Artes Visuais

Reparação histórica na 36ª Bienal

Com abertura no dia 6 de setembro, pela primeira vez, na Bienal de São Paulo, o número de representantes da África, América Latina e Ásia ultrapassa o de europeus e norte-americanos, em uma programação diversificada no Pavilhão do Ibirapuera

TEXTO Júlio Cavani

09 de Setembro de 2025

Foto Levi Fanan/Divulgação

“Viandar” é um verbo da língua portuguesa pouco usado no Brasil. Ele está implicitamente presente no título da 36ª Bienal de São Paulo, “Nem todo viandante anda estradas”, extraído da poesia Da Calma e do Silêncio, da escritora Conceição Evaristo. A exposição internacional, assim, convida o público a viajar como forma de andar por caminhos fora dos trilhos construídos pelas engenharias e lógicas hegemônicas de ocupação econômica do mundo. A proposta é oferecer uma jornada artística espontânea, orgânica, intuitiva, colorida e vibrante, sem a imposição de conceitualismos, classificações normativas ou geometrias organizacionais.

“Para conjugar a humanidade como verbo, é preciso aprender a ouvir o mundo, ouvir os campos, ouvir as plantas e os animais, ouvir as pessoas, ouvir as vozes das ondas que acariciam as praias, o murmúrio das águas, os ventos que esculpem a areia e os contornos da terra, ouvir o sussurro das rochas, colinas e montanhas, ouvir a miríade de seres que compõem nossos estuários”, sugere o curador da Bienal de 2025, o camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. “Há mundos submersos que só o silêncio da poesia penetra”, diz Conceição no poema que inspira a exposição, que começou no dia 6 de setembro no Parque do Ibirapuera e continua aberta até 11 de janeiro, com entrada grátis, de terça a domingo.

Curador da Bienal de 2025, o camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Foto: João Medeiros/Divulgação

Pernambuco está direta e indiretamente presente na Bienal. Aislan Pankararu é o único artista pernambucano participante na exposição em si (com pinturas sublimes formadas por constelações de elementos biológicos), mas a cultura do estado atravessa todos os andares do pavilhão, como Bonaventure explicou à Continente: “O Manguebit foi fundamental para a conceitualização dessa exposição de várias formas e está presente em todo o espaço. Eu ouvi falar sobre o movimento pela primeira vez quando eu era adolescente em Camarões”, revelou o curador. Ele pegou emprestada dos mangueboys a metáfora do Recife como cidade-estuário onde a vida pulsa no encontro entre as águas doces e salgadas nos manguezais, “que são uma evidência de solidariedade, de coexistência de uma variedade de seres, plantas, animais e micélios”.

Obras do pernambucano Aislan Pankararu. Foto: Levi Fanan/Divulgação

Para além das analogias ecológicas, a maneira como os artistas do Mangue utilizam ferramentas tecnológicas chamou a atenção de Bonaventure. “O Manguebit também deve ser entendido como a possibilidade de criar tecnologias, ciências e artes que não apenas reflitam o cotidiano, mas que também sejam fundamentais para a subversão dos terrores da normatividade. Dessa forma, as tecnologias e ciências que foram criadas para desprivilegiar as massas são reapropriadas e destituídas seus propósitos originais no que podemos chamar de armas de subversão de massa”, escreve o curador no texto principal do catálogo da Bienal, que também cita pernambucanos como Josué de Castro, Solano Trindade, Fred Zeroquatro, Renato L, Chico Science e os moradores da Ilha de Deus, além de trechos de letras das bandas Nação Zumbi e Mundo Livre S/A.

Na expografia, esta Bienal radicaliza na fluidez, com inspiração nos fluxos líquidos dos rios. Há poucas paredes ou subdivisões físicas, a luz natural das janelas é valorizada e a distribuição horizontal do pavilhão também é desconstruída com trabalhos artísticos que se espalham pelo prédio vertical ou diagonalmente do térreo ao terceiro andar. As legendas, títulos, nomes e fichas técnicas nunca estão muito próximos das obras. Raramente são mencionados os países ou cidades onde os artistas nasceram e vivem. Em depoimento cedido à Continente, o cocurador brasileiro Thiago de Paula Souza explica que uma das intenções dessa configuração é evitar “fetichizações” e generalizações nacionais estereotipadas, que poderiam afetar na interpretação dos significados. A Bienal apresenta a Terra como um mundo pré-Pangeia, onde todos fazem parte de um mesmo ecossistema que envolve humanos e outras formas de vida, sem reafirmar nomes de territórios batizados em demarcações colonialistas.

