Deus, que é mulher
Em agendas-de-presente-de-natal
Deus escreve seus poemas
ela tenta costurar os versos-holofotes com os versos-nuvens-formadoras-de-chuva
tenta costurar os versos-carros-nos-cruzamentos com os versos-dia-especial
o problema é que tudo que Deus escreve dá música e a humanidade plagia acrescenta seus versos toscos, faz coreografias do bumbum, e quando Deus descobre ela fica puta e
solta seus raios de TPM em cima das casas
Deus fica muito sentimental nesses dias
Deus não quer salvar o mundo com os seus poemas
Deus quer cuidar da própria vida
Deus quer as calcinhas secas para sair à noite
Deus quer a casa limpinha sem pó
um dia de trabalho tranquilo sem assédio
um dia sem ler cartas de pedidos de socorro, juramentos quebrados, promessas para
emagrecer, sacrifícios-com-bodes-vivos e virgens-árabe-mortas
Deus está cansada de se virar em mil para dar conta de tudo
é muita pressão até para Deus, que é mulher.
CONTINENTE Sinto que Corpo em Chamas é um livro visceral, com poemas cheios de ironias anticapitalistas e decoloniais, que dialoga com passados, presentes e futuros do Brasil, de Pernambuco e especialmente da Zona da Mata. Quais são as tuas referências para a criação dos poemas?
GEISIARA LIMA Os poemas do Corpo em chamas retratam as violências sofridas nesses territórios legados da colonização, da escravidão, da monocultura da cana-de-açúcar que transformou as paisagens dessa região, as relações de trabalho, que isolou essas cidades sem acesso, sem transporte público. O livro fala de um presente que respeita e sofre com o passado, o presente ainda incerto e um futuro muito limitado para os moradores das pequenas casas cercadas de canavial. A mulher tem essa relação com a terra, com a agricultura familiar, com a medicina das plantas, a benzedeira, a que lava a roupa do marido que trabalha no corte, a falta de controle de natalidade e as crias que estão pela própria sorte.
CONTINENTE É possível dizer que há uma interlocução entre as culturas populares típicas da Zona da Mata Norte e as referências de cultura pop internacional perpassando o livro? Uma conversa entre o local e o global?
GEISIARA LIMA Os diálogos acontecem para mostrar a relação do ancestral e do novo, do rural e do urbano, a xilogravura e o grafite. Neste território, o punk se diverte no brinquedo (como se referem as manifestações populares da região, como o cavalo marinho, o maracatu). Cidades com menos de 50 mil habitantes que sonham com o concreto da capital e outros que planejam morrer aqui mesmo.
Ilustração do livro por Geisiara Lima
CONTINENTE Para ti, como os poemas conversam com os seus desenhos?
GEISIARA LIMA Os desenhos são de séries criadas durante os anos de escrita dos poemas do livro e que procuram compor as paisagens do livro, a prosa, a mística dos brinquedos, a brutalidade das transformações provocadas pela monocultura nesses corpos, localizam um pouco o leitor.
CONTINENTE Há uma transferência quanto ao gênero da voz poética nos poemas, às vezes a voz poética é masculina; às vezes, feminina. Houve uma escolha consciente nesse sentido ou você se deixou levar pela inspiração?
GEISIARA LIMA Os poemas do livro foram trabalhos de cinco anos focados na leitura, na oralidade, dando voz a personagens que fazem parte de um cenário que sofre diversos tipos de opressões. Nos parágrafos existem prosas de gêneros diferentes, ditados populares, sabedoria ancestral através da fala numa região onde ainda existe um alto índice de analfabetismo, problemas sociais, econômicos, transformações geográficas; dou a fala ao próprio território.
CONTINENTE No poema O sujeito cinza, você indaga a escolha pela autodeclaração parda que fazem algumas pessoas. Você não acredita que as brasileiras e os brasileiros acabaram tendo muita dificuldade histórica de encontrarem as suas próprias origens por causa da mestiçagem imposta e do genocídio de negros africanos e indígenas? Como se autoafirmar para se autodeclarar preta/o ou indígena?
