Entrevista

“Minhas origens me motivaram a escrever essa história”

Autor de ‘Torto arado’, romance vencedor dos prêmios Oceanos e Jabuti 2020, o baiano Itamar Vieira Junior dá o testemunho de seu tempo, do seu incômodo com a história de nosso país

TEXTO Júlia de Miranda

20 de Dezembro de 2020

Itamar Vieira Junior:

Itamar Vieira Junior: "Eu escrevo como se vivesse aquela realidade"

Foto Câmara Municipal da Póvoa de Varzim/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Questões atinentes à experiência humana são as que mais ocupam a minha leitura e, por sua vez, mobilizam a minha escrita”, afirma o soteropolitano premiado internacionalmente pelo romance Torto arado, que discorre sobre insubordinação social e o direito (pertencimento) à terra.

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Segui à risca a recomendação de uma amiga que, mesmo vivendo do outro lado do Atlântico, teve primeiro o acesso à literatura de Itamar Vieira Junior: “Leia Torto arado, procure saber sobre essa história”. Retribuindo a generosidade depois de ser arrebatada pela obra, que agora me acompanha pela vida inteira, faço o mesmo, em qualquer papo sobre literatura, recomendo veemente o livro para todas as pessoas.

O livro que acaba de ganhar os importantes prêmios nacionais Oceanos e Jabuti de Romance Literário e, em 2018, levou o reconhecido Prêmio LeYa, em Portugal, carrega em si distintas travessias históricas; afinal, a rota para aportar no território brasileiro, tendo como ponto de partida o continente africano ou europeu, passa pelas águas, elemento que simboliza as emoções. E para navegar em nossa história, a fim de conhecê-la sem o véu que por vezes nega e glorifica nosso passado colonial, preservando memórias de dores e prazeres, precisamos saltar num mergulho profundo, numa ferida que nunca foi tratada e sempre dói: a desigualdade social latente oriunda do período escravocrata.

“Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade?”, questiona um trecho de Torto arado, uma história que, mesmo não tendo um tempo demarcado, resgata demandas atuais como situações de subserviência e dominação permanente, realidade de muitos trabalhadores que ainda sobrevivem em situação análoga à escravidão. Temos em mãos o relato humano de um Brasil que nunca deixou de (re)existir: as comunidades quilombolas, aqui localizadas no sertão da Chapada Diamantina, na Bahia. 

Itamar refuta o rótulo de “literatura regionalista” para as suas produções, como aconteceu com os autores que o antecederam, com os romances das gerações de 1930 e 1945 assinados por nomes como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Rachel de Queiroz. Vieira Junior acredita que o regionalismo é uma perspectiva e que os escritores escrevem dos seus próprios centros, que, por sua vez, podem se distanciar do tradicional eixo Rio-São Paulo.

Torto arado (título retirado do poema Marília de Dirceu, de Tomás António Gonzaga) envolve numa narrativa rica sobre a história de duas irmãs, contada a partir de sua relação com o pai e a terra, fonte de vida e, ao mesmo tempo, território de conflitos. Bibiana e Belonísia são filhas de humildes trabalhadores rurais e sofrem, na infância, um brutal acidente que resulta na mudez de uma delas. No decorrer da trama, tentamos descobrir qual das duas teve a língua mutilada, além de imergir em relevantes temas atuais, como a luta de classe, o racismo, os reflexos dos processos de colonização e escravização, a extenuante rotina de quem trabalha no campo, as tradições religiosas afro-brasileiras (Jarê), a disputa pela terra entre trabalhadores e fazendeiros, a exploração trabalhista, a importância da natureza no ciclo de quem ali reside, a solidariedade comunitária e a violência doméstica e familiar contra mulher. 

O livro, dividido em três partes (Fio de corte, Torto arado e Rio de sangue), é contado por três narradoras diferentes e segue numa crescente emocionante acompanhando o processo de formação das irmãs até a idade adulta, como também a construção de identidade daquela comunidade rural. Muitos leitores relatam a similaridade do enredo com a trajetória de seus avós e bisavós, pessoas negras que, na maioria das vezes, enfrentam dificuldades ao tentarem detalhar a origem de seus antepassados quilombolas que nunca tiveram direito à terra, explicitando a estrutura fundiária perversa existente no país.

