Poucos nomes têm uma relação tão estreita com a rebeldia no Brasil quanto o poeta, roteirista, produtor e diretor de cinema Luiz Carlos Lacerda. Atuando na área desde 1965, Bigode, como é mais conhecido, é autor de filmes como O princípio do prazer (1979) e For all – O trampolim da vitória (1997). Dirigiu também outros sete longas, além de cerca de 30 trabalhos de média e curta duração. Aos 72 anos, é da geração que transitou da militância comunista dos anos 1960 para o desbunde e a revolução sexual da década de 1970.
Nesta entrevista, realizada em João Pessoa durante o festival de cinema Aruanda, Lacerda fala de sua antiga relação com o romancista Lúcio Cardoso (1912-1968), que gerou o novo filme O que seria deste mundo sem paixão?, ainda inédito no circuito comercial. O filme recria um encontro fictício entre os fantasmas de Cardoso e do amigo e poeta Murilo Mendes, que acontece na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
É já sua quinta adaptação de textos de Lúcio Cardoso para o cinema. Lacerda relembra também sua amizade com a atriz Leila Diniz (1945-1972) – sobre quem fez o filme Leila (1987) – e a viagem que fizeram juntos à Ásia. Fala ainda de suas colaborações com Nelson Pereira dos Santos, de sua experiência como professor de cinema em Cuba, nos anos 1990, do papel da crítica na imprensa atual e das vicissitudes do cinema brasileiro.
CONTINENTESeu filme mais recente novamente se baseia numa obra de Lúcio Cardoso. Como surgiu esse interesse pela literatura dele? LUIZ CARLOS LACERDA Eu sempre ouvi falar de Lúcio Cardoso, meu pai gostava da literatura brasileira de modo geral e me apresentou os livros dele. Desde cedo, adolescente, comecei a ler. Quando era menino, meu pai, João Tinoco de Freitas, era amigo do Lúcio e foi produtor de um filme chamado Almas adversas (1948), dirigido por Leo Marten, com argumento e roteiro do Lúcio. Logo depois, meu pai o convidou para escrever o roteiro e dirigir um outro filme, chamado A mulher de longe. Em 1949, foram filmar e Lúcio não conseguiu terminar o filme. Então, esse filme não finalizado se perdeu e, depois de 60 anos, consegui localizar na Cinemateca Brasileira de São Paulo. Do material que estava depositado lá só conseguiram recuperar 20 minutos, mas é lindo. Não foi montado, não tem som, é só imagem, preto e branco. No centenário do Lúcio, em 2012, resolvi fazer uma homenagem a ele contando a história desse filme e fui correr atrás do material. Pesquisando, eu encontrei o diário da filmagem que é uma obra-prima. Eu ia fazer um curta e acabou virando um longa por causa do texto. Tem qualidade literária condizente com a obra ficcional dele. O filme também chama-se A mulher de longe.
CONTINENTEO primeiro longa-metragem, de 1971, já era uma adaptação de Lúcio Cardoso. LUIZ CARLOS LACERDA Sim. Mãos vazias que era adaptação da obra dele, mas eu troquei tudo no final. Leila Diniz era a protagonista. No livro, a personagem se suicida, mas pensei que aquela mulher não podia morrer assim, no auge da revolução comportamental. Aí, ao contrário, mudamos a história e, no final, ela mata tudo que representa o conservadorismo. Meu primeiro curta foi O enfeitiçado, também sobre ele.
CONTINENTENo filme Leila, como foi colocar o seu próprio personagem em cena, interpretado por Diogo Vilela? Foi tudo baseado na amizade com ela? LUIZ CARLOS LACERDA Nos primeiros tratamentos do roteiro, eu não me colocava. Por ser uma grande amiga, era muito difícil. Tinha medo de o filme ter essa minha tristeza com a perda dela e um filme sobre a Leila não poderia ter essa carga. Queria contar a história dela, não a minha. Aí meu psicanalista, Eduardo Mascarenhas, junto com a Glória Peres, os dois leram o roteiro e chegaram à conclusão de que eu não podia não estar no filme. Como é que você expõe uma amiga sua dessa maneira e você não se expõe? É coisa meio delicada, você faz parte desse pacote, você tem de se colocar, até porque a minha trajetória com as drogas e a revolução sexual era diferente da dela e era importante frisar isso, a militância comunista da qual ela nunca fez parte, por exemplo. O filme conta a história dela, mas tem um pouco a minha relação com ela.