GEISIARA LIMA Acredito sim nesse processo, passei por ele; esse poema retrata esse processo para chegar a essa aceitação, do conhecimento das nossas origens. A minha certidão de nascimento está preenchida com essa palavra “pardo”, que não consigo identificar como branco e nem como negro. Por anos, fiz essa busca, passei a infância e adolescência escutando frases como “ela não é nem tão preta”, para expressar um “elogio”, mas que era uma forma muito agressiva de negar as minhas origens. Passei mais de 10 anos alisando cabelo pensando que isso me faria ser aceita pelo mercado, na escola, que me faria entrar em algumas salas... Fiz transição (capilar) há uns cinco anos só, eu mesma não lembrava como era meu cabelo sem aqueles sacrifícios para mudar minhas raízes. Esse poema tem algumas ironias para retratar todo esse meu processo, minha entrada numa universidade pública sendo a primeira mulher de muitas geraçõ
O sujeito cinza
Você caminha depois do trampo pelas ruas
nas pinceladas-cinza da calçada
se não fosse os grafites, você não teria assunto na mesa de bar
tomando uma cerveja com os amigos
o concreto invadiu as galerias
há mais concreto que pintura abstrata no museu de arte contemporânea
você não veria flores se não fossem os guarda-chuvas-dos-chineses flutuando nos
camelôs, não teria arte se não fosse a pirataria
procure sua cor na palheta de cores do mercado de trabalho
se hoje um piano-preto caísse na sua cabeça eles encontrariam
em menos de uma semana, uma cor para te substituir
tudo é plano dos designers para te manter em harmonia com o ambiente
teu patrão saberia procurar uma cor com as tuas características.
Quando você preenche o cadastro para vagas na faculdade se declarando pardo, seus
ancestrais que vieram em navios da África acorrentados cheios de piolho, cagados,
mijados, estão se debatendo no mar, e também acho que você está sendo um arrombado
do caralho que vai morrer cinza! Sem coragem para dar um salto-azul da morte
confortado com certezas-brancas escravo da simbologia
a Apple está jogando lixo na sua casa
e a bateria está acabando
e a bateria está acabando
e a bateria está acabando
conecte-se ao seu carregador
você vai morrer de câncer ou dirigindo bêbado, vai entrar para o banco de dados do
governo sem segurar um cartaz, sem ter sangue, pus, nem feder.
Arranquem esse cara do protesto, ele está saqueando as lojas!
CONTINENTE Trazendo um pouco o tema da Zona da Mata, tão presente no seu livro. Como é, para você, ser nascida e criada em uma das regiões mais exploradas historicamente pelo capitalismo em todos os seus vieses durante e após a colonização? Isso traz traumas para todos que vivem na região?
GEISIARA LIMA Essa região é muito devastada pelas pragas que a colonização trouxe, muito isolada e carente de políticas públicas, somos mão-de-obra escrava nos engenhos, somos mão-de-obra barata nas usinas. Muitas destas cidades estão separadas por 5 km de cana e só têm como opção de trabalho a usina ou as prefeituras. A política ainda é comandada pelos coronéis, latifundiários, pequenos proprietários de terra que sobreviviam da agricultura familiar e que estão sendo obrigados a vender suas terras para as usinas e migrar para os centros urbanos para executar trabalhos precários, construir habitações em morros.
Ilustração do livro por Geisiara Lima
CONTINENTE E como é ser poeta na Zona da Mata?
GEISIARA LIMA Até hoje, a luta foi grande, de escrever ninguém vive nessa região, é sempre uma atividade secundária porque não temos espaços para trabalhar com poesia que ofereçam remuneração; nós criamos esses espaços, somos artistas que precisam se produzir para sobreviver, arregaçar as mangas, regular o som, editar o vídeo-poema. De uns tempos para cá, estamos nos adaptando aos editais, mas essa história dos editais é algo de agora. Por aqui, fundamos uma rede de colaboração, ilustrei muitos livros de poetas daqui, ilustrei cartazes de cineclube, de eventos de música, já peguei equipamento de bandas para evento de poesia, fazíamos recitais nos intervalos dos shows de música... Depois de alguns anos fazendo esses eventos, livros, mapeamos os artistas da região para poder recorrer quando precisamos, queremos enriquecer o projeto. Uma mulher trabalhar com poesia, fazer seu trabalho circular, ser publicado, ser respeitado é uma tarefa que muitas já abandonaram e, hoje, entendo os motivos. Eu venho de uma família onde as mulheres eram, no “máximo”, caixas de supermercado, minhas primas trabalhavam nas lojinhas de roupas, elas não iam para a faculdade, elas não viajavam para se apresentar nos festivais, elas eram donas de casa. Minha bisavó ficou viúva aos 67 anos e ser viúva era uma glória perto das outras parentes que foram abandonadas pelos maridos, que não tinham o nome do pai na certidão de nascimento dos filhos, eu mesma não tenho. Nesse isolamento em que vivemos, é até perigoso pegar o ônibus para um evento em outra cidade, para passar a noite, porque só tem transporte até as 17 horas para a volta. Você pede abrigo na casa de um amigo e já sofre insinuações machistas. Imagina produzir sessões de desenho com modelo nu, como fizemos em 2019, no Ispia!
