Entrevista

“É um projeto literário que fala muito sobre a liberdade”

A escritora Eliana Alves Cruz, que acaba de ganhar o Prêmio Jabuti pelo seu livro de contos ‘A vestida’, conversa sobre sua produção literária e seu compromisso com a escrita e o país

TEXTO Yuri Euzébio

05 de Dezembro de 2022

Foto Chico Cerchiaro/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

De maneira discreta, quase de mansinho, a carioca Eliana Alves Cruz estreou na literatura com o visceral Água de barrela (2015), romance vencedor do Prêmio Oliveira Silveira oferecido por uma então progressista Fundação Cultural Palmares. Neste livro, ela, nascida em 1966, já se apresenta como uma contundente voz na literatura nacional, com uma narrativa histórica e familiar acerca das marcas indeléveis da escravidão na história de sua família e na do Brasil. 

Sete anos depois, tempo em que publicou O crime do Cais do Valongo (Malê, 2018) e Nada digo de ti que em ti não veja (Pallas, 2020), a escritora publica o romance Solitária (Companhia das Letras, 2022), sua primeira obra situada momento atual. Nesse intervalo, a escritora, jornalista e roteirista carioca também publicou os infantis A copa frondosa da árvore (Nandyala, 2019) e O desenho do mundo (Bom de Ler, 2022), estando presente ainda em mais de 15 antologias de contos e poesias.  

Além da sua atuação prolífica no mercado literário, Eliana é muito presente e mantém uma postura crítica nas redes sociais. Em uma série de tweets, em julho deste ano, por exemplo, ao comentar a respeito do podcast de sucesso A mulher da casa abandonada, ela pontuou: “Escrevi quatro romances que falam sobre cativeiro x liberdade. E aí me sugerem ouvir um podcast sobre uma velha condenada nos EUA por escravizar uma mulher, mas vive soltinha num casarão horroroso da nossa horrorosa elite. Minhas histórias libertam. Esta aprisiona. Não ouvirei jamais”.  

Ainda na rede social, ao comentar sobre seus processos criativos, ela relembrou o percurso dolorido de pesquisa para a escrita do seu primeiro romance. “Pra escrever o Água de barrela, chorei uma semana olhando pra um inventário de escravocratas com meus antepassados arrolados como objetos precificados. Neste filme de terror só mergulho pra encontrar saídas. Jamais pra colecionar desespero.” E é assim que ela vai, com passos firmes, construindo um dos mais interessantes e potentes projetos literários nacionais. 

Em meio aos vários compromissos que assume, Eliana encontrou um espaço para conversar com a Continente por videochamada. Foram dois momentos: uma terça-feira de agosto e uma sexta de setembro deste ano, a partir da sala de sua casa no Rio de Janeiro. Nesta entrevista fluente e bem-encadeada, a escritora comentou sobre sua vida, família, infância, trajetória na literatura e no jornalismo, seu sonho de ser atleta, suas referências literárias e seu processo de criação.

No final, Eliana nos trouxe novidades: que o livro Solitária vai virar uma série televisiva e que está em gestação o seu novo romance. Meses depois dessas conversas, no dia 24 de novembro, ficamos sabendo ainda que seu livro A vestida: contos (Malê, 2022) foi vencedor do Prêmio Jabuti, como melhor livro de conto deste ano.



Imagem: Reprodução


CONTINENTE Para início de conversa: pelo que mostram os seus livros, principalmente o Água de barrela (2015), você teve uma infância marcada pelas histórias de alguns dos seus familiares. Como essa infância se desenvolveu nessa escritora e jornalista e nas histórias que você conta como romancista?
ELIANA ALVES CRUZ Pois então, eu acho que o que mais marcou a minha infância foi a convivência com pessoas muito mais velhas do que eu. Eu convivia com os meus quatro avós, com a minha bisavó, várias tias-avós. Aqui, no Rio, e na Bahia. Eu tinha essa noção de uma família antiga, uma sensação interessante de linhagem, de que eu era fruto de uma família grande e de uma família velha. Porque eu era pequenininha e olhava minha bisavó e todos os meus avós. Convivi desde sempre com essas histórias que eles contavam. Muita coisa vem dessa convivência, vem de escutar as histórias todas, de entender a vida como longevidade. O que, se você parar pra pensar, não é muito comum para as pessoas negras no Brasil, por conta das questões sociais todas que encurtam a nossa expectativa de vida, ou pelo menos, até muito recentemente encurtavam. Eu acho mesmo que esse é o traço mais marcante, porque eu fui criada na casa da minha avó materna e ali vivi com uma família grande, rodeada por muitos tios e tias. Então, enfim, eu acho que esse é o traço principal.

