“Não acredito em estados nacionais, eles são ficções”
Curador da 36° Bienal de São Paulo, Bonaventure Soh Bejeng Ndikun fala sobre as inspirações, os pensamentos e conceitos, como o do Manguebeat, por trás da concepção de sua curadoria
TEXTO Julio Cavani
10 de Outubro de 2025
O curador Bonaventure Ndikung esteve no Recife em 2025
Foto Divulgação
Bob Marley é um dos autores citados por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung para fundamentar as ideias propostas pela 36° Bienal de São Paulo, que continua em cartaz até janeiro no Parque do Ibirapuera. O curador defende o fim das separações entre as linguagens artísticas e considera a música, o cinema, a dança, o teatro e a literatura tão importantes para a exposição internacional paulista quanto as artes visuais. Nascido em Camarões, ele também acredita que os nomes dos países dos artistas participantes não são informações relevantes para a interpretação do público sobre as obras apresentadas. "Eu não acredito em estados nacionais", assume: "O sistema das artes não está interessado em arte. O sistema quer que você chegue na exposição e olhe para o que está escrito sobre a arte sem olhar para a arte. Nós recusamos isso.”
Logo na entrada da Bienal, quem entra no pavilhão se depara com um paredão sonoro criado pela artista Gê Viana com inspiração nos sistemas de caixas de som usados para tocar reggae no Maranhão. Letras de canções também estão muito presentes no texto curatorial do catálogo, onde Bonaventure dedica nove páginas ao Mangue Beat com citações a músicas de Chico Science: “Eles falam do próprio movimento como uma evolução musical para modernizar o passado, de como o medo dá origem ao mal e de como o homem coletivo sente a necessidade de lutar”, escreve o curador, parafraseando a faixa “Monólogo ao Pé do Ouvido”, do primeiro disco Nação Zumbi, descoberto por ele quando era um adolescente em Camarões. A programação da mostra inclui também a projeção de filmes como “Recife de Dentro Pra Fora”, da cineasta pernambucana Kátia Mesel, estruturado pelo poema “O Cão Sem Plumas”, de João Cabral de Melo Neto, interpretado musicalmente por Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho.
Logo após a abertura da Bienal, Bonaventure também lançou no Brasil o livro Pidginização como Método Curatorial, publicado em português pela GLAC Edições. O título faz referência à Pidgin, uma língua sem regras rígidas, que combina elementos de vários idiomas africanos e europeus. No âmbito da arte contemporânea, ela seria uma metáfora para uma prática mais livre, intuitiva e poética de elaboração de exposições.
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung mora em Berlim, onde atualmente é diretor da Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo), um dos maiores espaços culturais da capital alemã.
CONTINENTE Como você usaria essa bienal como exemplo da “Pidginização como Método Curatorial”?
BONAVENTURE NDIKUNG É uma boa pergunta. Pidginização é um conceito baseado em uma língua, mas uma língua que emerge através da negociação e da violência dos encontros. Água doce encontrando água salgada. Colonialistas encontrando povos indígenas. Algo emerge da resistência dos povos indígenas contra a violência do colonialismo. Surge algo extremamente bonito, apesar da violência. Esta Bienal, acima de tudo na cenografia, é uma forma de pidginização. As cortinas representam a fluidez dos rios para o mar, uma expressão dos fluxos do encontro. Pidgin é uma língua que está sempre em fluxo. A cultura está sempre em fluxo. Fundamentalistas e extremistas sempre querem fixar algo. Nas esculturas de Moisés Patrício, da série “Brasilidades”, há sempre algo emergindo do cimento, se transformando, não é algo fixo. Assim é a pidginização. A exposição é baseada na pidginização, mas intrínseco a isso estão aspectos de resistência, pois pidgin é a linguagem da resistência. A pidginização como método é uma questão de resistência. É a resistência como beleza. O segundo capítulo da exposição é chamado de “Gramáticas de Insurgências”. Na maior parte da Bienal, o que estamos tentando fazer é mostrar como conjugar a humanidade como um verbo. Na maneira como os trabalhos são apresentados, não há um corte claro entre eles. Tentamos não dividir, exceto em situações tecnicamente muito específicas que exigiam alguma parede. A ideia é fluir sem que você saiba onde uma obra de arte termina e outra começa. Isso é Pidginização.
CONTINENTE A decisão de não revelar os países ou as cidades onde vivem os artistas ou de onde eles vêm está relacionada à Pidginização?