Apesar das problemáticas em que estamos envolvidos como sociedade, é nítido o movimento de abertura para discussões sobre distintas camadas de opressões. Torto arado está entre os três títulos mais vendidos pela editora Todavia em 2020 e evidencia a luz sob o protagonismo e a produção negra que, além de despertar o interesse de quem consome literatura, vende e se destaca pelo talento e originalidade na escrita.

Confiram abaixo uma entrevista exclusiva do escritor à Continente.



CONTINENTE Torto arado é uma obra muito potente e que me deixou imersa e atravessada na história da comunidade rural de Água Negra. Tanto no livro quanto no seu conto Alma, o protagonismo feminino ascende e podemos perceber narradoras humanas, conectadas com outras personagens femininas através do fortalecimento e da união de mulheres que descrevem suas dores, alegrias, lutam contra o machismo e até a violência doméstica, compartilham segredos e estabelecem vínculos de lealdade. Quando se pautam questões sobre as comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas e assentados, é pouco abordada, nos grandes veículos de comunicação, a importância das lideranças femininas ali dentro, e elas existem. Como foi o processo de criação dessas personagens, por que você optou em trabalhar, sendo um homem, com narradoras mulheres?
ITAMAR VIEIRA JR. Acho que a influência mais imediata veio do ambiente familiar: as mulheres de minha família sempre foram protagonistas e carismáticas. Carregavam a força da vida familiar, e os homens conseguiam ser apenas sombras pálidas do que elas eram. Depois, como servidor público, passei a estabelecer contatos com trabalhadoras rurais e lideranças de comunidades tradicionais. Ali, pude observar, as mulheres são lideranças políticas, o que me parece um paradoxo, já que vivemos numa sociedade profundamente patriarcal. Daí o deslocamento dessa história para o corpo e a vida das mulheres; somente elas poderiam narrar a história da terra, onde sua comunidade vive.

CONTINENTE A semente de Torto arado é antiga, uma história que começou a ser desenhada na sua adolescência. Com a passagem do tempo, diante do seu amadurecimento e escolhas profissionais, acredito que muitas ideias tomaram novos formatos. Foram alguns anos trabalhando no Incra acompanhando de perto a vida, os desafios e as histórias de pessoas no campo na Bahia e por um período no Maranhão. Alguns anos depois, você retorna à universidade como pesquisador no doutorado de Estudos Étnicos na UFBA, onde produziu uma pesquisa etnográfica. Sobre o que foi ela? Penso que um dos processos da escrita, sabendo que o texto acadêmico se diferencia do ficcional, é escutar, observar, acompanhar e questionar o universo sobre o qual queremos nos aproximar. Nos estudos antropológicos, tais práticas também são adotadas, de preferência com muita sensibilidade e respeito. De que maneira você enxerga a literatura como experiência antropológica? Como isso te auxiliou e auxilia hoje na construção de suas obras?
ITAMAR VIEIRA JR. A minha tese de doutorado é uma pesquisa etnográfica sobre o processo de regularização fundiária de uma comunidade quilombola. Há 15 anos trabalho no Incra e, durante esse tempo, eu pude conviver de maneira muito profunda com o cotidiano dos trabalhadores rurais e muitas outras comunidades tradicionais. Anos mais tarde, segui para cursar um doutorado no campo dos estudos étnicos com ênfase em antropologia. Tive o privilégio de ser orientado pela antropóloga Maria Rosário de Carvalho e adentrar com mais propriedade no universo etnográfico. Essa convivência me permitiu estabelecer uma grande afinidade entre a atividade do antropólogo e a do escritor: os dois recriam mundos a partir de sua experiência com sujeitos e personagens. Se o antropólogo tem como objetivo narrar a vida do outro a partir das suas próprias cosmovisões, o bom escritor também se desloca para o lugar da personagem e a interpreta sem julgamentos, contando a história a partir de sua perspectiva. Assim como o antropólogo imerge no campo para conhecer os sujeitos de sua pesquisa, o escritor precisa conhecer muito bem suas personagens para poder narrar suas vidas. Por isso, todo bom romance é precedido de uma rica experiência anterior do autor com suas personagens.

