"Eu crio meus próprios mundos"
Um dos artistas participantes da 36ª Bienal de São Paulo, onde expõe uma série de pinturas, o pernambucano Aislan Pankararu analisa o sistema artístico em relação aos indígenas e fala sobre suas obras
TEXTO Júlio Cavani
22 de Setembro de 2025
Foto Beto Figueirôa/Divulgação
Organismos biológicos, a cultura indígena do Sertão e paisagens naturais nordestinas estão entre as principais referências que regem a obra de Aislan Pankararu, um dos artistas participantes da 36ª Bienal de São Paulo. Na exposição internacional paulistana, ele mostra uma série de pinturas produzidas em Salvador, onde vive atualmente, inspiradas pela proximidade com o mar.
Nascido no território Pankararu, no interior de Pernambuco, graduou-se em Medicina e viveu em Brasília, Palmas e São Paulo, onde se afirmou nas artes. Seus trabalhos já foram apresentados em espaços como o Inhotim (Minas Gerais), o Memorial dos Povos Indígenas (Distrito Federal), a galeria Salon 94 (Nova York), o Museu de Arte do Rio (MAR) e a Embaixada Brasileira em Londres (onde participou de residência artística no projeto People’s Palace), além de estar presente no acervo de instituições como o Museu Nacional da República e o Masp, que atualmente também expõe uma de suas pinturas.
No Recife, é possível conhecer ao vivo uma grande instalação de Aislan em um gramado na área externa da Oficina Francisco Brennand. Intitulada Brotos de Ondas Germinantes, essa peça tridimensional fazia parte da exposição Cosmo/Chão, encerrada no dia 7 de setembro, mas continuará incorporada à paisagem do museu. Na Bienal, ele cedeu entrevista ao site da Continente e compartilhou sentimentos sobre suas criações e sobre algumas posturas (por vezes questionáveis) do sistema artístico em relação aos indígenas: “Acho que essa Bienal é histórica porque nos coloca em um lugar de liberdade e de humanidade, para sermos o que quisermos”.
CONTINENTE Na sua interpretação, como suas pinturas estão sintonizadas com a proposta artística desta 36ª Bienal? Na exposição, as legendas das obras não dizem, por exemplo, de onde são os artistas.
AISLAN PANKARARU Fiquei bem feliz com o convite da curadoria. Ao me convidarem, já explicaram de imediato o conceito da Bienal. Me senti parte desse conceito, desse lugar sobre a humanidade. É um caminho que eu venho trabalhando comigo. Eu achei muito leve. Acho que ser artista é isso, carregar essas informações e poder transitar de diversas formas. Me senti humano com esse lugar, sem tanta definição. Eu não estou necessariamente encaixado em um quadrado onde as pessoas têm que me conceituar, onde eu tenha de fazer uma prática artística assim ou assado. Talvez seja para estimular as pessoas a usarem sua capacidade de viajar, de se interessar de verdade. De alguma forma, isso gera um processo de pesquisa no sentido de curiosidade mesmo.
CONTINENTE As pinturas que estão na Bienal possuem relação com alguma forma de vida vegetal ou animal específica ou seriam organismos tão microscópicos que poderiam estar presentes em diferentes reinos? Como você vê esse tipo de separação entre minerais, vegetais e animais ou entre seres vivos e matérias inanimadas?
AISLAN PANKARARU O título de uma das pinturas desta série é “Encontro da terra seca, água doce e água salgada”, que está inteiramente conectado com a Bienal pela ideia de estuário como local de equilíbrio, de encontro entre humanidades e seres de diferentes estilos. Sou médico de formação. Estudei muito o universo celular, da biologia e da imunologia. No microscópio, vi os tecidos da pele, do coração e de todas as partes do corpo. De alguma forma, absorvi isso. Há uma carga que vem de estudos no nível celular, de histologia e tecidos humanos. Essas minhas pinturas são como lâminas histológicas que carregam essa potência de vida vibrando de forma micro e macroscópica. Ao mesmo tempo, eu não decido que vou desenhar uma célula, pois os elementos vão se conectando entre si, vão preenchendo. Sigo três caminhos e possibilidades de criação do meu mundo, que são a minha ancestralidade, o fato de eu ter estudado Medicina e uma ligação forte com o bioma da caatinga. Da caatinga, gosto de trazer referenciais das cores e dos cactos. As bolinhas trazem a ancestralidade das pinturas corporais do povo Pankararu, feitas com barro branco em contraste com a cor da pele, mas não de uma forma escancarada, pois eu crio minha própria linguagem. De uma forma geral, tudo é resultado de contatos, vivências e nostalgias. É um mix dessa junção de informações. Não são representações diretas ou específicas.

