Entrevista

“Nem nos tempos da ditadura era comum a polícia interromper shows”

Em entrevista, os jornalistas João Pimentel e Zé McGill, autores do livro 'Mordaça', analisam a censura à música brasileira durante a ditadura militar e o atual contexto bolsonarista

TEXTO José Teles

06 de Abril de 2022

Zé McGill e João Pimentel entrevistaram diversos compositores que tiveram canções vetadas

Zé McGill e João Pimentel entrevistaram diversos compositores que tiveram canções vetadas

FOTO LUIS DANTAS / DIVULGAÇÃO

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Curioso como a censura durante o regime militar, em relação à música brasileira, é tão citada, pelos autores, intérpretes, embutidas em biografias, e tenha bibliografia específica tão pobre. No final de 2021, a Sonora Editora lançou uma oportuna obra sobre o tema, Mordaça – História de música e censura em tempos autoritários, dos jornalistas e escritores João Pimentel e Zé McGill. O primeiro, carioca, o segundo nasceu nos Estados Unidos, mas é carioca desde os três anos de idade. Mordaça não se propõe a livro definitivo sobre a censura no país, porém é o mais completo até agora. O “em Tempos Autoritários”, no subtítulo, sinaliza que a abordagem dos autores alcança também anos recentes, sobretudo os três últimos, em que a censura emprega métodos diferentes, e abdica de censores e carimbos. Pimentel e McGill conversaram, para a Continente, sobre Mordaça e o cerceamento à liberdade de expressão na música. Foram enviadas 13 perguntas aos autores, que responderam separadamente.

CONTINENTE Como surgiu a ideia de escrever sobre este tema? E como foi a produção, dividiram tarefas ou participaram juntos das pesquisas, entrevistas e texto?
JOÃO PIMENTEL Nosso editor, Michel Jamel, me convidou para fazer algo sobre os cinquenta anos do AI-5, em 2018. Mas o tempo era curto e, a priori, eu achava que tudo já havia sido feito sobre o tema. Ele me apresentou ao Zé McGill, também jornalista e escritor de ficção, e assim começou o processo. De cara, percebemos que as histórias sobre a censura musical estavam espalhadas em biografias como as de Caetano (Verdade tropical), Gilberto Gil (Gilberto bem perto), etc. Outras tantas foram contadas em matérias antigas, coisas de mais de 20, 30 anos. A falta de um livro que juntasse essas histórias chamou nossa atenção. A segunda decisão, que depois se mostrou acertada, foi a de trabalharmos com relatos de pessoas que passaram por algum tipo de censura, perseguição, tortura. Isso foi fundamental para o resultado final do livro, já que todos, naturalmente, fizeram uma ponte com os tempos atuais. Os capítulos foram divididos. Eu tinha mais acesso a determinados artistas, como Ivan Lins, Macalé, Joyce, Paulinho da Viola, Paulo César Pinheiro. O Zé teve a ótima ideia de buscar histórias do período pós-ditadura. A única entrevista que fizemos juntos foi a do Gil, curiosamente a última antes da pandemia. A pesquisa foi feita pelo Pedro Paulo Malta, jornalista, cantor e ótimo pesquisador.    

CONTINENTE Vocês levaram quanto tempo, e entrevistaram quantas pessoas?

JOÃO PIMENTEL Em pouco mais de três anos, entrevistamos cerca de 35 pessoas. São 29 capítulos, ou seja, algumas entrevistas não renderam tanto e foram aproveitadas em outros capítulos. 

CONTINENTE Achei o livro o mais amplamente informativo dos que li sobre a censura durante o regime militar, mas não entendi a ausência de Tom Zé. Ele teve a carreira praticamente interrompida pela capa de Todos os olhos (1973) e foi preso duas vezes em São Paulo.
JOÃO PIMENTEL Tentei fazer contato com o Tom Zé por mais de uma vez, via assessoria, inclusive na viagem que fiz a São Paulo para entrevistar o Gudin e o Solano Ribeiro. Infelizmente, não obtive sucesso. O mesmo aconteceu com a Rita Lee, que foi procurada pelo Zé e não respondeu a nenhum dos contatos. É uma pena, porque seriam depoimentos importantes. O curioso é que, no começo, achávamos que muitos dos artistas não gostariam de falar sobre o assunto. Mas aconteceu justamente o contrário, todos pareciam estar entalados com o que acontece hoje no país, com esse governo obscurantista, negacionista e fascista.

