ganhou um reconhecimento oficial como patrimônio cultural brasileiro pra isso, pra que a gente discuta esses sentidos do forró, os sentidos daqueles mestres que contam uma história social e cultural com a sua música e que eles não têm prioridade na festa. Ora, como você é considerado um mestre de uma tradição e você é o menos beneficiado por uma festa tão grande. Então há, sim, uma inversão de valores que precisa ser revista, precisa ser discutida corajosamente.
CONTINENTE Isso acontece também no Carnaval, não é? Porque os artistas da cultura popular recebem muito pouco. Quando você compara os cachês, é realmente uma vergonha o que eles recebem.
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA E a palavra multicultural virou sucesso, virou moda, mas é um multiculturalismo que faz essa inversão, que faz essa hierarquização, essa desigualdade, produz uma imensa desigualdade, e que se difere do que se chama de interculturalismo, quer dizer, de diálogo intercultural. Isso, sim, é o que precisamos ter. Um diálogo intercultural e não um multiculturalismo baseado nas normas da mídia, nos resultados do que é massivamente midiático, do que é massivamente trabalhado para vender muito, com poucas pessoas trabalhando, e em detrimento de uma grande festa que é comunitária e ela continua, a festa comunitária continua. Porque as pessoas não estão deixando morrer, as pessoas estão teimando. Mas precisamos, sim, discutir esse multiculturalismo. Virou moda, todo secretário de cultura, todo governador, todo prefeito fica mencionando essa festa multicultural. E o problema da desigualdade, por exemplo, entre artistas e os sentidos da festa, não se discute. E isso substituiu as problemáticas. Muitas vezes, os músicos também não conseguem questionar esse discurso de multiculturalismo, mas nós precisamos questionar. Nós já temos base teórica suficiente para questionar. Porque isso se traduz, se reproduz nos resultados. Esse questionamento, a gente tem como base os resultados da festa. Está aí uma juventude, que é maravilhosa, mas que é levada a se desagregar, levada a inverter valores. E não só a juventude. Eu estou falando da juventude, mas é também um público geral, de crianças, adultos, idosos, a sociedade, em geral, que muitas vezes é desagregada, porque os laços afetivos são dissipados, em razão de um interesse em que você compre as coisas sem questionar. Então, não é nenhuma novidade pra gente haver uma pessoa que não conhece um artista da sua cidade, mas conhece os artistas que têm um empreendimento sobre esse artista na mídia, na gestão daquele trabalho. Um empreendimento mercantilista, capitalista, em cima daquele trabalho. A gestão, hoje, usa muito a ciência para multiplicar e concentrar os ganhos de artistas. Então essa população que trabalha com o sentido tradicional da festa não cultua isso. E o próprio sentido da festa, que eu mencionei, esse sentido da tradição comunitária, ele já se contrapõe a esse tipo, porque é um outro momento, não é ali o momento de você vislumbrar só o apurado em detrimento do resto. A festa comunitária já se contrapõe a isso. Então os laços comunitários também se contrapõem a isso. Não é importante para um empreendedor que vende uma determinada marca de bebida alcoólica se eu vou sair da festa bem ou mal com outra pessoa. Não é importante se eu vou junto e volto separado. Não é importante se lá a gente troca afagos ou troca tapas. O importante é quantas doses você vai beber e comprar. Ou melhor, nem beber, é comprar. Quantas doses você vai pagar. O sentido da festa tomou esse rumo, tomou outro sentido. Então a gente realmente precisa ter a coragem de questionar, de conversar sobre isso. Não é simplesmente ser xenófobo em relação ao sertanejo, a nada disso. Eu, por exemplo, gosto de música eletrônica. Eu gosto muito do trabalho do DJ Alok, que tem ido pras festas juninas. Eu gosto de rock, eu gosto de vários tipos de música, sertaneja não é o meu forte, mas eu respeito quem faz, respeito quem gosta. Agora, numa festa comunitária da qual eu participe, se ela for de São João, eu não quero colocar DJ Alok. Porque o gosto que eu