Entrevista

"O povo precisa do Carnaval pra mostrar que existe"

Com exibição, no Mimo, nesta sexta-feira (12), "O Homem do Fraque Verde", documentário sobre O Homem da Meia-Noite, Petrônio Lorena fala sobre sua trajetória e questões essenciais do audiovisual brasileiro

11 de Setembro de 2025

Foto Divulgação

Quando ainda fazia a faculdade de Radialismo, em 1993, o cineasta pernambucano Petrônio Lorena foi curtir o carnaval de Olinda e presenciou, pela primeira vez, o Clube Carnavalesco de Alegoria e Crítica O Homem da Meia-Noite. Ele ficou encantado com o que viu. Chegou a morar na Rua do Bonsucesso entre 2009 e 2010 e assistiu de camarote ao desfile do calunga. 

Anos depois, na casa de um amigo, estava novamente assistindo ao bloco e o seu parceiro de escrita Ricardo Brandão deu a letra: “Cara, isso dá um filme”. “Só precisou ele dizer isso”, recorda-se Petrônio. Eles procuraram integrantes da agremiação e iniciaram a pesquisa, inclusive com “livros sobre bonecos gigantes, sobre a cultura do boneco gigante desde a Europa em procissões católicas até se adaptar ao carnaval pernambucano.” Dessa pesquisa surgiu o título do documentário O Homem do Fraque Verde, que será exibido na sexta-feira (12/9), no Mimo, às 20h, no Teatro Fernando Santa Cruz.

O projeto foi aprovado em editais públicos, mas a produção do filme não contava com dois grandes obstáculos: a pandemia e o governo de extrema-direita de Bolsonaro. “O dinheiro foi bloqueado e só saiu por conta de uma judicialização, que levou quatro anos”. Depois de superados esses entraves, o longa-metragem é realizado entre os anos de 2022 e 2025 e utiliza-se tanto da técnica do cinema direto, sem interferência no fato que acontece, quanto do modo de documentário expositivo, com depoimentos dos personagens envolvidos. 

Cada modo de filmagem encontrou o seu desafio. O primeiro foi filmar o Homem da Meia-Noite do sábado para o domingo de carnaval. Foram necessárias cinco equipes de filmagem e um drone na rua, enfrentando o empurra-empurra da multidão. E o segundo foi deixar as pessoas à vontade para falarem com sinceridade sobre um tema tão íntimo como é a religiosidade.

Outro elemento fundamental presente em O Homem do Fraque Verde é a cultura popular na festa do Carnaval com as suas múltiplas expressões, principalmente através da música do frevo de rua. “O carro chefe é o frevo. Precisamos licenciar hinos do Homem da Meia-Noite, do Ceroula de Olinda, do Vassourinhas e outros”. Mas o diretor também tomou a decisão de colocar outros ritmos na trilha sonora, como um Ijexá que compôs com Magrão, do grupo Cascabulho, um foxtrote seu chamado “Dezoito grades de cerveja”, que virou um frevo de bloco, e temas livres do compositor Henrique Albino e da percussionista Josy Caldas. 

A realização do documentário mudou a percepção de Petrônio Lorena com relação ao Carnaval. O documentarista passou a compreender melhor o vínculo entre ser um clube carnavalesco e, ao mesmo tempo, possuir implicações religiosas com a figura do calunga. “E a impressão que eu tenho hoje é de que o Carnaval não é um espaço apenas para o hedonismo e a festa descontrolada. O Carnaval é um espaço de afirmação de identidade de grupos sociais que utilizam essa festa para se mostrarem, que utilizam essa festa para se afirmarem”.

Além de O Homem do Fraque Verde, Petrônio Lorena exibiu outros filmes durante o mês de setembro, como Santa Helena em Os Phantasmas da Botija (2004), O Som da Luz do Trovão (2005), Calma Monga, Calma! (2011) e O Gigantesco Ímã (2014) no Cinema do Museu da Fundação Joaquim Nabuco e no Cinema São Luiz em Recife, nos dias 6 e 7 de setembro.