CONTINENTEComo foi a ida de vocês para o festival de Adelaide, na Austrália, e depois a volta por Kathmandu e Londres? LUIZ CARLOS LACERDA Quando meu filme Mãos vazias foi convidado para o festival, eu já estava querendo sair fora. Já tinha sido preso alguns anos antes, tinha sido torturado, fiquei muito mal. Eu tinha medo de tirar passaporte. Quando o filme foi selecionado para Adelaide, eu falei: “É a chance de sair”. Mesmo assim, não queriam dar a permissão para a gente viajar. O Brasil parecia Cuba hoje em dia, onde sair é um problema. Para Leila, também não queriam dar. Éramos personas non gratas. Infelizmente, deram a permissão, porque se não tivessem dado, ela não teria morrido.
CONTINENTEOnde vocês se separaram na viagem de volta? LUIZ CARLOS LACERDA A gente se separou em Bangkok. De Adelaide – eu, ela, Arduíno Colasanti e Ana Miranda, atriz do meu filme e mulher do Arduíno na época –, fomos para Kuala Lampur, ficamos uns dias. Depois Bangkok e lá a Leila falou que queria voltar, porque [a filha] Janaína tinha ficado no Brasil. Em Bangkok, a gente chegou a ver um jogo do Santos com um time inglês. Vimos um cartaz na rua e fomos. Lá, estava o Afonsinho, meu amigo, que jogava no Santos. Eu o conhecia da casa do Caetano e Gil. A gente foi ver os jogadores – eu não era ligado em futebol, nem lembrava que Afonso jogava no Santos. Era meio politicamente incorreto gostar de futebol no meio da ditadura e da contracultura, a gente tinha esses preconceitos, e sendo de esquerda também... Fomos ver os jogadores e quando estávamos atravessando a rua para chegar ao hotel, veio o Pelé que reconheceu a Leila. Foi constrangedor. Toda entrevista que a Leila dava perguntavam sobre o Pelé e ela dizia que ele era puxa saco do poder. Mas Pelé ficou de papo com ela sobre fraldas – ele também tinha tido filho havia pouco tempo – e deu ingressos para o jogo. Fomos para o estádio e o Santos ganhou. E na arquibancada, Leila gritava: “Puta que pariu, enfia essa porra no gol, caralho”. [risos]
CONTINENTESó soube do acidente em Londres? LUIZ CARLOS LACERDA Sem a Leila, nós fomos primeiro para Nova Delhi e depois, Kathmandu. Sem saber de nada. Só em Londres eu soube, na casa do Samuca Weiner, filho da Danuza Leão e do Samuel Weiner, para quem eu tinha feito uma carta pedindo para ele hospedar Leila uma noite lá, já que ela ia fazer uma conexão e não tinha dinheiro. Dois dias depois, fui à casa do Samuca e perguntei. “E a Leila?” “Que Leila?” “Ué, a Leila Diniz, ela não tinha grana para nada, eu fiz uma carta.” Ele ficou gelado e falou: “Você não tem notícias?”. Kathmandu não tinha nem jornal na época. “Caiu um avião da Japan Airlines e a Leila estava dentro.” Eu falei: “Não, não”. Eu não chorei, não combinava. Só fui chorar no cinema, dois dias depois vendo Decameron, do Pasolini, que estava proibido no Brasil. Começou a passar um comercial de aviação e aí eu comecei a chorar convulsivamente. Ninguém entendia nada. Eu tive que ir numa loja da Varig procurar jornais brasileiros que demoravam a chegar – já tinham se passado uns 20 dias – para ler a notícia. Eu lia, lia, e não caia a ficha. No filme que fiz tem isso, uma notícia intitulada “Jato explode com Leila Diniz” se repete, se repete. Fiquei em Londres um tempo, vendendo bijuteria que trouxe do Nepal e um português me arranjou um lugar para lavar louça num restaurante, mas eu trabalhei só um dia. Vivia com dificuldade. Estavam lá na época Júlio Bressane, Caetano, Gil e Sandra.