CONTINENTE Aliás, agora como uma recém-mãe, o que você sente de dificuldades em ser poeta e mãe?
GEISIARA LIMA Agora o tempo que me ajude para que eu consiga conciliar a maternidade com meus trabalhos, para que eu consiga passar essas mensagens dos meus poemas para minha filha, ensinar o respeito pelas tradições, pelos brinquedos, pela cultura da Zona da Mata, pela sabedoria dos mais velhos, ensinar os legados da mulher que começou a me criar com 70 anos e pegava, no quintal, o mato abortivo e o mato que ajudava no pós-parto, ensinar o legado dessas bruxas. Tudo fica mais difícil quando temos nas mãos a felicidade de uma pessoinha que depende em tudo da gente, mas também para que ela enxergue outras possibilidades é que terei que persistir.
CONTINENTE Você acredita que o turismo e a manutenção das manifestações populares da Zona da Mata melhoram as condições econômicas e sociais da área?
GEISIARA LIMA O turismo que é feito com respeito ao patrimônio e os projetos, os editais que consideram a história dessas pessoas, as tradições das cidades, podem sim trazer um desenvolvimento social e econômico para a região. As pessoas que trabalham com arte e cultura na região vivem em condições precárias, muitas levam essas atividades importantíssimas como secundárias por não serem remuneradas, não colocarem o pão na mesa, então acabam sucumbido ao cansaço, migrando para os centros urbanos e os brinquedos perdem seus componentes e vão desaparecendo cada vez mais.
CONTINENTE Quais diferenças você sente na Zona da Mata, nos últimos 10 anos?
GEISIARA LIMA De 10 anos pra cá, eu enxergo que a Zona da Mata recebeu muitas indústrias, comércios que o capitalismo trouxe não porque considere que sofremos um processo de modernização, mas porque nos enxergue como números do consumismo. Com isso, veio a violência, os genocídios das populações jovens negras que se espremem ao redor dessas indústrias onde pensam que terão mais oportunidades. Timbaúba, em janeiro de 2021, registra um homicídio por dia, a maioria em loteamentos, amontoados de casas construídos para que o povo tenha moradia, mas nenhuma ocupação, nenhum lazer, nenhuma das coisas que nos fazem humanos. A cultura dos bois de Carnaval, que era rural e foi trazida nestes processos de migração para os mortos, está quase extinta. Me lembro de chegar aqui e ver os últimos dias de passagem do trem pela Transnordestina, hoje ficamos reféns de uma só linha de ônibus, com horário limitado. Como dito antes, crescemos em números, mas não houve melhoras nas nossas condições de vida, de trabalho, de educação, temos um alto índice de analfabetismo, ainda há situações em que precisamos ir para o Recife para ter um atendimento de saúde, por exemplo.
Ilustração do livro por Geisiara Lima
CONTINENTE E por último, há uma intenção ou desejo, como autora, de mensagem passada para os leitores no seu livro?
GEISIARA LIMA Não é mais uma mensagem num sentido pedagógico, mas prender o olhar sobre os corpos que transitam nas encostas das rodovias dessa região, onde, a cada 15 km, tem uma usina, uma queimada à noite que infringe as leis ambientais, mulheres que plantam na terra as ervas que curam e o alimento que mata a fome das suas crias. Em cronologias distintas, as relações com a nossa cultura ancestral, a prosa na calçada que documenta nossos saberes nas línguas não escritas.
RAÍZA HANNA, escritora, revisora de textos, editora de livros, encadernadora e pesquisadora em literatura e feminismo. Mestranda em Literatura, Teoria e Crítica pela UFPB.