CONTINENTE Você agora tem sete livros lançados, quatro romances, dois infantis e um de contos. Sem contar as antologias. Todos são histórias de libertação, atravessados pela escravidão, pelo racismo e pela resistência negra, sempre com muita delicadeza e afeto, ainda que sejam temas muito duros. Você detalha a beleza da convivência, as estratégias de resistência, como se não precisasse alterar a voz pra passar seu recado firme. Como você define que se dedicará a um tema nos seus romances?
ELIANA ALVES CRUZ Ah, isso aí... Cada livro é um livro. Cada história nasce de um jeito diferente. Eu acho que já até falei isso em outras ocasiões, mas o Água de barrela é o primeiro, porque foi o livro que deu origem à série toda e ele fala de uma história familiar. Mas, para remontar essa história familiar, eu precisei mergulhar na história do próprio país. Acabei aprendendo muita coisa e reaprendendo outras tantas, descobrindo outras. E isso originou outras histórias, como O crime do Cais do Valongo e o Nada digo de ti que em ti não veja. E aí, o que aconteceu? Eu comecei a desenhar finalmente um projeto literário que fala das questões das sobrevidas da escravidão e dessas coisas todas, mas não necessariamente de uma forma tão literal. Eu acho que, nos livros históricos, não tem muita saída, eu acabo tendo que falar disso de uma forma mais explícita, mas, em contos, isso aparece de uma forma mais sutil, nos próprios livros infantis é abordado por um outro lado. Eu acho que é um projeto literário que investiga e fala muito sobre a liberdade; afinal de contas, o que é ser livre? O que isso significa no Brasil? O que essa palavra significa para o Brasil? Como conquistar essa liberdade? Esse questionamento está em todas as obras e, principalmente, acho que é uma reflexão sobre o nosso presente, mesmo que fale do passado, eu sou uma autora testemunha do meu tempo. Todos os meus livros, mesmo os históricos, dialogam muito com o tempo presente, com o que estamos vivendo agora.

CONTINENTE Como você já disse, em Água de barrela você explora e desenvolve histórias acerca da sua própria família e, desde ali, você faz dos seus personagens arquétipos dessa estrutura de sujeição dos negros e pobres pelas classes mais abastadas. Acredita que, na literatura nacional, ainda faltem mais exemplos desse tipo de escrita como arma de combate às mazelas sociais? 
ELIANA ALVES CRUZ Eu acho que sim, né? Ainda falta muita coisa pra gente falar. O Brasil é tão diverso, tão enorme, é um continente. São realidades tão diferentes, realidades regionais, enfim, territórios muito diversos. Falta muita coisa pra gente falar, pra gente contar, ficcionalizar. E é um assunto que não vai se esgotar nem tão cedo, se é que vai se esgotar. Porque a gente tem uma sociedade que vai sofisticando formas de exclusão, vai apenas mudando a roupagem, o tempo, a forma, ela vai se apropriando de determinados símbolos, nos mudando, invisibilizando. Enfim, são sempre vozes que vão precisar reafirmar muita coisa. Acho que não existe nenhum direito adquirido no mundo que seja perene, que a gente não precise reafirmar e lutar por eles a cada minuto. Não que a literatura tenha necessariamente esta missão única e exclusivamente, porque a gente pode escrever pra qualquer coisa. Por simples entretenimento, para diversão, por muitos objetivos. Mas, na minha opinião, isso é um desperdício. Eu me sinto assim... Como disse o Paulo Gustavo: “Rir também é revolucionário”. Acho que têm muitas formas de falar sobre a mesma coisa e isso só vai acontecer, realmente, com a pluralidade de artistas, com a pluralidade de pessoas escrevendo, contando e ficcionalizando novas histórias.



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CONTINENTE Tanto os seus romances históricos quanto agora no Solitária há personagens escravizados ou subjugados no trabalho que acabam criando um vínculo afetivo com as famílias que os mantém em cárcere. Você acredita que essa foi uma ferramenta que colaborou com a perpetuação e a manutenção da escravidão no Brasil?
ELIANA ALVES CRUZ Sim, mas é claro! É a famosa chantagem emocional, a síndrome de Estocolmo. É o falso afeto, uma forma de manipulação muito perversa e um pouco sórdida, porque isso cria uma certa ilusão com as pessoas que trabalham nesses lugares. Porque essas pessoas, em sua maioria, são muito carentes de quase tudo, não apenas de recursos materiais, mas de afeto mesmo. São, às vezes, famílias muito esfaceladas, muito dilaceradas por uma série de questões. Quando essa pessoa se vê em um seio familiar minimamente organizado, ou que, na cabeça dela, é minimamente organizado e ela sente que, de alguma forma, ela tem um lugar ali naquela casa ou algum protagonismo, ainda que falso, porque existe uma forma de você prender alguém, que é falando assim “Só você sabe fazer isso”, “Só você cozinha desse jeito”, “O seu é especial”. A pessoa realmente se sente especial, ela sente que é da família. E ela só vai se dar conta de que não é, às vezes uma vida inteira, depois ou quando algo acontece, alguém morre e ninguém se lembra dela ou quando a família cai em uma derrocada financeira e ela é a primeira que expurgam. Enfim, são situações que fazem parte de uma técnica poderosa de prisão das pessoas numa subalternidade.