CONTINENTE Agora a intersecção da literatura com a imagem: você costuma ler um livro imaginando o ocorrido como num filme, criando detalhes, cenários, cores e feições para as personagens? Sua produção é rica em descrições e isso torna a experiência muito imagética. É como se você entregasse para nós um livro e, junto, o roteiro de uma produção audiovisual. Li que você é um grande apreciador do trabalho do cineasta japonês Akira Kurosawa, ele é uma referência para suas criações e reflexões? Tem interesse em levar para o cinema suas histórias?
ITAMAR VIEIRA JR. Eu escrevo como se vivesse aquela realidade. Não é apenas contar algo, mas me deslocar para o mundo da minha história e narrar a partir das personagens que o habitam. Talvez isso explique as imagens que o romance evoca. Talvez por isso eu seja um apreciador do trabalho de cineastas como Glauber Rocha, Kurosawa e Bergman. Eles têm essa capacidade de nos transportar para o contexto de suas obras de uma maneira muito especial. Quando escrevo, não penso em adaptação; minha preocupação imediata é com a literatura. Os direitos do audiovisual para Torto arado foram adquiridos pela produtora Paranoid BR, que tem como sócio o Heitor Dhalia. Confesso que estou curioso para ver o resultado dessa adaptação, tendo sempre em mente que se trata de uma outra obra, com a assinatura do produtor e do diretor do projeto.

CONTINENTE Você recebeu um notável prêmio internacional em 2018, com Torto arado, o LeYa (que tem como objetivo estimular a produção de obras inéditas de autores de língua portuguesa), e teve uma grande repercussão em Portugal. O livro é lançado primeiro lá para depois chamar a atenção das editoras brasileiras. Isso é tão simbólico, pois sabemos que você escreve sobre assuntos “espinhosos” dentro do nosso território. Vivemos num país ainda em fase de negação e até glorificação do período colonial, a nossa grande ferida. Não é novidade que até hoje existam trabalhadores (em sua maioria negra e sem escolaridade) em condições análogas à escravidão, e é justamente nesse profundo Brasil do campo que você se debruça: o pedaço afastado do Centro-Sul e grandes centros urbanos, os quilombolas descendentes de negros escravizados, tidos por muitos como invisíveis. Ao mesmo tempo em que são apagados, principalmente pela atual administração política brasileira, muitos leitores que acessam sua obra se sentem acolhidos e emocionados por você ter descrito a vivência de familiares e da própria linhagem ancestral que é a base da nossa cultura e sociedade. Pensar o Brasil como um espaço branco é irreal, mas é essa a história que nos contam. O que te motiva a seguir por esses caminhos? Raízes familiares? Você passa muita seriedade e comprometimento, quais são as suas causas, ativismo político também se faz com literatura?
ITAMAR VIEIRA JR. Antes de mais nada, minhas próprias origens me motivaram a escrever essa história. Sempre me interessei por minhas origens negra e indígena, mas vivemos um processo de apagamento tão violento que essas histórias são quase irrecuperáveis. Essas questões se tornaram mais profundas no começo da idade adulta, quando me conscientizei que ser “mestiço” não mais designava quem eu era, eu precisava ir além e encontrar a minha identidade negro-indígena. Anos depois, voltei para o campo por conta de minhas atividades profissionais e pude me conectar com esse passado remoto de meus avós paternos e meu pai. Encontrei quilombolas e indígenas vivendo em condição de extrema vulnerabilidade. No começo, foi um choque e precisei reelaborar esse acontecimento escrevendo literatura.

Todos nós somos seres políticos, por mais que alguns tentem negar. Então, se minha arte é uma forma de expressão, é muito provável que ela seja atravessada por questões políticas. Todo autor nos dá, por meio de sua arte, um testemunho de seu tempo. Esse é o testemunho do meu tempo e ele parte do meu incômodo com a história de nosso país.

CONTINENTE Você é jovem, possui descendência negra e indígena e está tendo a possibilidade de colher, ainda em vida, os louros de suas conquistas, reconhecido como um escritor de muito valor para o país. Infelizmente nomes como Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Ruth Guimarães e o próprio Machado de Assis, que sofreu um proposital embranquecimento, entre tantos outros intelectuais negros desconhecidos do grande público, não puderam viver as devidas condecorações. Sinto que nessa sociedade anti-intelectual existe um baixo estímulo para que pessoas, em especial mulheres, optem por trajetórias que foquem no trabalho e na criação mental, isso não é visto como algo muito “útil”. Na sua trajetória, existiu apoio para a carreira de escritor, você sempre soube que seria um escritor?
ITAMAR VIEIRA JR. Eu não tive um apoio direto. Meus pais queriam que eu tivesse uma profissão que garantisse o meu sustento e me desse um relativo conforto que nem eles nem eu nunca tivemos. Mas me deram um apoio velado. Minha mãe aceitava me dar livros quando eu pedia – especialmente nas épocas em que podíamos comprar, como o Natal – e meu pai me deu uma máquina de escrever, comprada à prestação, quando eu tinha 11 anos. Eu segui por esse caminho bifurcado entre a vida normal e pragmática, desejo de meus pais, e a de sonho e literatura, a minha vocação. Mas vejo que foi um privilégio porque uma dimensão da vida passou a alimentar a outra.