O seu novo longa-metragem documentário O Homem do Fraque Verde (2025), sobre o bloco carnavalesco O Homem da Meia Noite, fez sua estreia no dia 9 de setembro na abertura da Mostra Sesc de Cinema, no Sesc Garanhuns. O filme vai ser exibido também na Mostra Sesc de Cinema em novembro, em seis unidades do Sesc em Pernambuco nas cidades de Petrolina, Triunfo, Recife, Jaboatão, Caruaru e Belo Jardim. As atividades de setembro são encerradas no dia 17 com a exibição e debate por videochamada do filme O Silêncio da Noite é que Tem Sido Testemunha das Minhas Amarguras (2016), na Biblioteca Brasileira de Nova Iorque.

No meio dessa maratona de mostras e debates, Petrônio Lorena parou para conversar com a Continente e revisitou a sua trajetória e influências cinematográficas. “O autor se faz no lugar onde o autor vive”. Analisou as suas referências geográficas e a inspiração da cultura popular em sua obra. “A cultura popular é pura imaginação”. Falou sobre o seu olhar de músico em relação ao cinema, o hibridismo de novas tecnologias e o ato político em seus filmes. “O povo precisa do Carnaval para mostrar que existe, que ele não é invisível e isso é uma atitude política”. E discorreu a respeito de seus projetos futuros, sobre o presente com O Homem do Fraque Verde e da fronteira entre documentário e ficção. “Realidade é aquilo que a gente quer acreditar que é real”.

CONTINENTE Quais foram as suas primeiras experiências cinematográficas que te marcaram pra toda vida?
PETRÔNIO LORENA Eu acho que a primeira experiência é como espectador mesmo. Então, uma coisa que me marcou foi quando eu assisti ao filme de Pasolini, Pier Paolo Pasolini, que é Decameron. Eu tinha 13 anos, ou 12. E aí eu comecei a prestar atenção nesse tipo de filme que tocava naqueles assuntos que são mais sensíveis à sociedade, à formação da nossa sociedade ocidental. Um filme que mostrava numa linguagem mais solta, numa câmera na mão, parecendo que ele estava trabalhando muito com não atores. Então aquilo me chamou muita atenção sem saber ainda o que era. E eu só fui rever esse filme uns dez anos depois ou mais. Eu morava em Serra Talhada, que eu sou natural de lá. Eu sempre ia em dois cinemas que tem lá, Cine Plaza e Cine Arte. O que passava lá não era muito fora da curva, eram filmes pop dos momentos. Eram filmes dos Trapalhões ou filme de heróis da Marvel. Mas, uma vez, vi o cartaz de Eles Não Usam Black Tie. Eu tinha uns dez anos de idade e quis saber o que queria dizer isso. E aí foi uma grande frustração, porque eu não consegui, o filme saiu de cartaz. Só consegui ver esse filme também uns dez anos depois. Ainda tinha a rebarba do Mazzaropi dos anos 1980, e, quando criança, minha mãe me levava. Então, é outra imagem que ficou também na cabeça, de ver filme de Mazzaropi e achar curioso, achar engraçado. Depois fui percebendo, “Pôxa, isso é muito tosco”. E, ao mesmo tempo, perguntava: como é que o filme é tão mal feito tecnicamente e, ao mesmo tempo, faz sucesso? Então todas essas questões foram me sacudindo.

CONTINENTE Quais as suas principais influências cinematográficas e referências estéticas que consegue enxergar nos seus filmes hoje?
PETRÔNIO LORENA Olha, eu gosto da informalidade de Pasolini com a câmera, da fotografia informal que parece como uma coisa da vida mesmo. Filma como se estivesse vivendo, ou seja, sem fazer muito esforço pra existir. Eu gosto dessa linguagem que serve pra ficção e que serve pro documentário. Eu gosto do humor dos filmes de Emir Kusturica, que é um eslavo, foi da antiga Iugoslávia, e ele tem filmes que abordam muito a história do país dele, todas as transformações geopolíticas, os desmembramentos que a Iugoslávia sofreu pra se transformar em outros países e tal. Então, esse compromisso com a identidade e, ao mesmo tempo, um requinte de humor, isso me chama a atenção no trabalho de Emir Kusturica. Gosto também do jeito de filmar de David Lynch, embora eu acho que ele é um surrealista muito limpo, tudo brilha, as cores são muito definidas, sabe? Já Luís Buñuel é um pouco mais sujo, mas tem um surrealismo elegante com temas pesadíssimos. Eu gosto de ‘desilinhar’ temas pesados.

