Entrevista

“O Museu é, desde o início, um roubo”

Referência mundial em estudos decoloniais, a francesa Françoise Verger esteve no Recife e falou sobre as ideias que defende no seu livro 'Decolonizar o Museu – programa de desordem absoluta'

TEXTO Bruno Albertim

20 de Outubro de 2023

Françoise Verger esteve na 'Bienal Internacional do Livro de Pernambuco' deste ano

Françoise Verger esteve na 'Bienal Internacional do Livro de Pernambuco' deste ano

Foto Divulgação

Numa agenda intensa pelo Brasil em que tem trocado mais de cidade do que dos lenços que gosta de usar sobre a cabeça, a parisiense Fraçoise Verger não deixava o calor concentrado no ruidoso Centro de Convenções de Pernambuco diminuir um certo sorriso perceptível no seu olhar sempre firme. “Esta é minha primeira vez no Brasil”, comentava. “Estou muito impressionada com as desigualdades sociais, mas também com a vitalidade e com novos movimentos sociais muito fortes. O calor não me assusta, tenho vivido sempre nos trópicos.”

Era o primeiro sábado de outubro, e Françoise vinha de uma roda de diálogos com mulheres do Recife pela manhã depois de desembarcar de Salvador. Naquela tarde, para uma plateia ansiosa por ideias, selfies e dedicatórias, a autora teria uma conversa com a jornalista e também escritora pernambucana Fabiana Moraes para apresentar seu mais novo livro: Decolonizar o Museu – programa de desordem absoluta, no auditório da Bienal do Livro de Pernambuco.

Lançado em português pela editora Ubu, a obra nasce com a ideia barulhenta da defesa de um museu pós-colonial e de como essa instituição de aparência inocente, normalmente um prédio assentado sobre a ideia de cubo branco em que objetos devem ser exibidos e venerados, nada tem de neutro.  “A começar pela própria ideia de um país contra o outro, o museu é como um botim de guerra, é a própria guerra”, diz a cientista social, nesta conversa, antes de sua apresentação para o público pernambucano, com o jornalista e antropólogo Bruno Albertim.

Referência mundial em estudos decoloniais, Françoise lembra que o museu surge, como instituição ocidental a partir do século XVIII, intimamente ligado à acumulação de riquezas, financiado pela indústria da nova escravidão global. E que ajuda a estabelecer, portanto, uma ideologia ocidental da superioridade de culturas, povos e raças. “Não esqueçamos de que 61% dos museus estão no norte global. O museu participou da construção da imagem do Ocidente, das ideias de beleza, da estética, na história da arte, todas essas ideologias contribuem para a ideia de prestigio e superioridade das nações.”

Nesta entrevista, Françoise destila parte de uma visão capaz de pôr em dúvida  a própria ideia essencial de museu. "É preciso agora decidir se queremos recuperar o que nos foi roubado", ela diz, defensora de uma onda de destruição de monumentos a dominadores e devolução de obras de arte e artefatos saqueados pelas grandes nações a seus países de origem. “Não tem problema se o Louvre não sobreviver”, diz a francesa Françoise.
 
CONTINENTE Seu livro traz uma questão central sobre o museu enquanto instituição da vida ocidental. De que maneira a dialética colonialismo e museologia se retroalimentam na História?
FRANÇOISE VERGER O museu é uma invenção europeia, uma das mais importantes daquele grande momento de acumulação de riquezas, da acumulação de capital que marca o início da modernidade.  A ideia de uma civilização superior, baseada nas questões de raça e superioridade, na ideia de que a Europa deveria juntar todos os tesouros da humanidade, como se a Europa tivesse o papel ou o dever, como uma civilização que sabe o que é a arte e a própria civilização, e que afirmasse: “Os outros povos fizeram coisas magníficas, mas não sabem o que é arte, eles não sabem conservá-la”. Então, nesse momento, vem à ideia de conservação e de acumulação. Os museus são uma, afinal, uma acumulação. A gente não vai ver uma estátua de uma deusa, mas milhares de estátuas reunidas. Então, trata-se, pois, da acumulação de objetos ligada, por sua vez, à acumulação do capital. Então, a questão da exploração e da desposessão e também da colonização, de extrair do Sul e enviar para o Norte, não envolve apenas o açúcar e o café, mas também as artes. Num processo de transformar objetos vivos em objetos mortos. Objetos que estavam no mundo social e cultural e que, tomados, colocados ali em estruturas de museus, transformados em “objetos de arte”, são distanciados de todos os laços afetivos. Uma ideologia realmente muito forte. O museu é uma instituição da vida ocidental e não esqueçamos de que 61% dos museus estão no norte global. O museu participou da construção da imagem do ocidente, das ideias de beleza, da estética, na história da arte, todas essas ideologias que contribuem para a ideia de prestígio e superioridade das nações. Na França, é o Louvre; na Inglaterra, o British Museum; na Espanha, o Prado etc., etc., etc. Depois, também, há uma ideia da nação, da Europa, que é profundamente colonial em relação às apresentações das pessoas, dos negros, dos asiáticos que correspondiam às ideologias dessas elites racistas.