CONTINENTE Muitas vezes a ordem vinha de cima. No livro, vocês lembram de um episódio contado por Walter Clark, chefão da TV Globo, nos anos 1970, para excluir Caminhando, de Vandré, e América, América, de César Roldão Vieira, do FIC de 68. A ordem veio do Comandante do I Exército, Sizeno Sarmento. Nas pesquisas, vocês encontraram muitas canções proibidas por “ordem superiores?”
JOÃO PIMENTEL O Mordaça é um livro de relatos individuais. A pesquisa foi muito mais de imagem, de documentos e fotos relativos aos acontecimentos narrados. Mas a censura marcava todos em cima. No caso dos festivais, havia uma vigilância maior, porque a audiência era gigantesca. Quanto mais o de 68, que acabou sendo um dos fatores determinantes do AI-5. Ali a coisa era mais acirrada. Mas não surgiu nada tão direto quanto o episódio do Vandré.

CONTINENTE Nos dias atuais há censura aberta contra artistas que não rezam pela cartilha do governo. O livro aborda o cerceamento do governo em relação a certos artistas. Como vocês comparam a censura do regime implantado em 1964 e o do presidente Bolsonaro?
JOÃO PIMENTEL Todo governo autoritário detesta o livre pensamento, a contraposição de ideias. A censura sempre foi instrumento deste tipo de regime. Não vivemos uma ditadura militar como naquele período, mas vivemos tempos absurdamente autoritários. Somos governados por um presidente negacionista, que se cercou de militares, que aparelha a polícia, que arma os cidadãos. Que tipo de cidadão quer portar uma arma? A censura hoje existe no corte de verbas para a cultura, na perseguição a artistas nas redes sociais, nas fake news, nas ameaças diretas a quem não reza nessa cartilha insana, moralista, terraplanista. Acho que o nosso livro é uma contribuição contra este tipo de pensamento alienado e burro. Infelizmente precisamos lembrar, sempre, que a geração mais sensível e genial de artistas brasileiros passou por esse tormento. 

CONTINENTE Paulo César de Araújo surpreendeu em Eu não sou cachorro não, por apontar que os cantores popularescos, os bregas, também foram vítimas da censura. Mas era o óbvio. Todo mundo que ia gravar antecipava a composição aos censores. Assim foi com os forrozeiros nordestinos. Um dos autores mais censurados da música brasileira foi o forrozeiro João Gonçalves, proibido, inclusive, de se apresentar na Paraíba. Vocês encontraram nos arquivos da censura vetos ao pessoal do forró?
JOÃO PIMENTEL Como já disse anteriormente, Mordaça é um livro de relatos, e a pesquisa foi feita a partir destes relatos, como a checagem de documentos, endereços, nomes.  O livro do Paulo César é referência. Li também O fole roncou, que você citou em sua coluna. Gosto muito do tema. A escolha dos personagens começou com os suspeitos de sempre: Chico, Gil, Caetano, Martinho da Vila, Geraldinho, Alceu, Paulinho da Viola. A partir daí, surgiram outros personagens como o Ricardo Vilas, o advogado João Carlos Muller e o Genilson Barbosa, que foi o único personagem a falar abertamente sobre suborno dos censores. Em nenhum momento pensamos em algum gênero musical específico. A quantidade de artistas censurados é enorme. Daria para fazer vários Mordaças. Não tivemos a pretensão de fazer um tratado sobre a censura no Brasil. Nosso livro está aí para jogar uma luz sobre o assunto, atualizar o tema, mostrar a insanidade que é alguém evocar a memória de um torturador, sugerir a volta do AI-5.  