BONAVENTURE NDIKUNG Exatamente. Estados nacionais são como caixas onde se colocam pessoas que vivem muito além disso. Faria mais sentido informar a temperatura média ou a geografia natural dos lugares de onde os artistas vêm. Isso seria mais instigante e informativo do que escrever os nomes dos países. Eu não acredito em estados nacionais, eles são ficções. Por que escrever os nomes dos países dos artistas? O que isso nos ofereceria? Reivindicar a humanidade é, em parte, recusar esses compartimentos. O nome do meu país é “Camarões”. Isso vem do português, por causa de um rio dos camarões. O que isso tem a ver comigo? O que eu tenho a ver com os camarões? Os portugueses chegaram ao Rio Wouri e viram muitos camarões, então disseram que o nome de todo o lugar seria Camarões. “Brasil” é o nome de uma árvore usada como um produto capitalista. Recusar isso é nos relacionarmos de outras formas. Devemos pensar em nós sem diferenciar se nosso lugar é um país do primeiro ou do terceiro mundo. Nossa humanidade não deveria ser condicionada a outras humanidades.
CONTINENTE Você considera que esta Bienal é subversiva?
BONAVENTURE NDIKUNG Afirmar isso cabe aos críticos, não a mim. A recusa faz parte da nossa prática expositiva. O sistema das artes quer que você chegue na exposição e olhe para o que está escrito sobre a arte sem olhar para a arte. O sistema quer que você coloque os nomes dos artistas à frente das obras de arte. O sistema das artes não está interessado em arte. Nós recusamos isso. Queremos engajamento com os trabalhos. Se você precisa de mais informações sobre as obras, você pode buscar considerações sobre elas, mas não na frente delas. Não há paredes brancas nessa exposição. As cores das cortinas e de algumas paredes falam de capítulos e contextos particulares. Colocar os trabalhos no chão é tão importante quanto pendurá-los nas paredes para eles ficarem na frente da sua cara. Se você prestar atenção, quase todos os trabalhos da exposição são performativos. No trabalho de Gê Viana, o sistema de som do Maranhão bate em você com o som das caixas. É como Bob Marley disse: “Uma das coisas boas da música é que quando ela bate, você não sente dor”. Quando você entra nesta exposição, a primeira coisa que você sente é a música batendo em você. Conceição Evaristo diz: “Há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra”. O que estamos tentando fazer é uma multiplicidade de mundos submersos ao longo da exposição.
CONTINENTE Historicamente, o sistema das artes sempre fez diferenciações entre arte erudita, contemporânea, pop e popular, entre outras. Como esta Bienal trabalha essas separações? Alguns artistas que estão na exposição, por exemplo, já foram considerados “arte popular”, mas antes da Bienal já haviam sido incorporados por galerias e museus de “arte contemporânea”.
BONAVENTURE NDIKUNG Não me importa por onde a obra do artista passou antes de chegar à Bienal. Como curador, o que eu quero fazer é olhar para uma obra que interesse a mim. O que me interessa é a pessoa. Por um lado, todas as obras da exposição, para mim, poderiam ser chamadas de arte popular. Por outro lado, estamos rejeitando esse tipo de título. O mais importante para mim é quebrar essa fronteira entre popular e outra coisa qualquer. A necessidade de um artista se expressar não deve estar atrelada a convites para expor em museus. O trabalho de Heitor dos Prazeres já foi chamado, há muito tempo atrás, de popular, “naïf” ou ingênuo. Na verdade, a pessoa que chama um trabalho artístico de “naïf” é que é uma pessoa “naïf”. Heitor dos Prazeres está mostrando a vida do seu povo em um contexto onde outras pessoas preferiam estar mostrando o sofrimento do povo preto. Ele foi convidado para mostrar suas obras na primeira Bienal em 1951. O que ele fez? Apresentou suas pinturas, mas também fez um álbum musical. O que estamos fazendo hoje é uma referência a ele. Ele fez uma composição chamada “Samba da Bienal”. Em 2025, ainda estão me perguntando sobre a conexão entre som e artes visuais.
CONTINENTE Outras bienais já apresentaram denúncias sociais ou imagens de guerra e violência. Por que isso não está presente nesta bienal?
BONAVENTURE NDIKUNG Existe um fetiche no mundo da arte de mostrar a dor dos outros. Eu não quero lucrar com isso. O que nos interessa, é mostrar a resistência do povo, através de diferentes formas. O discurso de Ken Saro-Wiwa que eu li na ativação da Forensic Architecture foi de resistência. O que Ken Saro-Wiwa diz é: “Você pode me matar, mas eu continuo a fluir”. É isso o que eu quero mostrar. As pessoas estão permanecendo em pé. Na instalação de Noor Abed, as pessoas estão dançando na terra palestina. Elas estão mostrando que existem nesta terra. Por que mostrar a morte de crianças? Sim, elas e as mulheres estão sendo mortas todos os dias, mas queremos mostrar a resistência delas. Mostrar a recusa em deixar que sua alegria seja roubada é uma resistência poderosa. A insistência na alegria, a insistência na beleza e a insistência na humanidade são também uma grande parte da resistência.
