Entrevista

“A gente está sempre fazendo a si próprio”

O ator Paulo César Pereio, celebrado em novo documentário do uruguaio Guillermo Planel ('10 centavos para o número da besta'), fala sobre sua trajetória rebelde no cinema nacional

TEXTO Marcelo Abreu

28 de Dezembro de 2017

O ator Paulo Cesar Pereio

O ator Paulo Cesar Pereio

Foto Carlos Cecconello/Folhapress

Aos 77 anos de idade, o ator Paulo César Pereio caminha para ser um dos mais atuantes na história do cinema brasileiro, colecionando participações em mais de 80 filmes. Apesar de ter feito novelas de televisão e amar o teatro, foi no cinema que se tornou conhecido nacionalmente pelos seus papéis irônicos que marcaram a produção nacional desde os anos 1960, em trabalhos como Toda nudez será castigada, A dama do lotação, Se segura, malandro e A lira do delírio. Nesta entrevista, realizada em João Pessoa, onde o ator esteve no início deste mês para participar da 12ª edição do festival de cinema Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, Pereio fala sobre o documentário recente feito em sua homenagem, 10 centavos para o número da besta, do uruguaio Guillermo Planel, sobre a persistência do politicamente correto – que hoje torna-se claramente neoconservadorismo –, seus problemas com drogas e prisões, e seus projetos no teatro.

CONTINENTE O que achou do filme feito por Guillermo Planel sobre sua trajetória?
PAULO CÉSAR PEREIO Eu não me coloco com relação aos trabalhos que faço, mas posso me referir às circunstâncias. O Guillermo é uma pessoa que tem a origem em Montevidéu e veio para o Brasil menino, mais ou menos na data em que saí da fronteira com a Argentina onde nasci. Eu costumo brincar, para elogiar os argentinos, já que no Brasil todo mundo esculhamba com eles e eu sou meio na contramão. Costumo dizer que nasci do lado errado da fronteira. Isso é uma provocação. Com 12 anos saí de Alegrete, fui para Porto Alegre e aí comecei esse processo de civilização. Imagine, nos anos 1940, como era aquela região. Quando menino, assisti a um encontro do Getúlio Vargas com Perón em Uruguaiana, na Puente de Los Libres. Minha encrenca é que eu não tinha uma bandeirinha.



CONTINENTE No documentário você demonstra um grande conhecimento sobre cinema.
PAULO CÉSAR PEREIO É minha experiência empírica de participar do cinema brasileiro, é sobre a história do cinema brasileiro que eu atravessei. No primeiro filme com Ruy Guerra – Os fuzis – eu estou menino, com 20 anos, e agora tenho 77. São 50 e tantos anos durante os quais eu convivi com esse cinema, efetivamente.

CONTINENTE Já pensou em escrever suas memórias no cinema?
PAULO CÉSAR PEREIO Não, eu acho que a maneira de me manifestar é essa que o filme aí me proporcionou. É a minha imagem, minhas descrições, minha maneira de contar a história que não é literária, é performática, dramática.

CONTINENTE Você costuma dizer que se faz cinema brasileiro até fora do Brasil. Quem anda fazendo bom cinema brasileiro lá fora?
PAULO CÉSAR PEREIO Eu falo que a chanchada é a verdadeira escola brasileira. A imitação da imitação da imitação. Já existe essa marca estética no cinema mundial. O Mel Brooks fazia isso. É um dos meus ídolos do humor e ele é muito engraçado. Tem filmes com a estética da chanchada brasileira. Mel Brooks se inspirou muito no cinema brasileiro, O jovem Frankenstein, aquelas coisas. O cinema brasileiro, de alguma maneira, mexeu com essa história. O cinema é uma indústria internacional. Subitamente, um filme iraniano começa a influenciar o que os americanos fazem em Tribeca.