CONTINENTEPor que decidiu voltar ao Brasil? LUIZ CARLOS LACERDA Fui passar uns dias em Paris na casa de Norma Bengell, que estava exilada, e ela disse que Nelson Pereira dos Santos estava na cidade. Nelson me convidou para ir a Parati, para trabalhar num filme dele. Eu não queria, mas estava com saudade do Brasil também. A gente telefonava no verão de um orelhão, o pessoal na praia vinha falar, todo mundo na praia, dava aquela vontade. Aí voltei, fiquei cinco horas preso no aeroporto sendo interrogado. Eles sabiam de tudo, que na Austrália eu tinha dado uma palestra na universidade dizendo que no Brasil tinha uma ditadura. Mas me soltaram e disseram para eu me apresentar uma vez por mês no Ministério da Guerra. Nunca fui. Fui para Parati e fiquei lá escondido. Quando comecei a trabalhar com Nelson, ele me inoculou a paixão pelo cinema, o prazer que ele tem de filmar é tão grande que você fica completamente inoculado mesmo. E a paixão pelo cinema não é só na filmagem, é logo depois, entre um dia e outro o papo é o filme, o filme, o filme. É uma fixação naquilo que está fazendo, uma relação obsessiva. Lúcio Cardoso dizia – e está neste meu filme novo – que só compreende a obra de arte como uma obsessão, um transe. Acho que é isso mesmo. Nelson é isso.
CONTINENTEComo surgiu a ideia de fazer o For all – Trampolim da vitória? LUIZ CARLOS LACERDA Fui ao primeiro festival de cinema de Natal exibir o filme Leila. Gostei tanto das dunas, daquela praia, aquela gente, aquelas comidas. Falei: “Tenho de inventar um filme para vir morar aqui um tempo”. Aí o Ticiano Duarte, que era um intelectual, jornalista, advogado, homem de uns 70 anos na época, começou a me contar a história da base militar norte-americana, nessa tradição nordestina do prazer de contar histórias muito bem-contadas, coisa saborosa, eu adoro isso, uma tradição medieval dos contadores de história. Eu fiquei sabendo a história da base, sabia das bases aéreas na Segunda Guerra, mas não sabia que foi aquela revolução cultural, a invasão de 15 mi homens numa cidade com 45 mil habitantes e tudo o que aconteceu. Mas levei anos atrás de dinheiro, porque era um filme caro. Enquanto isso, eu fui pesquisando. Aí veio o governo Collor.
CONTINENTEPor que você acabou indo para Cuba? LUIZ CARLOS LACERDA García Márquez esteve no Rio e o produtor Ney Sroulevich fez um jantar para ele e convidou cineastas. E nos apresentou Orlando Senna, diretor da Escola Internacional de Cinema de Cuba, que disse que as portas estavam abertas. A Embrafilme tinha sido fechada. Fiquei com medo. Havia passado minha juventude numa ditadura militar, e agora tinha 47 anos e não sabia se queria ir para um lugar que era outra ditadura. Na juventude, fui preso por causa da revolução cubana, da qual fui entusiasta, mas, enfim, as coisas mudaram, eu mudei para um lado e a revolução mudou para o outro. Mas fui lá conhecer e adorei. A escola [em San Antonio de los Baños] é um território internacional, ou seja, a censura não passa da porta. E também os filmes mais críticos que os alunos fazem não passam da porta para fora. Mas num momento em que o Brasil estava um horror, lá tinha 100 alunos, cinema toda hora, uma piscina olímpica, festas no fim de semana, garotada, videoteca com 15 mil títulos de graça. Todos os filmes que Buñuel havia feito no México e eu não tinha visto, pude ver tudo lá. Eu tinha apartamento com três quartos lá dentro. Até hoje tenho essa família cubana espalhada no mundo inteiro: Espanha, Itália, são de todos os cantos. Foi uma experiência maravilhosa. Caiu o Color e voltei ao Brasil. Aí pintou de fazer o For all.