São referências, mas eu tento não me basear muito no que os caras fizeram, porque o meu trabalho é muito espontâneo. Eu tento ver o tema e ver a abordagem. O tema me sugere a abordagem. Primeiro vem o tema. E aí a forma de abordar é o tema que diz. Então, se o tema pede um enquadramento mais formal, se o tema pede uma câmera mais solta, um som mais barulhento, eu sigo esse caminho. No filme O Gigantesco Ímã, que o personagem já é um inventor, eu e Tiago Scorza, que é um parceiro de muitos filmes, resolvemos trabalhar na invenção de linguagens. Dupla exposição, filmar de trás para frente, filmar com negativo de som e não com negativo de filme, riscar o filme. Em Calma Monga, calma!, que é um filme noir meio pastelão, eu assisti muito cinema noir, David Lynch e Cidadão Kane, de Orson Welles. Eu pude me sentir influenciado, porque Calma Monga, calma! foi rodado todo, quase tudo, de noite na rua. Já o filme O Silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras, cujo tema é a poesia, cujo local é o sertão do Nordeste de Pernambuco, não poderia ser influenciado por outras coisas, a não ser pela própria região. E aí eu encontrei referências em cineastas brasileiros como Geraldo Sarno, que fez Cantadores de Viola. Porque a minha viagem é a pesquisa de linguagem, eu sou um diretor de pesquisa de linguagem. E nisso fui procurar na arte visual como trabalhar com projeções, como utilizar a projeção dentro da poesia para estimular o poeta.

CONTINENTE Você nasceu na cidade sertaneja de Serra Talhada, mas vive no Recife já há muito tempo. Como essas referências geográficas permeiam as suas ideias e produções audiovisuais? Você percebe essa influência na sua obra?
PETRÔNIO LORENA Muito, porque tudo aquilo que a gente faz tem a ver com a história de vida. As experiências acumuladas e a minha experiência vivendo em Serra Talhada foi riquíssima. Eu morei lá até os 18 anos e eu já saí de lá com tesão pelo cinema e pela música, e pelas artes em geral. Só que aí eu encontro no cinema uma forma livre de fazer, uma forma mais demorada, como se fosse uma escultura. E aí eu fico polindo, vou lixando, vou colocando uma peça, outra, até achar que está pronto. Fazer cinema é fazer uma escultura eletrônica com pessoas e com histórias vivas. E essas histórias vivas, tudo que eu filmei tem a ver com experiências e com conteúdo aprendido na época que eu morava em Serra Talhada e naturalmente no Recife. Só que o Recife é o passo para o mundo, né? Então, as experiências do Recife, as pessoas que eu encontro aqui, de uma maneira direta ou indiretamente influenciam o resultado das coisas que eu faço, são pessoas do mundo, de vários lugares. Mas eu morei no Rio de Janeiro também, numa época. E lá aprendi muito a técnica de fazer as coisas. No Rio, aprendi muito a técnica de fazer os trabalhos artísticos, sobretudo com cinema, mas o conteúdo e o tempero do trabalho eu tenho aqui. O autor se faz no lugar onde o autor vive, que no meu caso é Recife, Serra Talhada e Pernambuco, de modo geral.