CONTINENTE Essas ondas de imitação influenciam também o cinema chamado de arte?
PAULO CÉSAR PEREIO O próprio cinema já é a sétima arte. Eu não distanciaria tanto os blockbusters – tipo Liga da Justiça – dos outros; é um business. Tem um ator que é muito bom e participa do filme comercial e não se pode dizer que ele não esteja botando em campo a arte dramática. Isso não invalida certos artistas que colaboram com um filme desses.

CONTINENTE Você costuma frequentar cinema?
PAULO CÉSAR PEREIO Eu tinha esse hábito quando morava em Porto Alegre. Tinha sessões às três da tarde, às 7h30 da noite e às 9h30. Eu cheguei a criar um cineclube para ver os filmes que eu não tinha visto, em contato direto com a cinemateca.

CONTINENTE Mas em São Paulo, onde mora, ainda vai ao cinema?
PAULO CÉSAR PEREIO Vou. Se bem que o cinema está dentro da casa da gente. Na TV de tela grande. Ir ao cinema e depois jantar num bom lugar é um programa que quase não se faz mais.

CONTINENTE Que tem visto em cinema estrangeiro que lhe agrada.
PAULO CÉSAR PEREIO Gosto do Sam Peckinpah, do Woody Allen. O universo das ofertas de entretenimento é tão amplo, que seria difícil me referir a alguma coisa. Tarantino é ótimo, mas é quase uma autorreferência, ele é louco por cinema e faz autorreferência nos filmes. Esse último dele (Os oito odiados) eu não gostei não, eu achei um saco, mas tudo bem.

CONTINENTE Que memórias tem de antigas novelas que fez na TV, como Simplesmente Maria e A gordinha?
PAULO CÉSAR PEREIO Era legal, mas eu não conseguia ser um ator efetivo da televisão. Naquele tempo, eu nem assistia, não tinha TV em casa, fica uma coisa distante, estrangeira.

CONTINENTE Como foi que você se tornou locutor da campanha Cadeia da Legalidade durante a crise que resultou na posse do presidente João Goulart, em 1961?
PAULO CÉSAR PEREIO A gente fez um teatrinho, 130 lugares, pequeno para a época porque os outros tinham 700, mil lugares. Esse espaço transformou-se em ponto de convergência do pessoal de rádio. E o Leonel Brizola tinha relação boa com a gente. Um dia, encomendou um hino, e eu fiz. Sou o autor do Hino da legalidade. Fiz a música, sou muito musical. Uma poetisa nossa amiga – Nara de Lemos – fez a letra.

CONTINENTE Você se candidatou a vereador em São Paulo, em 2011. Pensa em se candidatar de novo?
PAULO CÉSAR PEREIO Eu nunca tive essa coisa de ser político, mas acontece que, quando acabou o PCB, eu procurei o PSB para me filiar. Tinha eleição para vereador e me convidaram. Tinha um irmão que gostava muito de fazer campanha e chamei ele. Mas é preciso 200 mil votos para se eleger em São Paulo. Esse território já está ocupado pelos caras pálidas. Mas foi divertido. Em seguida, me convidaram para deputado, mas eu não quis mais.

CONTINENTE Como vê a permanência do politicamente correto, que hoje aponta para o acirramento do conservadorismo?
PAULO CÉSAR PEREIO Acho que é uma censura, é um código de censura não muito claro. Na política não tem correção. Morei na Itália algum tempo e, lá, tem o partido fascista. Quem tem tendência mostra a cara. Como Cazuza dizia, “mostra tua cara”. Você vai corrigir uma tendência política? Nem tudo que acontece é bom, nada é ótimo. Politicamente correto é uma forma de censura tão perversa quanto a própria censura. Não tem leis, não tem regras. O que é politicamente incorreto? Sob o turbante, tem afrodescendentes dizendo que é uma apropriação da parte dos ocidentais de uma marca africana. Isso é tão preconceituoso quanto qualquer conceito. Procedimento muito semelhante ao racismo.

CONTINENTE O que acha dos linchamentos instantâneos nas redes sociais?
PAULO CÉSAR PEREIO Eu não participo desse negócio. Eu não estou perdendo o bonde. Você perde o avião, mas a passagem continua guardada.