CONTINENTE Quem foi o autor do qual vocês encontraram mais músicas censuradas?
ZÉ MCGILL  Entre os que eu entrevistei, Chico Buarque e Odair José tinham a maior quantidade de letras total ou parcialmente censuradas. No entanto, a letra de música censurada pelo maior período foi A bandeira do meu partido, do Jorge Mautner. Essa música, que viria a se tornar o hino do PCdoB, em 2017, foi composta em 1958 e só foi liberada em 1985, com o fim da ditadura militar. São quase 30 anos de proibição, o que talvez faça dela a recordista em tempo de veto entre todas as letras na história do Brasil. Existe essa discussão quase olímpica sobre qual foi o artista com o maior número de letras censuradas, mas eu e o João Pimentel não nos fixamos muito nisso. Sabemos, no entanto, que entre os artistas mais censurados, além de Chico e Odair José, estão também a Rita Lee, o Gonzaguinha e o Taiguara, que, segundo a jornalista Janes Rocha, teve 81 canções vetadas pelos censores.  

CONTINENTE A censura à música popular no Brasil é contraditória. Em plena ditadura, o Projeto Pixinguinha, da Funarte, órgão do Ministério da Cultura, escalava nomes abertamente em confronto com o regime, caso de Gonzaguinha, que se apresentou com Marlene pelo país. Há registro de “ordens superiores” contra algum nome que participou do projeto?
ZÉ MCGILL Especificamente sobre o Projeto Pixinguinha, não encontrei esses registros. No entanto, há no livro diversos casos de “ordens superiores” para a proibição de letras de música. João Carlos Muller, por exemplo, que era advogado da Polygram, nos conta, logo no primeiro capítulo do livro, que a perseguição a Chico Buarque era ordem que vinha dos superiores do regime: “O Chico era odiado por eles. Mas não exatamente pelos censores; isso era ordem lá de cima. Durante alguns anos, especialmente na época de Apesar de você, o Chico era realmente o artista mais visado pela censura”. Já Ney Matogrosso foi proibido de pisar em Brasília por um bom tempo, também por “ordens superiores”. A mulher de um general reclamou publicamente do fato de o cantor se apresentar sem camisa no palco. Em seguida, o marido dela proibiu os shows e a presença de Ney no DF, por dois anos. Mas é interessante notar que durante a ditadura o subordinado (o próprio censor) é quem tem o seu nome conhecido pelos artistas e pelo público e acaba virando motivo de piada entre os censurados. Os superiores, os generais e comandantes do regime, raramente tinham seus nomes envolvidos. 

CONTINENTE Curioso é que se tem a impressão de que artistas censurados de tanto ir conversar com censores tornaram-se amigos deles. A célebre Dona Solange, pelo que se escreveu sobre ela, no próprio O Pasquim, é tratada como se fosse uma pessoa legal. E tem a história de Léo Jaime  que transformou So Lonely, do Police, em Solange, mandou para a censura, que adorou a música, que nem era homenagem a ela, mas uma crítica à censura. Como explicar esta relação? Coisas do Brasil?

ZÉ MCGILL Coisas do Brasil, sem dúvida. Mas há no nosso livro opiniões contrastantes sobre a Dona Solange (chefe da DCDP entre 1981 e 1984). O João Carlos Muller, por exemplo, se refere a ela como uma pessoa disgusting (termo em inglês que significa “repugnante”). E ele ainda completa: “Ela era uma pessoa de mal com a vida, de mal com os homens, com as mulheres, acho que até com bichos... Tenho péssimas recordações dela. Uma mulher frustrada, sei lá... Uma pessoa má. Parecia que tinha prazer em vetar”. Já o Genilson Barbosa, um ex-funcionário da gravadora RCA, que nos conta no livro como fazia para subornar os censores em troca da liberação de músicas, diz que: “O pessoal aumenta um pouco. Ela podia ser linha dura com os comandados dela, mas comigo nunca teve nenhuma grosseria”.  E o Leo Jaime realmente criou uma relação com a Dona Solange, depois de tanto trocarem bilhetes sobre as músicas censuradas dele. Mas não chegou a conhecê-la pessoalmente e não dá pra dizer que eles se tornaram amigos.