CONTINENTE Seus filmes possuem elementos da cultura popular e ícones do interior do estado. O seu processo de criação e efetiva produção é consciente com relação a esses elementos culturais?
PETRÔNIO LORENA É, porque eu fui criado muito próximo da cultura popular. Fui criado próximo da cultura da zona rural, do São João do interior de Pernambuco dos anos 1970 e 1980. Eu era bem criança nos anos 1970, mas vivi essa época e a gente fazia o verdadeiro teatro popular. Então fui ator, sem saber que era ator, aos 10 anos de idade, no São João da minha cidade. E aquilo ali a gente trabalhava com várias correntes artísticas. Desde decorar a rua, até aprender a dançar, até ensaiar o personagem do casamento da quadrilha matuta. Então eram várias artes, tinha músicos ao vivo, era tudo misturado ali. Quando ia para a zona rural via aboio, via as histórias mentirosas dos mais velhos para dar medo nas crianças, histórias de terror da zona rural, e aquilo ali era um conteúdo de muita imaginação que eu convivi dentro da cultura popular, porque a cultura popular é pura imaginação. E é uma criação coletiva, e eu acho que o cinema é o espaço da criação coletiva, da cultura popular também, não só de nós fazedores da arte cinematográfica e técnicos.

Quando você aborda um tema, quando você está mobilizando recursos de várias fontes para realizar um filme, você está fazendo um ato político, um ato de responsabilidade social. Se eu estou falando de um tema que é comum a muitas pessoas, eu estou tendo uma responsabilidade social com esse tema, e com as pessoas que confiaram em mim. Por isso que eu trabalho com a cultura popular, porque é algo verdadeiro dentro de mim. E eu acho que o cinema tem essa função também. Você pode fazer vários tipos de cinema, mas o meu tem essa função de ser popular. Eu não quero ser muito hermético, porque a minha linguagem já é um pouco hermética, então o meu tema precisa ser popular, é como se fosse para criar um equilíbrio. O equilíbrio na arte é esse, ter uma linguagem experimental e ter um tema popular.

CONTINENTE Você também é músico e formou a banda Petrônio e As Criaturas, já com alguns álbuns gravados. O fato de ser músico intensifica o teu olhar sobre a música e a sonoplastia em geral nas suas obras cinematográficas?
PETRÔNIO LORENA Sim, porque antes de fazer o curso de Radialismo na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), eu trabalhei em rádio lá em Serra Talhada. Então, ao mesmo tempo, eu trabalhava em rádio e tinha um vizinho que tocava violão muito bem. Eu aprendi a tocar vendo ele tocar. Nunca tive um professor de verdade. Aprendi testando, errando e acertando, e vendo as pessoas ao meu redor, porque eu morava perto de vários artistas, vários músicos sobretudo. E aí já na rádio já mexia com a sonoplastia. Aí, quando eu fui fazer o curso de Radialismo, eu ia fazer radiodramas, compunha algumas coisas que gravava toscamente. Depois fui compor para programa de TV e para filme.

Eu entrei muito no trabalho da trilha musical para cinema, que tem muita liberdade, não tem uma regra para mim, não há uma regra fixa. O que dá o toque é o tempo que você precisa para colocar aquela cena, a função da cena, ou a função da música na cena. Mas dependendo da cena, pode ser vários ritmos diferentes, pode ser até um barulho de um carro de boi, de uma chaleira. Não precisa ser música realmente. Eu sou muito rigoroso com o ritmo, sabe? Eu filmo para editar, eu não filmo para deixar gorduras. Quando eu estou filmando alguma coisa é porque eu quero colocar dentro do filme. Se você perde o ritmo, pode perder o espectador. E o trabalho com a música é influenciado pelo cinema também. Minhas músicas são longas, como se criassem paisagens visuais. São músicas psicodélicas no sentido de conduzir a uma paisagem visual, conduzir ao que a gente chama de uma viagem mental, a viagem mental dos sentimentos. A música que eu faço tende a levar a viagem mental dos sentimentos.