CONTINENTE Apesar de ser da fronteira, curiosamente os seus papéis no cinema são bem brasileiros, no sentido da malandragem carioca.
PAULO CÉSAR PEREIO Sim, claro, é nosso universo trágico. O Nelson Rodrigues, que era o grande trágico carioca, era pernambucano.

CONTINENTE Se tivesse que escolher um papel entre todos os que desempenhou no cinema, qual escolheria?
PAULO CÉSAR PEREIO Não sei, é difícil escolher, porque a gente está sempre fazendo a si próprio, é um personagem, sempre.

CONTINENTE Apesar dos roteiros, você sempre coloca parte de si no personagem?
PAULO CÉSAR PEREIO É, os atores fazem isso, tem uma colaboração forte do performer com a dramaturgia. Woody Allen faz sempre o mesmo papel e é engraçado, há muitos atores que são autores. É um crédito que se dá ao dramaturgo.

CONTINENTE Você fala com muito carinho de diretores como Hugo Carvana e Nelson Pereira dos Santos.
PAULO CÉSAR PEREIO Eu adoro os meus parceiros e os atores que sabem contracenar. Trabalhar com Carvana, Joel Barcelos, Otávio Augusto é estimulante, é uma espécie de jogo.

CONTINENTE Que lembrança tem de suas participações nas pornochanchadas?
PAULO CÉSAR PEREIO Acho que a chanchada é a grande escola do cinema brasileiro. A chamada pornochanchada era um cinema erótico que davam esse nome porque tem mercado. Se bota “pornô”, já lota o cinema, mas não era pornô, não tinha pentelho. Era um cinema meio guerrilheiro.

CONTINENTE Por que você decidiu morar em São Paulo?
PAULO CÉSAR PEREIO Porque estou perto do teatro, das produções, gosto mais de conviver com o teatro do que com a indústria (do cinema). Teatro tem essa coisa que matam o tempo todo, mas que não morre nunca. Eu agora, por exemplo, vou trabalhar com Zé Celso e moro a meia quadra do Teatro Oficina. Teatro tem essa coisa que é local – na regra das unidades (tempo, lugar e ação) –, o lugar é unitário, você tem de estar naquele espaço.

CONTINENTE Isso é mais forte em São Paulo do que no Rio de Janeiro?
PAULO CÉSAR PEREIO Acho que São Paulo tem muito mais teatro, tem muito mais projetos ligados ao espetáculo. É verdade que um espetáculo que faz muito sucesso em São Paulo vai também para o Rio e vice-versa, mas na elaboração, nas ideias, São Paulo é mais local.

CONTINENTE Como é o projeto com Zé Celso?
PAULO CÉSAR PEREIO Há 50 anos, fiz um personagem que foi marcante no Roda viva do Chico Buarque – na época, com Marieta Severo, depois Marília Pera, Antônio Pedro, Flávio Santiago. Quando Zé Celso decidiu fazer de novo, ligou me chamando. Acho que o Chico só queria permitir se fosse com essa gente. Vamos estrear na saison, no próximo ano. Zé Celso já está lotando o Teatro Oficina com O rei da vela. Mas o Roda viva foi mais sucesso do que O rei da vela. É trabalho para mais de um ano. Gosto muito de teatro. É tão bom como exercício de arte dramática que pode ser aproveitado em outros veículos. É difícil ter formação só para o cinema e fazer teatro.

CONTINENTE Sendo muito conhecido pela sua voz, você já fez também dublagem para desenho animado?
PAULO CÉSAR PEREIO Muito pouco, fiz experimentalmente, faço mais comerciais. É menor o trabalho e é mais bem-remunerado. E tem a marca pessoal. Até pouco tempo, não havia crédito para dubladores. Nos EUA, o burrinho do Shrek foi feito por Eddie Murphy, são atores top. Mas aí já é o cinemão de Hollywood.