CONTINENTEFoi rodado todo no Nordeste? LUIZ CARLOS LACERDA Rodamos grande parte em Natal e os interiores, no Rio. E uma parte da base, que já não existia mais, a gente fez num galpão dentro do Jardim Botânico, no Rio. Foi tranquilíssimo no Rio Grande do Norte, uma equipe muito grande, foi o único filme que eu fiz com muito dinheiro.
CONTINENTEComo foi filmar o Viva sapato! na sua volta a Cuba? LUIZ CARLOS LACERDA Foi filmado em parte em Cuba, clandestinamente. Tem uma história de Cabrera Infante sobre uma família que manda grana dentro do sapato para o exterior. Ele vai traçando um panorama da cultura cubana, o cara do esporte, do candomblé, os perseguidos, mas é uma comédia política. Achei que daria um filme. Nunca houve liberdade de expressão em Cuba, a não ser no cinema, porque quem garantiu isso foi Alfredo Guevara, que era homossexual e do Comitê Central. Ele era o braço da revolução no movimento estudantil. Quando teve repressão aos homossexuais, Fidel o mandou para Paris representar Cuba na Unesco. Guevara garantiu essa liberdade desde o início. O Instituto Cubano de Cinema (Icaic) sempre teve liberdade. A linha dura ia ao Fidel e dizia que o cinema era contrarrevolucionário. Nunca foi. Tomás Gutiérrez Alea era crítico, como os comunistas deveriam utilizar a autocrítica. O filme dele, Morango e chocolate, foi proibido e aí começou a ser exibido na Escola Internacional de Cinema de Cuba. Os professores chamavam intelectuais cubanos para ver e isso provocou uma discussão, numa sociedade que não tem discussão. O filme acabou sendo liberado. Mas a juventude comunista, como a TFP no Brasil, ia para a porta do cinema gritar: “Fora, é contra a revolução”. Sempre pediram a cabeça do Alfredo Guevara, durante 40 anos que ele atuou no festival de cinema e no Icaic, onde era o presidente.
CONTINENTEQue dificuldades você enfrentou para fazer o filme? LUIZ CARLOS LACERDA Eu cheguei em Cuba com 1 milhão de dólares para gastar lá com técnicos, atores. No momento em que eu cheguei, o Guevara caiu. Porque a linha dura influenciou Fidel, e ele fez um discurso de horas contra o cinema cubano, dizendo que recursos da revolução estavam sendo utilizados contra a revolução. Guevara chamou a imprensa internacional e disse: “Não estou de acordo com o que disse o comandante. Ele não conhece o cinema cubano para estar dizendo isso. Nós somos tão revolucionários quanto o comandante. Nós fizemos a revolução”. Ele foi chutado do Icaic e ficou só como uma figura simbólica do festival. Fizemos manifestos e não adiantou nada. Cheguei nesse momento. Assumiu um cara que era chefe de cinema das Forças Armadas, um stalinista. Para não me dizerem não, alegaram que não havia gente disponível para trabalhar em meu filme. Era mentira, eu havia morado na escola de cinema, falava com amigos que estavam lá loucos para que eu chegasse para trabalhar. Os atores foram proibidos de participar. Peguei uma câmara da escola, alugamos um caro velho e fizemos planos gerais escondidos e montamos com imagens do Brasil. Do exterior do Hotel Nacional de Havana, por exemplo, corta para interior do Hotel Quitandinha, em Petrópolis. A gente recriou Habana Vieja no Rio de Janeiro. Foi muito mais gostoso, porque a gente tinha liberdade, não tinha paranoia. O filme foi inscrito no Festival de Havana, mas não teve jeito, foi proibido em 2003. Houve até espião de Cuba no meu escritório. Aquela Prensa Latina é gente do Ministério de Interior disfarçada de agência de imprensa. Não é de imprensa, é de prensa mesmo [risos]. Nunca mais fui lá. Um ex-aluno foi para o festival e disse: “Trouxe um presentão para você”. Ele comprou no Malecón um DVD pirata do meu filme, o cara vendendo como “una película prohibida hecha em Cuba”, como se fosse filme cubano, com outro nome. Quer dizer, quando era jovem, fui preso por causa da revolução cubana e, já velho, sou proibido de filmar em Cuba e meu filme é vendido clandestinamente. É um bom sinal que estou sempre na contramão, isso para mim é um orgulho.