CONTINENTE Vivemos um período de radicalismos políticos e mudanças sociais aceleradas por novos meios de comunicação. Isso te influencia de alguma forma? Essas questões aparecem na sua produção cinematográfica?
PETRÔNIO LORENA Eu não me preocupo com tecnologia, não. Eu me preocupo com o tema, o tema me dá a abordagem tecnológica também. Porque eu filmo para tela grande. Então, não posso pegar qualquer câmera, porque depende muito da definição que eu queira. Se vou filmar só Carnaval, posso ter aquela sujeira de um celular filmando. Mas se o tema tem uma dramaticidade de um personagem, tem os sentimentos de um personagem, tenho que filmar isso com uma certa clareza. Então, dependendo do tema, as duas coisas podem caber, como é o caso do Homem do Fraque Verde agora que tem imagens de Super 8 e tem algumas imagens que foram rodadas no celular também. E como o tema é Carnaval, tudo isso coube, a sujeira do Super 8, aquela coisa meio granulada, na escuridão, que de vez em quando aparece uma luz revelando a imagem. Esse hibridismo, esse experimentalismo caracteriza os trabalhos que eu faço, principalmente nos documentários. Mas eu preciso ter uma definição boa na tela grande.

No caso desse filme (O Homem do Fraque Verde), a sua força política está na persistência das várias décadas de existência do bloco. Porque isso é também uma atitude de resistência cultural. Então todos os filmes que eu faço tem resistência cultural, que é representada pela cultura popular. E O Homem do Fraque Verde é essa coisa de você dizer assim, eu não sou invisível, somos da periferia, fazemos arte na periferia, como a maioria dos clubes carnavalescos surgiram assim. E é uma forma de dizer assim, “Pôxa, a gente passou o ano todo explorado, mas aqui no Carnaval a gente não vai ficar invisível”. Nós somos um clube de carnaval, nós somos um dançarino de frevo, um músico de orquestra. O povo precisa do Carnaval para mostrar que existe, que ele não é invisível e isso é uma atitude política.

CONTINENTE O mês de setembro de 2025 traz uma série de mostras e debates em Pernambuco, no Brasil e até em Nova York sobre a sua produção ao longo de sua carreira, inclusive com a estreia de O Homem do Fraque Verde. Como é pra você ver e analisar junto com o público a sua trajetória audiovisual?
PETRÔNIO LORENA Todo artista precisa desse contato com o público. E é muito bom poder rever os meus filmes e conversar com as pessoas. Acho que a gente precisa aceitar que Pernambuco é protagonista do cinema mundial. E quem tem que aceitar isso são os próprios pernambucanos mesmo. A nossa função aqui é mostrar para todo mundo que existe o cinema São Luiz, que existe o Cinema do Museu, que nossos filmes estão lá. E que a gente precisa olhar para dentro. Porque quando o filme americano chega ao Brasil, chega com 200 salas. E, quando a gente consegue 10 salas, é um sacrifício muito grande. Então, as pessoas precisam saber disso e precisam entender os valores das suas histórias, as histórias do seu povo. Então, para mim, é uma felicidade poder encontrar, inclusive pessoas mais novas, que estão tentando fazer cinema, e poder aprender também com a experiência delas, ou ver as histórias que elas estão contando.

Passei uma época sem ver curta, só vendo longas. Mas agora, indo inclusive nesses festivais, acho que é necessário que a gente possa ter uma política melhor de exibição dos nossos filmes. Porque a gente tem edital para produzir mais do que para exibir. E eu acho que todas as alternativas, como essas mostras informais como o Chama Curtas, o Encontro do Cinema Pernambucano no Bar Super 8, as exibições que existem no Bar Belém são muito importantes, mas eu também acho que a gente deveria ter esse espaço melhor dentro dos cinemas. Mas como não há, a gente ocupa os bares. E agora que a gente está ocupando os cinemas com mostras como essa minha que vai acontecer do Chama Curtas é importante para formar público, que é o que nós precisamos mais, porque a concorrência com o cinema estrangeiro é muito forte, é muito desleal. Então, a gente está lutando por mercado e está lutando também para levar algum conteúdo diferente do que a maioria das pessoas está acostumada a consumir dentro de um cinema de shopping, por exemplo.