Eu sempre escrevi, mas só publiquei aos 32 anos. Mesmo assim não foi um caminho fácil. Submeti o primeiro livro de contos a um concurso literário na Bahia. O segundo a um edital de literatura da Secretaria de Cultura da Bahia. O romance fez o caminho do Prêmio LeYa. Concorri de forma anônima com mais de 450 originais oriundos de 13 países. Foi um caminho longo e agora posso pensar em um projeto de carreira mais sólido.

CONTINENTE Não sei se você um dia imaginou a dimensão que suas obras poderiam atingir, elas afetam o público, o afeto na visão de Spinoza como algo que mexe e nos move: move memória, move sentimento e move emoção. Já que fomos/somos todos afetados pelo seu trabalho, vou inverter aqui as posições para saber o que atravessa Itamar Vieira Junior: a conexão com a terra, a espiritualidade presente nas narrativas, a poesia, os estudos, a escuta ativa e a troca com as pessoas que cruzam o seu caminho, a ancestralidade, o amor, a família, a natureza?
ITAMAR VIEIRA JR. Eu tenho muita fé na literatura porque sempre fui tocado por obras literárias, mas não imaginava que o que eu escrevesse pudesse ter o mesmo alcance. Acho que há uma grande semelhança entre a substância dos livros que leio e as dos que escrevo. As questões atinentes à experiência humana são as que mais ocupam a minha leitura e, por sua vez, mobilizam a minha escrita. A vida, outras dimensões da existência, o mundo, o caminhar dos meus ancestrais que culminam no meu próprio caminhar. Gosto muito da expressão “escuta ativa”; mais do que nos fazermos ouvir, precisamos escutar o outro. Esse princípio fez toda a diferença na minha escrita.

CONTINENTE Enfrentamos um ano puxado com a pandemia da Covid-19, marcado por incertezas e instabilidade social/econômica/política, assim como uma sobrecarga emocional/mental. Mesmo com os avanços da tecnologia que atualmente possibilitam encontros virtuais, lives e cursos online, parece que, agora que entramos em dezembro, o maior desejo é pela quietude e a possibilidade de silenciar e ter tempo para ler um livro. Aliás, os livros salvaram a saúde mental de muitas pessoas que dispunham de tempo e concentração para o ato. Você conseguiu ter um respiro este ano? É importante para você se afastar um pouco do trabalho, celular, notebook para estar inteiro nos próximos projetos? Falando neles, quais novidades literárias (entres outras) podemos ansiosamente aguardar?
ITAMAR VIEIRA JR. Apesar do confinamento, foi um ano intenso de trabalho. Muitos eventos, solicitações, muitos pedidos relacionados ao romance. Dediquei esse tempo para a divulgação do trabalho, mas faltou o tempo da solidão, da reflexão para dar continuidade aos meus projetos. E, sim, preciso me afastar das distrações para me entregar por inteiro à escrita. Costumo escrever à mão e depois eu continuo no computador. Tento criar as condições necessárias para escrever. Torto arado é parte de um projeto maior que se debruçará sobre a relação do homem com a terra. O próximo romance se desloca da Chapada para o Recôncavo e... não conto mais para que a história não me escape.

CONTINENTE Como foi participar da edição virtual da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2020, num encontro com o escritor nigeriano Chigozie Obioma?
ITAMAR VIEIRA JR. Foi a minha primeira Flip e achei louváveis a organização e a repercussão que o evento teve. Além de ter se tornado mais acessível a todos, mesmo os que não podem viajar para Paraty. Eu acompanhei muitas mesas e achei tudo bem-cuidado. Pela primeira vez, tivemos uma Flip com o protagonismo negro e isso serviu para mostrar que escrevemos e vendemos porque os leitores têm todo interesse em nossas histórias.

JÚLIA DE MIRANDA é feminista decolonial, jornalista e ativista.

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