CONTINENTE Qual foi o seu primeiro contato com o movimento Mangue Beat, que é uma das principais inspirações para esta Bienal?
BONAVENTURE NDIKUNG No começo dos anos 1990, em 1994. Eu venho de uma região de Camarões chamada Bamenda, onde se fala inglês, que já foi parte da Nigéria. Quando a Alemanha perdeu a Primeira Guerra Mundial, Camarões foi dividido, com uma parte para os franceses e outra parte para os britânicos. Por causa dessa conexão, todas as antenas parabólicas que nós tínhamos estavam voltadas mais para a Nigéria do que para a região francesa de Camarões. Nós ouvíamos estações de rádio de Akwa Ibom, que transmitiam músicas de todo o mundo. Foi meu primeiro contato não só com Chico Science & Nação Zumbi, mas também com Mundo Livre S/A. Lembro que aquilo realmente chamou minha atenção. Eu me interessei e descobri mais tarde que havia todo um movimento. Não lembro se a primeira canção que eu ouvi foi “Samba Makossa”, mas ela chamou minha atenção por trazer juntos o “samba” e a “makossa”. Achei que isso expandiu nossas mentes (“mind blowing”). Então, quando eu recebi o convite para organizar esta Bienal no Brasil, eu pensei: Uau, esse deve ser um caminho para celebrar o Mangue. No manifesto do Mangue Beat, eles falam sobre a parabólica que capta coisas de todo o mundo e foi assim mesmo que eu captei coisas do outro lado do mundo.
CONTINENTE Então sua experiência pessoal com o Manguebeat é um exemplo do que o movimento estava propondo como forma de comunicação entre diferentes partes do mundo?
BONAVENTURE NDIKUNG Totalmente. Além de promover a comunicação entre diferentes partes do mundo, uma coisa que eu acho interessante é que o Recife sempre foi uma das capitais da tecnologia da informação no Brasil, assunto sobre o qual eu conversei com HD Mabuse quando visitei a cidade neste ano. Bem antes disso, os manguezais sempre foram conectados com o mundo porque os navios que trouxeram pessoas ao Brasil usaram portos e também rios para ir ao interior do país. Além disso, muitas pessoas que escaparam das plantações se instalaram nos mangues para se esconder. A metáfora da conexão com o mundo não está apenas na tecnologia, mas também na tecnologia humana.
CONTINENTE Depois de ouvir as músicas no rádio, como você teve acesso aos discos, ao manifesto e a mais informações sobre o movimento Mangue, já que a internet ainda não era algo acessível naquela época?
BONAVENTURE NDIKUNG Primeiramente, para ouvirmos as músicas mais vezes, nós colocamos a fita K7 no gravador e gravamos as transmissões de rádio. Em 1997, quando eu vim à Europa, comecei minha própria pesquisa em lojas e locadoras de CDs e discos de vinil. Só mais tarde eu li o manifesto, muito depois.
CONTINENTE A programação da Bienal de São Paulo vai além da exposição de artes visuais e também inclui shows musicais, espetáculos, publicação de textos e projeções de cinema. Como você enxerga a separação entre as artes, já que os artistas dessas outras linguagens artísticas não estão incluídos no catálogo da Bienal e nem na lista oficial de participantes da exposição?
BONAVENTURE NDIKUNG Em primeiro lugar, eu não acredito na separação entre artes. Para mim, a exposição não é formada apenas por artes visuais. O show de Mateus Aleluia na programação também é parte da exposição. Conceição Evaristo também é parte da exposição. Ela é, na verdade, a primeira artista da exposição porque as palavras dela nos deram o título da exposição. Em segundo lugar, eu acredito que todas as artes se pertencem juntas. Eu posso ver algo melhor se eu escuto esse algo. Eu posso escutar uma coisa melhor se eu sentir o cheiro dessa coisa. Toda essa separação entre programação, programa público e exposição é uma ficção do sistema. Quando eu faço exposições, eu penso holisticamente. Eu gostaria de fazer mais exposições onde você seja capaz não só de ver as obras de arte, mas também de ouvir de olhos fechados, do início ao fim. Ou visitar a exposição com os olhos e ouvidos fechados, sentindo apenas os cheiros. Seria interessante percorrer todo o pavilhão assim, desde a obra de Precious Okoyomon no térreo até o trabalho de Alberto Pitta no terceiro andar. Para mim, idealisticamente, trazer um músico como Dom Salvador à Bienal é importante para o conceito da exposição. É fundamental. A exposição vem da música, do ritmo e da poesia. Poesia é ritmo. As partes-chave dessa exposição são Manguebeat.
JULIO CAVANI, jornalista, curador do festival Animage e diretor dos curtas “História Natural” e “Deixem Diana em Paz”