“Esta Bienal não é sobre identidades e suas políticas; não é sobre diversidade nem inclusão; não é sobre migração nem democracia e suas falhas”, avisa Bonaventure no início de seu texto curatorial, em contraponto a tendências de outras exposições e festivais internacionais com debates identitários ou denúncias geopolíticas sobre refugiados e outros temas factuais: “A alegria e a beleza são políticas. É sobre imaginar um mundo onde enfatizamos nossa humanidade”. A própria noção de Brasil é apresentada de forma diluída. “A brasilidade é complexa e não se restringe ao território nacional”, observou o curador na conferência de imprensa, quando lembrou que há pontos do Nordeste geograficamente mais próximos da África do que de cidades do Norte ou do Sul do próprio país. “A palavra amor tem significados diferentes em diferentes línguas”, observou, na entrevista coletiva, a carioca Keyna Eleison, que também integra a equipe curatorial.

É possível perceber identificações com o Mangue Beat em obras de artistas de regiões distantes. O coletivo indiano Metta Pracrutti, por exemplo, é formado por integrantes de um movimento artístico, chamado The Secular Art. Eles apresentam obras com títulos como “À Sombra dos Manguezais” (série de pinturas de Vikrant Bhise) e “Estuário de Sons Minguantes” (escultura de Parag Kashinath Tandel). Em “Catástrofe orquestra #1 (ato i)”, de Antonio Társis (baiano radicado em Londres), fragmentos de carvão produzem sons ao cair sobre o couro de tambores que lembram alfaias de maracatu, em uma instalação que critica apocalipticamente o extrativismo colonial de fósforo e carvão.

Mundos submersos, como os evocados pelas palavras de Conceição Evaristo, podem ser identificados nas videoinstalações de artistas como o tailandês Korakrit Arunanondchai (com coelhos de pelúcia “mortos” ao redor dos telões em um ambiente de devastação) e a franco-camaronesa Josèfa Ntjam (com sua cosmologia eletrônica que funde cavernas e estrelas). A diluição entre fronteiras espaciais estaria ainda representada, por exemplo, na sala imersiva da chinesa Song Dong, que simula um metaverso afetivo infinito a partir de paredes, piso e teto de espelhos atravessados por luminárias e cadeiras do cotidiano doméstico.

À direita, instalação da franco-camaronesa Josèfa Ntjam
Foto: Levi Fanan/Divulgação

Um dos poucos espaços com subdivisão de paredes mais explícita é um núcleo lateral (uma espécie de galeria fechada também por questões de iluminação para proteção das pinturas) no terceiro andar, onde a Bienal intercala jovens em evidência, como o carioca Maxwell Alexandre, com grandes mestres que já foram subvalorizados pelo rótulo da “arte popular” e agora são reconsiderados sem distinção em relação a noções de “cultura erudita” ou “arte contemporânea”. É o caso da marroquina Chaïbia Talal (1929-2004) e da malgaxe Madame Zo (1956-2020) e dos brasileiros Heitor dos Prazeres (1998-1966) e Maria Auxiliadora (1935-1974). Esse gesto de reparação histórica da Bienal é percebido também na quantidade geral de representantes da África, América Latina e Ásia, pela primeira vez maior do que a de europeus e norte-americanos.

Além da exposição no Pavilhão do Ibirapuera, a Bienal também tem uma programação de performances, filmes, debates e shows, que continuará até janeiro. No primeiro fim de semana, houve apresentações de artistas como Mateus Aleluia, Dom Salvador, Manauara Clandestina (um catártico desfile de moda), Marcelo Evelin e a caribenha Léna Blou, coreógrafa e dançarina das ilhas de Guadalupe, que também estará no Recife em setembro em atividades coordenadas pela Oficina Francisco Brennand na Temporada França-Brasil.

JÚLIO CAVANI, jornalista, crítico de arte e autor dos curtas-metragens Deixem Diana em paz e História natural

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