CONTINENTE Vocês lembram que a censura à cultura existe desde o Brasil colônia. No Estado Novo foi pesada, e meio maluca feito a da ditadura militar. Teve compositor que precisou falar com o guarda-costas de Getulio, Gregório Fortunato, para liberar música. Que comparação vocês fariam entre a censura das duas ditaduras?
ZÉ MCGILL Acredito que há mais semelhanças do que diferenças entre a censura das duas ditaduras. Inclusive, como dizemos na introdução do livro, o modelo do sistema censório brasileiro foi criado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), do Getúlio Vargas, em 1939. o DIP era diretamente subordinado ao presidente, além de ser encarregado da propaganda oficial do governo e responsável pela censura aos meios de comunicação. Os jornais eram seu alvo predileto, mas as estações de rádio e as músicas de suas programações também estavam no radar. Só no ano de 1940, o DIP vetou mais de 300 músicas e cerca de 100 programas de rádio. Ou seja, era censura pesada também, assim como nos Anos de Chumbo. No Mordaça, o foco é maior sobre o período do regime militar porque nós escolhemos contar as histórias a partir de depoimentos de personagens que estivessem vivos.

CONTINENTE Léo Jaime, em meados dos anos 80, a censura acontecia pelo duplo sentido das letras. A censura de costumes existia antes do atual governo?
ZÉ MCGILL A  defesa da “moral” e dos “bons costumes”, ou seja, a hipocrisia, sempre foi prioridade para a censura. No entanto, havia um foco maior sobre as questões políticas durante o período do golpe de 64 e nos Anos de Chumbo. Depois, quando o país já se aproximava de uma abertura política, nos anos 1980, a censura passou a perseguir temas como comportamento. Os palavrões e questões sobre sexo, por exemplo, viraram prioridade dos censores. Como as letras do Leo Jaime eram cheias de palavrões (o primeiro disco dele chama-se Phodas C) e referências sexuais, ele passou a ser considerado “foco de subversão”, como dizia Dona Solange. E este também é mais ou menos o foco da censura nestes tristes anos Bolsonaro. O nada saudoso ex-prefeito do Rio, Marcelo Crivella, por exemplo, aliado de Bolsonaro, protagonizou o famoso episódio de censura na Bienal do Livro, em 2019. Crivella determinou que o gibi Vingadores: Cruzada das crianças, que trazia na capa uma cena de beijo entre dois personagens masculinos, fosse recolhido da Bienal, alegando que a publicação trazia “conteúdo sexual para menores”. A reação à censura fez triplicar as vendas de livros com temática LGBT durante o evento. 

CONTINENTE O episódio de Bnegão no Mato Grosso do Sul, em que a polícia exerceu o papel de censor, aponta para um tipo mais nocivo de censura do que a de gabinete?
ZÉ MCGILL Sim! Este caso do BNegão é praticamente inédito no país. Nem nos tempos da ditadura militar era comum que a polícia interrompesse shows em cima do palco. Há o famoso caso do Festival Phono 73, em que Chico e Gil tiveram o som de seus microfones cortados pelos censores durante a apresentação da música Cálice. Mas, interromper um show dessa maneira truculenta, como fizeram com o BNegão no MS, é caso raro. E isso aconteceu porque o BNegão fez um discurso, durante o show, contra Bolsonaro e Sergio Moro, numa região do Brasil em que os bolsonaristas são empoderados. Fora isso, hoje temos outros tipos de censura, como a criação de obstáculos burocráticos para a captação de recursos para projetos culturais. E há ainda os robôs e as milícias digitais bolsonaristas, que ameaçam de morte e tentam censurar tudo o que vai contra a “ideologia” deles.

JOSÉ TELES, jornalista, crítico musical, pesquisador e escritor.

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