quero saborear, a dança que eu quero saborear, as conversas que eu quero saborear, DJ Alok não tem pra essa festa. Agora, óbvio que isso é uma discussão mais profunda das transformações que a nossa sociedade já sofreu até agora; as transformações pelas quais nós viemos passando até agora. Então não é simplesmente fácil chegar lá e tirar. Aí eu concordo que não é simples. Mas a discussão, o diálogo sobre isso, e problematizar isso com a população e não simplesmente deixar isso no meio acadêmico, como tem acontecido, precisa ser feito. A gente precisa de organismos e de leis, de políticas públicas que olhem pra isso, porque, senão, daqui a pouco, a gente é um amontoado de prédio, apenas, sem, inclusive, os nossos casarões, sem a nossa história, os nossos monumentos históricos, sem nada disso, porque começa a perder valor. Acontece que a cultura musical, a cultura popular musical, também conta essa história que o mosteiro de São Francisco conta, só que com um outro ponto de vista, com outra narrativa. Muitas vezes a narrativa que não é a narrativa dominante, a narrativa dos livros, a narrativa de grupos que predominaram economicamente e que tiveram acesso a contar uma narrativa escrita. O coco conta a nossa história. Se você ouvir a letra, se você entender, se você procurar entender o que ele tá dizendo, ele conta muito. O jongo carioca conta muito a nossa história, as caixeiras do Maranhão, o coco da Paraíba, o coco de Pernambuco, as bandas de pife. Então, essa história é importante. E quem precisa dizer a importância é quem reconhece essa importância. Então muitas vezes o político não vai dizer, o gestor não vai dizer porque ele não vê, ele ignora essa importância. Com todo respeito ao conhecimento que um político gestor possa ter, mas ninguém é capaz de reconhecer tudo, então ele precisa se inteirar com quem tem esse reconhecimento, com quem estuda isso e com os próprios fazedores que tem esse conhecimento, que se manteve ao longo do tempo e que, de certo modo, identifica a nossa sociedade. Mas não só identifica, não é uma questão só de identidade cultural. É uma questão, também, de importância histórica, de contar a história da gente, isso conta a nossa história. E a nossa história não pode ir pro lixo, a nossa história não pode ficar esquecida porque entra uma outra música, aí que é vendida como chique. Então essa outra música tem importância. A gente reconhece. Ela é importante, sim. DJ Alok é importante, a sertaneja tem a sua importância. Mas o São João não precisa render os seus maiores espaços a essas músicas, porque elas estão num momento comercial e de moda e midiático alto porque tem empreendimentos que fazem isso. Tem prédios e prédios erguidos, rádios e rádios. Tem uma infraestrutura de investidor, um grupo de música sertaneja às vezes tem 10, 15 investidores, que botam, colocam lá o dinheiro porque tem um produtor que diz, “eu vou fazer isso vender, vai render X para cada um”. E os grupos comunitários não têm essa infraestrutura. Então, quem é que pode suprir? Quem pode suprir é a própria sociedade, que pode corrigir isso através de políticas públicas, porque é uma outra cultura musical, é uma cultura musical que não trabalha com essa vertente de ter 10, 15, 20 investidores, cada um bota um milhão, dois milhões, três milhões e quer o seu retorno o quanto antes possível. Então essas culturas elas entram em choques não é porque só sonoramente. A questão não é apenas sonora. A questão é também do sentido desde o preparativo da festa, do investimento da festa, das práticas de preparação da festa e dos significados até essa parte pecuniária, que, para o comunitário, o mais importante é que o rendimento cubra os custos da festa e pode até dar algum lucro. Para o outro não, para o outro é majorar o lucro, independente de qualquer sentido tradicional da festa. independente de que a festa conte qualquer determinada história que uma população tenha como importante. Então são questões sobre as quais precisamos conversar.
CONTINENTE A transformação urbana da cidade, com os prédios e os muros altos, também impactou essa festa junina comunitária, não é?