CONTINENTE Teóricos do cinema afirmam que toda ficção é um registro documental do seu tempo e todo documentário possui elementos narrativos e recursos técnicos ficcionais. Como funciona essa fronteira entre ficção e documentário na sua obra?
PETRÔNIO LORENA Eu volto para aquela coisa do tema e da abordagem. Eu agora, fazendo O Homem do Fraque Verde, senti que colocar a ficção de uma animação caberia dentro do meu tema. E, embora a linguagem-mãe seja de documentário, a ficção está sempre dentro dos filmes que eu faço. No Sapato 36, cujo tema é futebol de várzea, a ficção que eu coloquei foi um jogo de botão imaginário entre o Ibis e uma outra seleção que eram os melhores do mundo. Os jogadores dos anos 1910, dos anos 1930, dos anos 1980, do século passado, tudo misturado no meu filme no jogo de botão. Em Som da Luz do Trovão, que é um curta que eu fiz, tem uma ficção feita com playmobil e com carrinho de flandre, aqueles que a gente compra em feira. Então, eu peguei brinquedos para criar um momento ficcional.

E todo filme tem isso. Eu não consigo fazer um documentário só documentário, do mesmo jeito que eu jamais conseguiria fazer uma ficção só da imaginação. Ela tem que partir da realidade. E tem que partir não só de fatos reais, mas com interpretações que estão dentro mesmo do ator. Coisa que o ator possa sentir, possa ser verdade pra ele. Então, essa busca, entre aspas, pela verdade dentro de um documentário, ela precisa estar... essa sinceridade, melhor dizendo do que falar em verdade, a sinceridade de um documentário precisa ser percebida quando você assiste ficção nele também. Os meus próximos projetos que serão de ficção terão momentos em que a linguagem documental vai estar presente. E eu acho que isso só enriquece a obra.

CONTINENTE O seu novo filme O Homem do Fraque Verde aborda um dos maiores personagens do carnaval brasileiro. Como surgiu a ideia de filmar O Homem da Meia Noite? Você é folião?
PETRÔNIO LORENA Eu não sou um folião responsável, assíduo. Mas quando eu fazia faculdade no ano de 1993, 1994, no século passado, fui curtir o Carnaval de Olinda e vi pela primeira vez O Homem da Meia Noite. E fiquei encantado com aquilo. Outros anos eu voltei para ver e não imaginava que ia fazer um filme sobre o tema. E aí quando foi lá para o ano de 2009, 2010, eu estava morando ali na rua do Bom Sucesso. E assisti alguns anos seguidos o desfile do Homem da Meia Noite. Eu saí de lá, mas um amigo foi morar bem próximo da sede. E continuei frequentando a casa dele para ver o desfile do Calunga. Com o tempo, um outro amigo de faculdade que faz roteiro comigo, Ricardo Brandão, que também é um apaixonado pelo Homem da Meia Noite, disse, “Cara, isso dá um filme”. Só precisou ele dizer isso. E aí eu não tive naquele momento condição de fazer essa proposta, porque eu estava envolvido com outros filmes, mas, pouco antes da pandemia, tomei a iniciativa.

E aí chamei Ricardo, que tinha dado a ideia. Olha, vamos fazer uma pesquisa aí, um pré-roteiro? Bora. E fizemos isso, procuramos pessoas do clube e procuramos a história que havia, livros sobre bonecos gigantes, sobre a cultura do boneco gigante desde a Europa em procissões católicas até se adaptar ao carnaval pernambucano. E pensamos, “É, vamos fazer um documentário”. Só que aí tiveram alguns problemas, como a pandemia, o governo de Bolsonaro, que a gente teve um edital que foi contemplado, mas o dinheiro foi bloqueado e só saiu por conta de uma judicialização, que levou quatro anos. E os recursos saíram paralelamente. Eu fui buscar outros recursos e juntando os recursos todos veio um programa de TV que vai ser exibido pela TV Pernambuco em algum momento neste ano, chama O Gigante do Dente de Ouro. E aí deu também um longa-metragem, mas o longa-metragem era a peça principal, inicial. Então o filme surgiu assim, muito aos poucos. Conseguimos filmar o Carnaval de 2023 em todas as interações com os personagens, no ano de 2022 ainda, envolvida na rebarba da pandemia, até 2024, com pesquisa de material de acervo, inclusive com uma litogravura feita em 1711, cuja foto está no acervo do Itaú Cultural. Também foram pesquisados acervos da Fundação Joaquim Nabuco, do Museu da Cidade do Recife, da TV Viva, do Arquivo Histórico de Olinda e arquivos pessoais dos protagonistas do filme. Tudo isso forma o caldeirão do Homem do Fraque Verde, cujo tema vai além do carnaval.