CONTINENTE Então, a museologia, de maneira mais inicial, e posteriormente, a antropologia, sobretudo a partir do final do século XIX, que embora estabeleça o exercício do entendimento da alteridade, estabelece também a hierarquia da diferença, se articulam? Pergunto: ambas se articulam para esta ideia de culturas e raças superiores?
FRANÇOISE VERGER Sim, sim. A cultura começa a construir uma mensagem de repartição do mundo... da Ásia Antiga, da África e sua arte, da arte ameríndia, da arte islâmica. Então, é toda uma ideia europeia dos séculos XV e XVI, reforçadas pela prática da pintura que ajuda a naturalizar a exploração. Portanto, as plantações de cana-de-açúcar do nordeste do Brasil e suas paisagens não são apresentadas como são, mas numa distorção de como se queria que o mundo fosse visto. Posteriormente, a antropologia se constrói em cima disso. Então, a gente precisa saber

CONTINENTE O museu se estabelece, então, a partir de um crime essencial...
FRANÇOISE VERGER A começar pela própria ideia de um país contra o outro, o museu é como um botim de guerra. É a própria guerra.

CONTINENTE Internamente, os próprios países do sul global, como o Brasil, também reproduzem, portanto, a lógica colonial em seus museus...
FRANÇOISE VERGER Totalmente. O museu ocidental se baseia nesse modelo hegemônico de um museu na capital e sobre essa ideia de nação que se quer mostrar. Como se uma cidadezinha não pudesse guardar seus tesouros, que devem ser guardados e exibidos pelas grandes capitais de prestígio. Isso está ligado ao poder e à branquitude e também à burguesia histórica. Todos os museus imitam a lógica: o grande museu fica na capital, é caro para quem entra, exige um olhar previamente treinado. E mesmo no Brasil, um museu afro, um museu indígena, um museu de arte contemporânea partilham desse princípio.

CONTINENTE Um dos sonhos da modernidade, ainda sem prazo para consumação, era o de borrar fronteiras entre o erudito e o popular. Essa segmentação fará ainda sentido no mundo contemporâneo?
FRANÇOISE VERGER A arte faz parte do jogo do capital, do mercado, e até mesmo o objeto mais simples e artesanal entra num museu e é integrado a este mercado, adquirindo um valor mercantil que não havia em sua origem. Uma economia, que não fazia parte dos valores da comunidade que criou o objeto, surge. Ele passa a servir à logica da propriedade privada e a propriedade privada está no amago do escravagismo no ocidente.


Foto: Divulgação

CONTINENTE A partir de seus comentários, gostaria de trazer duas questões: no nordeste do Brasil, onde agora conversamos, o país principia a partir da consolidação da cana-de-açúcar como viabilizadora do grande projeto colonial português nesta margem do Atlântico. Então, aqui, começamos a ter uma “suracocracia”, uma sociedade de valores e poder intimamente ligados ao controle do açúcar. Um dos hábitos dessa sociedade patriarcal muito forte era cultivar os álbuns de família, não apenas como forma de produzir memória familiar através da fotografia, mas também de impor símbolos de poder social por meio da imagem classicamente performada de todos os personagens secundários ao redor da figura central do patriarca. Assim, apenas o homem branco ligado ao açúcar teve autonomia para imprimir seu rosto e o de seus semelhantes e diferentes nas representações simbólicas. Contudo, no Brasil inteiro assistimos à emergência muito forte de uma pintura figurativista negra. Como a senhora vê a relação entre os dois momentos? Por que negros e negras hoje pintam tanto seus rostos e os de seus semelhantes?
FRANÇOISE VERGER O trabalho da representação de si e da representação do outro para as futuras ideologias coloniais racistas é muito importante. Até aqui, fixou-se na pintura ocidental a figura do patriarca burguês branco. É preciso também trabalhar a representação dos outros, pois o Ocidente também pôs no âmbito as representações e a descoberta das diferenças. A representação ocidental pode ser uma armadilha. Deve-se perguntar constantemente: o que nós estamos representando? Que isso possa ser contestado, que as questões se coloquem, que possam ser repensadas.

CONTINENTE A presença de Debret e da missão artística no Brasil ajudou, portanto, a naturalizar o entendimento do ser humano negro como inferior e passível de escravização?
FRANÇOISE VERGER Sim, não apenas, mas a inventar a figura do escravo poderoso, que representa o poder e a potência do negrinho, e ele vai fazer destacar a branquitude e força dos poderosos.