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA Sim, porque, por exemplo, as periferias não são mais como as periferias de 40, 50 anos atrás. Tem muito muro alto e puxadinhos. Então, as pessoas estão mais isoladas. Esse espírito comunitário da festa junina também sofre com isso. Isso é verdade, isso é verdade, isso é um resultado da chamada “modernidade”, eu coloco aqui bem entre aspas, a modernidade e a pós-modernidade, tem gente que já chama de hipermodernidade. Tudo isso, o crescimento da violência, o empreendimento sobre o uso de substância ilícita, que se chama unicamente de tráfico, mas é algo até maior. Tudo isso, a proliferação de armas e da própria violência, tudo isso vem afetando, o medo de ter uma festa aberta, que requer segurança pública, um investimento na segurança pública, tudo isso realmente dificulta a festa comunitária sim. Mas ela existe, ela existe nas periferias do Recife sim, existe nas pequenas cidades, praieiras e nas pequenas cidades do Agreste e do Sertão. Eu falo as cidades pequenas mesmo, aquelas que muitas vezes não chegam a 20 mil habitantes e lá, também, as outras culturas musicais que tem o tratamento comercial ostensivo, elas também, muitas vezes, são bastante presentes e hegemônicas também. Mas existe, existe porque tem gente na sociedade que aprendeu, sacou que é preciso curtir, que é preciso fruir essas festas, que é outro tipo de fruição. Essas poucas pessoas, tanto da periferia quanto do centro, essas pessoas vêm se unindo e reconhecendo o valor de dançar um coco, de uma festa comunitária. Isso ainda se mantém, e isso também vem se ressignificando. Não se mantém estático. Que a tradição não é estática, muito embora às vezes se pense, mas essa ressignificação vem acontecendo com o sentido mais ligado ao comunitário. Isso também existe. Você tem em Gurugi, na Paraíba, no Conde, em vários pontos de Olinda acontece o São João e que às vezes as prefeituras dessas cidades nem investem, não apoiam ou apoiam um pouco, dão um “cala a boca”. No próprio Recife, tem bairros que fazem suas festas comunitárias. Mas realmente vem cada vez mais tendo dificuldade por conta desses outros elementos aí que você tá falando. Tem essas questões ligadas a violência, ligada aos muros altos, aos prédios, à verticalização da cidade e, sobretudo, aos valores. Nós temos cedido, muitas vezes, à comodidade dos valores pregados pela sociedade industrial e pós-industrial. Então a gente, muitas vezes, cede a isso, mas a gente também vai tentando, a gente vai tentando, vai curtindo as festas, vai curtindo os cantadores, vai se juntando com eles, vai aprendendo e tentando fazer, inclusive, uma troca de informação, troca de conhecimento. Só que a gente precisa se organizar muito mais. Os grupos individualistas contam com uma infraestrutura que vai desde os cursos de administração até os investimentos dos bancos. Enquanto que os grupos comunitários contam basicamente com o soldo. Ou seja, com aquilo que ganham pra sobreviver e também fazer essa festa. Mas a gente vai continuar essa luta. Faz parte da vida da gente essa luta. Existem as associações como Associação Respeita Januário de Pesquisa e Valorização e das Músicas e Cantos Tradicionais do Nordeste. É uma associação da qual eu faço parte com o professor Carlos Sandroni e com o professor Amílcar Bezerra. Ambos são da Universidade Federal de Pernambuco. E outras pessoas que fazem parte. Existem várias outras associações aí culturais, que estão em interação com os grupos comunitários. Hoje existem produtores culturais também que se dedicam, ao invés de vender um grupo de música sertaneja ou de uma música eletrônica, por outro lado, de promover o trabalho de cantadores, de grupos de cavalo marinho, de grupos de coco, de cantadores de viola. Então existe já uma formação de sentido em Pernambuco e em vários outros estados brasileiros que já se atentou. Essa formação de sentido cresceu e está atenta a essa necessidade. Então é difícil, mas está acontecendo também. As discussões estão acontecendo, as políticas de salvaguarda e de promoção estão acontecendo, ainda são muito incipientes e muitas vezes precisam de atualização. Às vezes até há equívocos de querer uma tradição estática, mas elas