Assista a trecho do longa Viva sapato!
CONTINENTEO cerceamento à arte foi também abordado no seu filme sobre a prisão da trupe do Living Theater no Brasil. LUIZ CARLOS LACERDA É, fiz um média em 2009 que se chama Diário de Aquário, que é em cima do diário de Judith Malina, do Living Theater, que conta a história da prisão deles em Ouro Preto e a movimentação dos intelectuais. Acho tão importante a repercussão quanto o sequestro do embaixador americano, só que quem conta a história é quem está no poder e a esquerda esteve no poder nas últimas décadas. Ninguém falou desse assunto porque eles acham que os doidões não merecem respeito, respeito é a guerrilha e só. Mas a prisão teve uma repercussão internacional. Pasolini, Bertolucci, Jane Fonda, Harry Belafonte, Alberto Moravia, Sartre, Simone de Beauvoir, Joan Baez, todo mundo mandou telegramas para o ditador Garrastazu Médici protestando. Fiz entrevista com Judith Malina, o marido Julian Beck já tinha morrido. Zé Celso Martinez puxa a sardinha para o lado dele. Foi o Zé que trouxe o grupo ao Brasil, só que, em São Paulo, teve uma briga, dois galos num mesmo galinheiro, Zé Celso e Julian Beck brigaram. E depois aconteceu a prisão. Muita loucura, a polícia montou um flagrante em Ouro Preto.
CONTINENTEComo as mudanças políticas têm afetado a produção cinematográfica no Brasil? LUIZ CARLOS LACERDA Eu que lutei contra a ditadura, fui preso, surfei por todas as ondas, fui comunista, enfrentamos Collor... Quando veio um governo de esquerda que a gente ajudou a eleger, fiquei muito decepcionado logo no começo. Comecei a ver que, em vez do favorecimento de valores brasileiros, eles entregaram o cinema a uma emissora de TV e a decisão sobre o que ia ser filmado no Brasil, junto com as majors norte-americanas. Refiro-me à Columbia e a todas essas empresas distribuidoras. Não combina com governo de esquerda nem com governo democrático. Isso é um cartel. Como é que uma major pega o dinheiro que é um imposto que eles devem – da remessa de lucros – e ela decide onde vai colocar dinheiro e, ainda por cima, decide ser sócia da produção? É um absurdo. É o artigo terceiro da Lei do Audiovisual. Parte dos lucros que têm podem depositar o dinheiro para um filme brasileiro. Antigamente, a Embrafilme pegava o dinheiro e o Ministério da Cultura decidia para onde enviava. Agora, empresas americanas decidem em qual projeto vão botar o dinheiro junto com a Globo Filmes. A gente não tem espaço. Mas a gente resistiu a todas as tempestades políticas, econômicas. A história do cinema brasileiro é a história da resistência, altos e baixos, acompanha a instabilidade política e econômica. O cinema autoral vai continuar, como a pintura e a literatura continuam, como expressão artística, mas cada vez mais difícil. A gente vai continuar, mesmo que daqui a 50 anos, estejamos sozinhos numa ilha deserta com uns malucos discutindo uns filmes feitos aqui.