CONTINENTE Na sua estreia no cinema com Os fuzis, seu personagem acabou, por ironia do destino, sendo dublado por Cecil Thiré. Você se chateou na época?
PAULO CÉSAR PEREIO Não, o filme não tem essa dramaturgia toda. É o que chamam de epos, do grego. É filme de ação. Eu não estou nem aí. O diretor quer chamar o sujeito que ele confia e usa minha imagem, tudo bem.

CONTINENTE Como foi o episódio em que você teria atirado um carro do alto de um viaduto?
PAULO CÉSAR PEREIO Eu era casado com Cissa Guimarães e ela tinha uma Brasília. Eu fui ao Morro Guararapes para descolar drogas, cocaína e maconha, e naquele tempo não tinha uma sustentação na entrada do túnel. Eu não freei direito e o carro desceu, e caiu na boca do Túnel Rebouças. O Jaguar colocou o nome de “para-Pereio” na obra. O Tércio Lins e Silva, que era meu chapa, secretário de segurança do Brizola, disse que, como não havia vítima, podia se desarmar o flagrante. E ficou por isso mesmo.

CONTINENTE Você chegou a ser preso por uso de drogas?
PAULO CÉSAR PEREIO Olha, em metade dos estados americanos já não é mais ilegal. Todo mundo já sabe que maconha não é uma droga pesada. Tabaco e anfetamina, que vende-se na farmácia, são muito piores. Teve uma rebelião no Carandiru e chamaram um velho agente penitenciário. Ele falou: “Faltou maconha”. Quer dizer, faz parte da panaceia prisional a maconha, senão, os caras se revoltam. Eu levava umas duras por causa de drogas, mas não houve boletim de ocorrência, não está registrado.

CONTINENTE
Como foi a prisão depois do sequestro do embaixador norte-americano, em 1969?
PAULO CÉSAR PEREIO Foi uns sete ou oito dias. Na época, eu era amigo do Fernando Gabeira, tínhamos rachado um apartamento e os caras me deram um aperto, mas tudo bem. Sacode. Foi antes da prisão do Gabeira. Ele não entregou ninguém, mas todo mundo que era das circunstâncias foi investigado. Eles pensavam que eu tinha alguma informação, mas eu não tinha. Foi na Operação Bandeirantes, mas são episódios que acontecem.

CONTINENTE Que lembranças você tem do apartamento onde foi rodado o filme Eu te amo, de Arnaldo Jabor, e a cama que ficou célebre porque você contracenou com Sônia Braga?
PAULO CÉSAR PEREIO Era o fodário. O apartamento era do Walter Clark e ele tinha vendido pro Cat Stevens. Walter tinha a cobertura no penúltimo andar. Nesse apartamento vazio, fizeram um cenário. Fica na Baronesa de Poconé, que é uma rua que sobe da Lagoa Rodrigo de Freitas e tem prédio no final da rua, lá em cima. O Walter tinha muito dinheiro e, depois, ele perdeu tudo. Em cima tinha piscina. Aquela visão do Rio é de lá mesmo, bem bonito, bem legal. Tadinho do Walter, boa pessoa, romântico, ele torrou todo o dinheiro que ganhou.

CONTINENTE E a quantas anda o projeto do outro documentário sobre você intitulado Pereio te odeio?
PAULO CÉSAR PEREIO Eu não falo disso porque foi feito marginalmente a mim. O Alan Sieberman resolveu fazer a minha vida, mas demorou tanto… Deve ter já mais de 10 horas de material, não sei o que foi, se quiseram fazer ficção. Não é assunto meu, eu era objeto da coisa, não o sujeito, eu não sei de nada.

CONTINENTE Se tivesse que se definir em uma frase, qual seria?
PAULO CÉSAR PEREIO Semana que vem eu me organizo. Essa é a minha frase lapidar. Next week I’ll get organized.


MARCELO ABREU é jornalista e autor do livro Viva o Grande Líder – Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.

Publicidade

veja também

“Arte demanda um completo sacrifício”

"Não há tema brasileiro mais ilustre que o cangaço"

“São estratégias de sobrevivência esses caminhos da arte”