existem e estão em movimento. Essas discussões estão acontecendo. Pernambuco felizmente é um estado em que a gente tem autoridades que são comprometidas, têm um certo comprometimento com as tradições. Às vezes, a gente tem tido gestores que entraram sem nenhum conhecimento e comprometimento com as tradições e, chegando lá, eles se deparam com outra situação que demanda deles, assessores, técnicos, artistas e intelectuais que tenham esse conhecimento para lidar com essas políticas públicas. A gente já teve casos assim. E, às vezes, o gestor já entra com esse conhecimento, com essa sensibilização. Quando acontece isso, é melhor. Eu vejo que há gestores que já entram com essa sensibilização e isso ajuda muito a uma aprovação de uma política pública e de uma discussão em torno de uma redução da desigualdade, de pensar no problema. Eu vejo isso em Pernambuco. Não sei se eu estou sendo muito otimista, mas eu vejo isso em Pernambuco e vejo isso no Recife. Eu vejo isso em outras cidades de Pernambuco e vejo isso na intelectualidade de Pernambuco, nos jornalistas de Pernambuco, no público também. Não sei se eu estou sendo otimista, mas tenho enxergado isso assim. Em outros estados tem acontecido. Agora precisa avançar, precisa aprofundar, porque no nível que está não é possível permanecer. A gente precisa aprofundar bastante a luta para cultivarmos os sentidos identitários e culturais das festas comunitárias, das festas tradicionais e também para aprofundarmos as políticas de redução das desigualdades e das exclusões. Então Pernambuco tem, sim, uma atitude inclusiva. Isso não é homogêneo, isso não é todo mundo. A gente sabe que há gestores que acham que isso é uma bobagem, mas a gente sabe também que há gestores comprometidos e é com os comprometidos que nós temos que dialogar. Os outros a gente também dialoga, mas vamos atrás daqueles que se comprometem a ouvir, a dialogar e a se sensibilizar em relação a esse aspecto tão importante que são as nossas festas comunitárias.
CONTINENTE Para fechar nossa conversa, queria perguntar sobre aquele período mais tenebroso da pandemia em que realmente não dava pra pisar na rua e muitos shows e eventos aconteceram de forma online. Eu gostaria de uma avaliação sua sobre essa atividade artística remota, já que você realizou um festival de São João online.
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA A pandemia trouxe uma série de dificuldades. Nossa, como impactou! Porque as nossas tradições trabalham de forma comunitária e participativa. Então, aglomeram pessoas nas festas e até na preparação. E isso foi impactado assim de frente profundamente. Então não apenas aquele São João na rede que nós fizemos em vários estados brasileiros. Por sinal, tive a oportunidade de coordenar conjuntamente com Tereza Accioly, da Associação dos Forrozeiros Pé de Serra e Ai, e com a Joana Alves que, da Associação Balaio Nordeste, da Paraíba. O professor Carlos Sandroni também participou dessa coordenação e Guilherme Veras, de Minas Gerais, e ainda tivemos outras pessoas ajudando a coordenar. Tivemos também a parceria do Fórum Nacional do Forró e das suas filiais estaduais e das suas representações estaduais da Associação Respeita Januário também. Então foi um número de entidades e de pessoas interessadas que resolveram a partir de uma conversa online, arregimentada pelo professor Carlos Sandroni. Durante essa conversa justamente pra discutir logo ali no mês de abril o impacto da pandemia, em abril de 2020. O impacto da pandemia no forró e nas festas juninas, porque nós, da Respeita Januário, estávamos fazendo a pesquisa e a instrução técnica para a obtenção do reconhecimento oficial do forró como patrimônio cultural e material do Brasil junto ao IPHAN. Essa pesquisa foi supervisionada pelo IPHAN e foi realizada por nós, da Associação Respeita Januário, envolvendo os nove estados do Nordeste e mais os estados de Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo e Rio de Janeiro. Então, enfatizou o Nordeste, mas também pegou esses outros estados e ainda o Distrito Federal. Então, essa pesquisa nos deu, naquele momento, a oportunidade de junto com o Fórum Nacional do Forró, do qual eu também faço parte, de nos juntarmos ali online