CONTINENTE Como foi o desafio de filmar O Homem da Meia Noite em meio a milhares de foliões, turistas, centenas de policiais militares, dezenas de bombeiros, médicos, enfermeiros e equipes de TV?
PETRÔNIO LORENA É quase como um cego no tiroteio. É você assumir aquilo que você chama de erro, cinematograficamente falando, é você assumir que pode ter muitos, porque não dá pra controlar o empurra-empurra. Não dá pra controlar as pessoas caindo por cima de você. E a gente colocou cinco equipes na rua, com cerca de uns sete seguranças, ou seis seguranças. E utilizamos duas câmeras de maior qualidade, 4K, FS7 da Sony, e colocamos duas GoPros pra ficar em situações no meio da galera, e um drone. E isso foi muito pouco. Mas era o que a gente dispunha de recursos. Foi um desafio colocar essa quantidade de equipes e equipamentos na rua. Porque além dos seguranças, tinha também produtores, assistentes, assistentes de direção, assistentes de câmera, logger, duas pessoas pra fazer som e gente pra ficar ligado nos equipamentos. Enfim, cara, muita coisa, uma equipe grande pra caber tudo em um dia.

Então nesse filme tem tanto a técnica do cinema direto, que é aquela que você não interfere muito no fato, como também tem a conversa com os personagens, porque esse tema tem muita intimidade pra muitas pessoas, as pessoas falam de um lugar muito íntimo. Foi necessário que as pessoas pudessem se abrir mesmo, se soltar mesmo, falando de uma forma muito clara, mostrando qual sentimento ela tem. Por que o Homem da Meia-Noite é tão importante? Por que transcende o Carnaval? Como a gente fala do Homem da Meia-Noite ligando à miscigenação religiosa? Todos aqueles que passaram pelo filme podem falar, por experiência própria, sobre o fato de, por exemplo, ter nascido católico, mas estar ligado à umbanda e ao candomblé. E como isso se relaciona com a existência do Homem da Meia-Noite. Então o filme tem tanto o lado da rua, da loucura do Carnaval, da câmera bêbada, da câmera trôpega, como também tem a sinceridade de um tema tão íntimo como é a religiosidade. A forma como esse tema dialoga com um boneco gigante que para muitos no início foi criado apenas para brincar o carnaval.

CONTINENTE Durante a pesquisa e a efetiva produção do filme O Homem do Fraque Verde, o que te chamou mais a atenção sobre esse personagem do Homem da Meia Noite? Essa descoberta desse personagem chegou a te inspirar na trilha sonora do filme?
PETRÔNIO LORENA Cem por cento. Só que aí eu me vi limitado em um aspecto, porque eu não sou músico de frevo. Músico de frevo é uma categoria muito específica. É possível dizer que o frevo é a música popular brasileira mais difícil de se tocar. Também por ser instrumental, por utilizar muito contra-tempo, ser muito rápida, fusa e semifusa, como a gente aprende na linguagem da cifra. O carro-chefe é o frevo. Precisamos licenciar hinos do Homem da Meia-Noite, do Ceroula de Olinda, do Vassourinhas e outros. Os frevos são tocados pela Orquestra do Maestro Carlos, que é a Orquestra do Homem da Meia-Noite. Temos também a participação de Henrique Albino, com temas de frevo muito arrojados, temas muito ousados, e eu decidi não colocar apenas temas conhecidos, que são aqueles que a gente vê no filme tocado na rua. Mas certas situações, certas passagens de imagens, certas aberturas de cenas e algumas sequências precisavam de outro tipo de ritmo. Aí temos quatro temas de Henrique Albino, dois temas da percussionista Josy Caldas e dois temas meus: um foxtrote chamado "Dezoito Grades de Cerveja" que virou frevo de bloco e outra composição minha com Magrão do Cascabulho que virou um Ijexá. Esse filme tem uma trilha diversificada, híbrida, com muita sonoplastia e também contou com os parceiros Guga Rocha e Rama Om.