CONTINENTE Você acha que sua pintura é essencialmente pankararu ou é uma combinação entre várias culturas?
AISLAN PANKARARU Eu crio meus próprios mundos. Dentro das lógicas acadêmicas, existem articulações, construções e perspectivas de como o indígena tem que se comportar dentro do sistema de arte. Temos que tomar muito cuidado com isso. Essa discussão decolonial e contracolonial nos coloca nessa problemática de determinação. Para ser mais decolonial, por exemplo, eu poderia não usar tinta acrílica, não pintar sobre telas retangulares ou não usar moldura? Isso é muito estereotipado. Isso recai também sobre artistas LGBTQIA+ e até asiáticos, como se devessem trabalhar de uma determinada forma e abordar certas temáticas. Acho que essa Bienal é histórica porque nos coloca em um lugar de liberdade e de humanidade, para sermos o que quisermos. Eu quero fazer arte porque está dentro de mim. No começo da História da Arte, já se faziam pinturas nas pedras e nas cavernas. Enquanto originário do povo Pankararu, eu tenho um cuidado muito ético e radical com minha cultura e ancestralidade. Determinados conceitos sagrados de nossa espiritualidade e cosmovisão às vezes não se encaixam no contexto brasileiro da arte branca. Estamos há muito pouco tempo nesse sistema artístico. Algumas coisas que eu vivo no meu território de origem têm que ficar lá mesmo, não posso trazer tudo para fora. As pessoas não têm maturidade e conhecimento para entender. Não vamos oferecer todas as nossas informações e saberes em uma bandeja.
CONTINENTE O que te faz decidir entre pintar com muitas cores, como nas obras presentes na Bienal, ou com menos variedade cromática, como em trabalhos anteriores?
AISLAN PANKARARU Uma cor vai puxando a outra. Meu trabalho é intuitivo, não tenho muito estudo sobre tintas. Ele vai acontecendo ali no processo. Eu não faço esboços. Já usei pigmentos naturais da terra em pinturas, que mimetizavam uma tradição e uma cultura, mas eles foram se transbordando. Falar do bioma é me reconectar com minha origem do sertão semiárido brasileiro, de minha vivência íntima. É também trazer outra linguagem diante da expectativa e do estereótipo criado para essa região. Semiárido e seca sugerem tudo muito esbranquiçado, tudo muito cinza, sem mata, sem vegetação. Mas tem períodos de chuvas, tem frutos de mandacaru, cactos, bromélias, sementes e flores nativas, vegetações que duram longos períodos de seca. Tem vida. Meu trabalho convida outras possibilidades de vida que estão ali. Tem ainda as pessoas e os povos daquela região. Com a cor, com essa vibração, minhas obras trazem essa outra perspectiva para aquele lugar. É também um fator celebrativo, de levantar memórias boas e alegrias. Essa série de pinturas da Bienal foi feita na Bahia de Todos os Santos, em Salvador, então elas carregam conexões com o lugar, com o mar e com a paisagem local, junto com meus referenciais. Eu fui inconscientemente absorvendo e sendo absorvido pelo contexto das forças da natureza, da brisa marinha e das vidas que existem ali. O título de um deles é “Cura pela Água Salgada”.

CONTINENTE O tamanho de suas instalações tridimensionais muda muito os significados que você já trabalhava na pintura? Essas obras de grandes dimensões representam a natureza de forma figurativamente mais direta em comparação com as pinturas que sugerem organismos microscópicos?
AISLAN PANKARARU Eu acho que não modifica. Eu acho que segue sendo um trabalho que está conectado com o desenho, com a pintura. Quando eu parti para o tridimensional, foi por entender que os meus desenhos estavam pedindo. Estava saltando algo que queria tomar um corpo, que queria tomar um espaço. Nas pinturas, atualmente eu uso telas de linho cru, que me lembram a terra, a pele e um lugar árido. Antes, eu usava papel kraft, que parece sacos de embrulhar pão ou folhas de embalar coisas nas mudanças. Eu não escolhi esse tipo de papel, foi um amigo que se mudou e deixou onde eu morava. Foi o kraft que me trouxe a saudade do lugar de onde eu vivia, do semiárido e da beleza da Caatinga, esse lugar ancestral. Depois do craft, fui descobrindo outros materiais, de degrauzinho em degrauzinho, me aperfeiçoando. Por isso fui para o tridimensional. O trabalho “Brotos de Ondas Germinantes”, que está na Oficina Francisco Brennand, é formado por fios que estão nessas pinturas e pediram mais espaço para eles.
JULIO CAVANI, jornalista, cineasta, curador do festival Animage e autor de livros como Aventuras à Mão Livre (Cepe Editora), biografia do artista José Cláudio