e fazermos uma conversa sobre esse impacto que estava acontecendo, que fechou tudo, acabou tudo. E, naquele momento ali, eu tive um insight, “gente, por que a gente não faz um São João online?” E aí rapidamente o grupo se dividiu, alguns concordaram, outros não, mas a maioria concordou que nós poderíamos fazer um São João online. Isso foi uma coisa assim da hora que soou meio louca, meio disparatada, mas a gente foi encontrando os caminhos através dessas pessoas aí que participaram e de alguns apoios, em alguns estados para fazer o São João online. Inclusive isso influenciou a Prefeitura do Recife, quando nós comunicamos que íamos fazer um São João online, a Prefeitura do Recife se sentiu instigada e através da própria Leda Alves, da Secretária de Cultura de então, se sentiu instigada a também fazer. Foi daí que a coisa foi surgindo, foi tomando o corpo e aí é isso se alastrou e outras prefeituras do Nordeste foram fazendo São João online. Foram tomando conhecimento e anunciando que iam fazer, mas eu creio que tenha surgido conosco porque foi no início de abril, a gente realizou essa primeira reunião e daí a gente desencadeou esse processo e fez com muita dificuldade, claro. Mas foi parte da nossa cultura digital. A pandemia forçou e, ao mesmo tempo, ajudou a gente a aprofundar essa cultura digital, que também é importante. Ela tem seus benefícios. Agora, obviamente que isso foi um paliativo, em princípio, para o São João que não ia acontecer, porque todo mundo cancelou as festas juninas e aí, por conta disso, a gente achou essa saída, porque afetivamente pra gente era muito drástico não ter um São João. Eu nunca vivi em toda a minha vida um momento sem São João, porque eu nunca passei um São João fora do país. No São João sempre foi no Brasil e sempre eu me juntei com familiares, com amigos pra gente curtir a festa e para tocar também, que eu trabalho no São João. Naquele momento, eu me vi sem o trabalho do forró, que eu toco forró. Sem o trabalho de pesquisa do forró, uma pesquisa que estava em andamento e que envolve muita gente, inclusive com financiamento por parte do Iphan e de emendas parlamentares que foram direcionadas para aquela pesquisa, uma pesquisa grande porque era em nível nacional, com pesquisadores desses estados, e a gente se viu de mãos atadas. Então a gente se viu instigado demais a resolver fazer isso. Mas não deixou de ser doloroso, porque nós talvez tenhamos mitigado um pouco a dor daquele momento. Mesmo fazendo a festa, foi bastante melancólico. Nós tivemos, assim, uma alternância de momentos muito melancólicos, com momentos muito alegres. E que cada um festejava em casa com a sua família diante do que nós estávamos fazendo ali em rede. Envolveu 14 estados brasileiros essa festa, envolvendo culinária, rádio, DJs, shows musicais, tudo isso gravado ou apenas a veiculação de shows que já tinham sido gravados e tudo às vezes ao vivo e às vezes só uma coisa gravada. Aliás, todo material foi gravado, mas às vezes alguma parte foi gravada exclusivamente para o São João na Rede. A outra foi o aproveitamento de material que se tinha gravado e que não se tinha veiculado ainda. Então foi uma coisa incrível que realmente a gente fez, apesar das dificuldades e da desorganização. Mas a gente se viu ali depois disso com capacidade para valorizar mais, sensibilização para valorizar ainda mais e reconhecer ainda mais a festa presencial e também para continuar a atitude, a prática digital mesmo tendo o presencial. Então foi muito importante, Débora, foi muito importante mesmo.
CONTINENTE Queria agradecer a você por essa entrevista muito boa e as suas análises, que eu sempre gosto muito.
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA Eu te agradeço pelo teu empenho em fazer matérias como essa. Acho importantíssimo levar essa discussão para os leitores da Continente e para o público pernambucano. A Continente também faz parte da memória de Pernambuco, a memória do Brasil. Então, acho bacaníssima. Obrigado muito por você continuar envolvida com a cultura, com a pesquisa e com essa vertente de pessoas que querem uma vida melhor para nossa sociedade.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente, colunista da Continente Online.