CONTINENTEO período áureo do cinema foi mesmo a época de diretores como Fellini, Bergman e Antonioni, ou seria saudosismo de quem viveu a época ou até de quem não viveu? LUIZ CARLOS LACERDA Nem é saudosismo, porque você fica pinçando no meio dessa enxurrada de mediocridade que está o planeta do ponto de vista da cultura. Essa ideologia do mercado atropela, cada vez mais, qualquer possibilidade de uma arte mais autoral. O papo da China é o mercado. Um dos problemas do cinema brasileiro hoje em dia também é esse, essa ideologia do mercado, isso acaba com tudo. Ettore Scola, antes de morrer, dizia isso, que não filmava mais porque não tem mais espaço para o cinema autoral.
CONTINENTENo cinema estrangeiro, tem alguma coisa que você admira? LUIZ CARLOS LACERDA Gosto de cinema contemporâneo que tenha narrativa e que tenha dramaturgia. Cinema não linear e experimental não me emociona. Eu gosto de A grande beleza, de Paolo Sorrentino. Gosto muito de alguns filmes coreanos, chineses, os iranianos, apesar de chatos, mas têm uma narrativa. Esses cinemas nacionais que falam de suas culturas e, consequentemente, se tornam universais. Tenho muito curiosidade humana por essas populações. Como vivem, amam, se alimentam. Essa diversidade cultural me interessa muito. E o velho cinema brasileiro, que é o que eu mais gosto mesmo, sem nacionalismo, mas porque fala mais a mim. Quando alguém diz “saúva”, eu sei o que quer dizer [risos]. Adoro o colorido do Almodóvar, ele humaniza a diversidade do comportamento humano. Sempre gosto de Buñuel, que a gente não podia gostar na minha geração. Foi Glauber quem liberou, assim como Caetano liberou Roberto Carlos para a gente poder falar que gostava. Eu gostava escondido, como gostava de Coca-Cola e tomava escondido porque meu pai era comunista. A patrulha ideológica era muito forte. Não podia dizer que gostava do Antonioni ou do Bergman. Tinha de gostar do Neorrealismo e só do Cinema Novo. Não podia gostar do Walter Hugo Khouri, de São Paulo, por exemplo, que era chamado pejorativamente, é claro, de “o Bergman do Anhangabaú” pelo pessoal do Cinema Novo. Mas eu via e achava legal.
CONTINENTENo vale-tudo da arte moderna, como separar o genial da embromação? LUIZ CARLOS LACERDA Ah, aí a gente vê logo quando é um artista ou é um empulhador que não sabe fazer. Uma coisa é fazer um discurso fragmentado com compromisso somente com seu inconsciente. Outra coisa é você não saber contar a história. Aí fica nessa embromação. Tem cineastas assim, em todas as gerações. Um hippie certa vez me disse: “Tem uns que andam à sua própria procura, outros não sabem para onde ir”. A metáfora serve para o cinema. Tem uns que estão pesquisando a linguagem, tudo virou “pesquisa de linguagem”. Uma coisa é isso, outra é não saber o que dizer. E não saber o que dizer virou um estilo, o descompromisso com a própria linguagem, isso aí não dá. Esses filmes em que a câmara vai para o umbigo da garota, volta, e não acontece nada. Não é que tenha que ter ação, mas tem que ter alguma narrativa. Mesmo que seja do inconsciente. O que não dá é a embromação.