CONTINENTE Em eventos recentes como a Art Rio, que é um momento importante, de glamorização e rentabilização para o mercado de arte no Brasil, nos chamou a atenção a quantidade de obras e de artistas pretos e pretas periféricos, ocupando espaços em galerias de prestígio. Num momento, pude conversar um pouco com uma grande nova artista, também preta, que me dizia ter ouvido de um colecionador que, se ela ainda morasse no subúrbio como antes, a obra dela venderia muito mais. Como se a pobreza estetizada do povo negro fosse uma commodity mais interessante para o mercado, confirmando que o “existir” negro decolonial está na moda para o mercado de arte no Brasil. A pergunta é: como garantir representação para essas poéticas antes camufladas sem, contudo, reduzi-la a estratégias para o enriquecimento dos mesmos atores tradicionalmente brancos do mercado e do sistema de arte?
FRANÇOISE VERGER O capitalismo e o patriarcado são muito versáteis. Neles, repousam o extrativismo, não apenas do solo, mas também das ideias, da criatividade, o capitalismo sempre precisa transformar tudo em mercadoria, renovar a mercadoria, sempre é preciso que haja a novidade. Durante muito tempo, eles desprezaram os negros, mas agora essa poética é também uma mercadoria, eles estão sempre mercantilizando a imaginação alheia. É um solo árido habitado por negros, por indígenas, por colonizados, que fizeram emergir a riqueza. Então, os corpos, os espíritos negros são os novos solos, essa arte entra com efeito no circuito, nas galerias – o que fazer?  Há artistas que pelo menos podem viver de sua arte. Enquanto não tivermos nossos lugares, a gente vai ser devorado.

CONTINENTE Há recorrentemente uma contracrítica que relativiza o papel de Portugal no escravagismo africano ao lembrar que elites da própria África integraram o sistema de tráfico. Então, podemos falar de uma responsabilidade compartilhada?
FRANÇOISE VERGER Absolutamente, de forma alguma pode haver responsabilidade compartilhada. Não se trata de uma história moral, mas política e social. Havia escravidão em setores, mas isso não construiu o mundo moderno. A Europa construiu o mundo moderno numa estratégia global de escravidão. Não se trata de falar se os africanos eram gentis e os brancos malvados, não é disso que se trata. Os brancos tiveram mais meios, barcos, meios técnicos que puderam desenvolver para a prática escravagista. Hoje, o norte continua mais rico que o sul, mas não é mesma coisa, eles não têm o mesmo poder. O tráfico negreiro é uma grande transformação cultural, uma transformação profunda do meio ambiente, para se produzir algodão, açúcar, café por meio do capitalismo racial e patriarcal. Não nos esqueçamos de que os europeus não tinham chegado à África até o século XVIII, e, até então, o tráfico negreiro não entrava no continente, ficava nas bordas. O que permitiu a entrada foi a invenção da metralhadora e do avião.

CONTINENTE Esses países teriam condições de preservar seus patrimônios sabidamente saqueados pela grandes nações?
FRANÇOISE VERGER  Talvez não, mas não é essa propriamente a questão. O museu como o conhecemos é uma invenção deste ocidente patriarcal e escravagista, que controla os objetos não apenas pelos acervos de museus, mas também nas grandes coleções privadas, às quais quase ninguém tem acesso. Esses povos e comunidades possivelmente teriam desenvolvido outras formas de se relacionar e guardar seus objetos.

CONTINENTE Se abolirmos as relações com os grandes magnatas do capital, como algumas instituições em Nova York começam a defender, os grandes museus mundiais continuariam a existir?
FRANÇOISE VERGER Devemos pensar esses museus ocidentais como bibliotecas, para ver o que temos e que possamos decidir o que manteremos, o que vai deixar com os outros. Já que eles nos roubaram tudo, a gente vai agora à casa do ladrão e a gente olha e decide se quer isso, se quer aquilo. A questão é o que nós queremos construir com isso, será que a gente vai querer seguir o modelo ocidental, de grandes museus, grandes exposições e coleções de objetos. É isso que a gente quer? Hoje, já sabemos o bastante sobre apresentação da imagem. Podemos imaginar outra coisa.

CONTINENTE Como a senhora vê esse movimento de destruição de obras de exaltação à memória de dominadores e a repatriação de obras importantes como a do manto tupinambá pela Dinamarca?
FRANÇOISE VERGER Não há conversa, é preciso retirar esses documentos que trazem a presença colonial na vida. Vamos plantar árvores no lugar disso, é preciso repensar a vida. A ideia dos monumentos vem dos reis, será que queremos a mesma coisa? Por que não jardins de memórias? Por que sempre monumentos? É preciso que parta das comunidades o desejo de recuperar os objetos, devem olhar os arquivos e recuperar o que quiserem, a comunidade deve decidir o que deve ser sagrado ou objeto de museu, é preciso recuperá-lo como a alguém que foi exilado, torná-lo membro da família outra vez. Esse trabalho de contabilidade deve ser da comunidade.

CONTINENTE Essa é a chave para um museu decolonial, pós-colonial... Se isso ganha escala global, o Louvre, por exemplo, resiste em pé?
FRANÇOISE VERGER Não tem problema não, se ele não sobreviver. Tem tanta coisa lá, sempre vai sobrar alguma coisa (risos).

BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor de Tereza Costa Rêgo, uma mulher em três tempos (Cepe) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana). 

 Leia também, no site do suplemento Pernambuco, o Perfil de Françoise Verger.

 

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