A minha impressão sobre o Homem da Meia-Noite antes de fazer o filme é que eu não entendia essa relação com o Calunga. Eu não entendia essa mistura entre ser um clube carnavalesco dedicado à folia e ter uma implicação de miscigenação religiosa predominantemente afro que é a figura do calunga. E a impressão que eu tenho hoje é de que o Carnaval não é um espaço apenas para o hedonismo e a festa descontrolada. O Carnaval é um espaço de afirmação de identidade de grupos sociais que utilizam essa festa para se mostrarem, que utilizam essa festa para se afirmarem, uma vez que passam o ano... a maioria das pessoas passa o ano todo servindo aos interesses de outros no trabalho. Então, o Carnaval é uma decisão, é uma escolha pessoal de que você vai se autorrepresentar. E essa autorrepresentação pode ser numa fantasia tradicional de carnaval ou pode ser fazendo parte de um clube carnavalesco, de uma troça, de um bloco, tocando numa orquestra, dançando. É uma sensação de pertencimento de povo. Como se fosse no interesse de chamar a atenção pra dizer que olhem para a gente, pra que a política pública possa olhar para o povo, não só o turista. O Homem da Meia-Noite representa pra mim esse outro sentido do Carnaval, que é um sentido de afirmação popular. As pessoas daquele bairro dizendo nós temos uma identidade cultural e essa identidade é um clube carnavalesco.

CONTINENTE O que você diria sobre o seu novo filme ao espectador que ficou curioso e quer assistir ao Homem do Fraque Verde?
PETRÔNIO LORENA Vá ao cinema assistir ao Homem do Fraque Verde pra entender porque a gente não quer ser invisível. A gente não quer ser invisível. É um storyline, podia dizer assim, sabe? E tem outra coisa também que um personagem fala no filme, Iza do Amparo. Ela fala um negócio muito interessante, porque ela fica ali na janela, o Carnaval passa pela janela dela, e ela falando sobre calunga. Ela diz uma coisa que é muito interessante, que é "O que é real, o que é a realidade? Realidade é aquilo que a gente quer acreditar que é real". Então eu deixo essas duas provocações: realidade é aquilo que a gente quer acreditar que é real e a nossa necessidade de viver o Carnaval porque a gente não quer ser invisível.

CONTINENTE O Brasil em que estamos vivendo neste ano de 2025 te inspira a novas produções? Quais os teus projetos futuros?
PETRÔNIO LORENA Eu estou fazendo a transição do documentário para a ficção, porque toda a linguagem que eu experimentei no documentário eu quero agora colocar em filmes de ficção. Já existem dois roteiros. O primeiro tá totalmente pronto, o segundo falta finalizar alguns diálogos. Já existe uma pesquisa para o terceiro filme de longa-metragem de ficção e eu já iniciei também a pesquisa para o quarto filme. Aí eu tô fazendo essa transição do documentário para a ficção e tenho esses quatro projetos dos quais totalmente pronto pra rodar e com o roteiro pronto tem um. E esse que vai ser, eu não queria me alongar muito nele agora. Mas o tema é Minérios do Brasil. São nossas riquezas, sobretudo na Paraíba, porque a Paraíba é como Minas Gerais em termos de riqueza mineral. Tem uma quantidade ainda inexplorada e imensa de minérios raros. Isso envolve muita exploração, envolve muita máfia internacional, envolve vários tipos de polícia, envolve política e envolve igreja. Então esse é o território onde eu estou pisando para o próximo filme que vai se chamar Nó Cego.

SERGIO DANTAS, jornalista, produtor cultural e documentarista.

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