CONTINENTEVocê não acha que o uso da câmera na mão, tremendo o tempo todo, às vezes passa do limite? LUIZ CARLOS LACERDA Às vezes é epilepsia [risos], como dizia o velho cineasta Adhemar Gonzaga. Fui assistente de um curta de Jurandyr Noronha sobre Adhemar Gonzaga. Ele sabia que eu era ligado ao Nelson, e como gente de estúdio, tinha implicância com o Cinema Novo. Uma vez, ele me disse: “Sabe qual é o problema do Cinema Novo? É que não tem cadeira para o diretor”. “Como assim?”, eu perguntei. “Não tem cadeira, os caras ficam andando pra lá e pra cá e repetem isso nos filmes, fica aquela câmara que não sabe para onde vai” [risos]. Ele era muito reacionário, mas muito espirituoso. Então tem essa coisa. Uso câmara na mão, mas em determinados momentos em que eu acho que me evoca a necessidade, não só câmara subjetiva, mas o discurso da sequência que é necessário a uma fruição da imagem. Tem de ter critérios. A linguagem do cinema moderno não pode ser a linguagem do cara que não sabe filmar o aniversário do neto.
CONTINENTEComo é que você vê a crítica de cinema hoje em dia nos jornais? LUIZ CARLOS LACERDA Acho que a crítica está querendo tomar o poder, passar para o outro lado do balcão. Hoje em dia, não tem mais espaço para uma boa crítica nos jornais. Um garoto vira repórter de cultura e, de repente, começa a fazer resenha e a colocar bolinha preta, boneco dormindo nos filmes, aprende um linguajar clichê de outros críticos. Tem até quem promova, na mostra de Ouro Preto, uma oficina de crítica. Os meninos que fazem essa oficina serão o júri jovem do Festival de Tiradentes. É importante como espaço de reflexão, mas, por outro lado, é um desserviço. Esses caras vão “se achar”, são doutrinados para um tipo de olhar muito comprometido com o pior do que existe na academia, que é a embromação e a incultura, porque não dá tempo de o cara virar crítico com 18 anos. Ele tem de ver filme, ler livro, ter cultura. Com 18 anos, você está começando a se formar. Na verdade, é muito perigoso. O que acho mais pernicioso é que eles começam a se achar uma geração parecida com o que aconteceu na Nouvelle Vague, críticos vindos do Cahiers du Cinéma que viraram grandes cineastas. Eles acreditam nesse personagem. A crítica é uma máfia que tomou conta das curadorias, dos júris, das comissões de seleção e da área internacional da Ancine. É a mesma máfia internacional que elege equívocos cinematográficos como grandes representantes do cinema moderno. O mesmo cara que foi escolhido hoje vai ser amanhã não sei o quê de outro festival, e convida o amigo que estará na comissão do edital em que ele entra com roteiro e aí ele vira cineasta. É uma relação absolutamente incestuosa. A gente fica surfando no meio da mediocridade e da patrulha.
CONTINENTEQuais os próximos projetos? LUIZ CARLOS LACERDA Agora quero fazer filme sobre a rainha louca, Dona Maria. É um longa, um monólogo. Vou chamar o Paulo César Pereio para fazer o Dom José, o filho que ela queria rei, mas ele morreu de varíola e aí emplacou Dom João VI. Carla Camurati, que fez Carlota Joaquina, essa chachada carnavalesca, está por fora. Retratou a visão dos ingleses. Como Dom João promoveu a abertura dos portos, os ingleses passaram a vender essa imagem que o cara comia coxinha e era um débil mental. A grande revolução cultural brasileira foi esse cara que fez, ele trouxe o Rugendas, o Debret, os botânicos, os livros, a biblioteca nacional, ele não era esse débil mental de jeito nenhum. Quero fazer filme sobre a história da demência dela, que é uma obra do Antônio Cunha, dramaturgo de Florianópolis, que vi no teatro com a Maria do Céu Guerra, essa dama do teatro português, maravilhosa. A gente acha que Dona Maria ela era só quem mandou enforcar Tiradentes, não é bem assim. Quero fazer uma coisa contemporânea. Ela como mendiga, vestida de rainha, com roupa de Carnaval, nas ruas do Paço Imperial em Lisboa.
MARCELO ABREU é jornalista e autor do livro Viva o Grande Líder – Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.