CONTINENTE Há quantos anos você se apresenta como escritora e quando surgiu essa vontade? E também quando foi que você se deu conta de que já era uma escritora?
ELIANA ALVES CRUZ Ah... Eu passei seis anos escrevendo o Água de barrela e não me considerava escritora, eu achava que era uma jornalista e estava investigando aquilo tudo ali, que era uma autobiografia e tal. Aí escrevi, publiquei, ganhei um concurso e ainda assim pensava: “Será que isso não é uma sorte de principiante?”. Porque a gente fica se testando, sabe? Aí escrevi para os Cadernos negros, porque eles são uma espécie de submissão que é tipo um concursinho que eles fazem pro segundo texto e tem uma avaliação, com notas, enfim. Eu queria que alguém lesse o meu texto com esse olhar de avaliador mesmo, pra me testar. E foi muito legal, porque os meus textos foram recebendo ótimas notas. Quando eu escrevi O crime do Cais do Valongo, lembro que o meu pai fez um cartãozinho de visitas, de papelão mesmo, me deu e disse: “Olhe aqui: escritora. Isso é pra você entregar para as pessoas e se identificar. Porque você é uma escritora”. A partir dali, nasceu a escritora. O crime do Cais do Valongo foi realmente quando eu pensei: “Bom, eu sou escritora, eu quero levar isso aqui de forma profissional. Eu posso, eu sei e pronto”. Foi a partir dali e, desde então, nunca mais parei.



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CONTINENTE
Nos interessa saber como foi o processo de escrita do Água de barrela. Como você teve a ideia de romancear com personagens da sua família?
ELIANA ALVES CRUZ Como eu te falei no início dessa conversa, eu convivi com grande parte desse “elenco” do Água de barrela na minha infância. Tia Nunu está viva ainda com 102 anos, minha avó, meu pai. Então, eu convivi com aquelas pessoas, eu escutei muitas daquelas histórias. Eu sempre achei que dava um livro sensacional e aí, quando resolvi começar a escrever, vi que era muito mais complicado do que eu achava que seria. Porque eu teria que remontar um passado e ainda não tinha pensado nisso. Tipo, gente, eu vou ter que voltar no tempo, né? Então, fui estudar o território, primeiro, ali aquela área do Recôncavo baiano, que eu não conhecia bem e fui voltando no tempo mesmo. Meio que esquadrinhando os lugares como uma forma de encontrar um mapa. E aí, quando a Tia Nunu me veio com as histórias da África, na verdade com as histórias que contaram a ela sobre a África, eu já estava começando a escrever, já tinha algumas páginas escritas e derrubei tudo, comecei tudo de novo. Porque mudou toda a minha perspectiva, fui estudar essa área da África que ela me trouxe.

O Água de barrela é um livro que nasce da memória familiar, da oralidade. Depois do estudo sobre os territórios, veio um terceiro passo: eu vi que eu precisava voltar na linha do tempo, ou seja, precisava estudar em paralelo as histórias do país, os eventos históricos que marcaram esse recorte de 170 anos que o livro pega. Império, Abolição, República, República Velha, eu tinha que pegar aquilo dali, aquele pedaço da história e voltar. Estudar, mas de um jeito diferente, uma nova perspectiva: Como será que a população negra dali do Recôncavo vivenciou o dia da abolição? O que aconteceu logo depois? No dia seguinte da abolição, como foi? Quando fiz esse exercício de imaginação, aí, sim, o livro começa a surgir. Quais eram as tretas, né? Quais os dramas que existiam ali? E a convivência com aquelas famílias brancas, com aqueles senhores e senhoras, como era? Eu fui investigando isso, fazendo um grande mapa, um grande apanhado. Eu escrevia e fui colocando notas de rodapé pra não me perder, porque é impressionante: a gente começa de um ponto e vai parar em outro completamente impensado. Então eu vi, por exemplo, que, em 1855, aconteceu uma pandemia de cólera, aí fui estudar pandemia de cólera. Pra estudar a pandemia de cólera, tive de estudar a cólera. Que doença era essa? Quais os sintomas? Como se curou? Como era o cenário da higiene? Eu fui estudar saúde pública da cidade, higiene das cidades. Enfim, você vai parar em uns lugares que nem imagina, mas foi uma delícia fazer essa viagem. Foi muito poderoso me apropriar desse passado.

CONTINENTE Neste romance você parte da micro-história, da sua família, pra fazer um retrato do macro, de um Brasil de diversas pessoas. De suas origens, coisa que muitos negros não têm acesso, só sabem das suas raízes até o bisavô, por exemplo, porque o resto foi silenciado...
ELIANA ALVES CRUZ Mas sabe o que acontece, Yuri, eu estava lendo sobre isso hoje. Eu li um texto de uma pessoa que é descendente de japoneses e falava assim: existe japonês no mundo todo, mas o japonês nunca se aparta da sua cultura. Ele entra na cultura do local onde está, mas é sempre japonês. E aí, sabe o que eu lembrei? Do sushi; não sei se é sushi ou sashimi, mas aquele que é com arroz e que tem a manga dentro. A manga não é uma fruta do Japão, mas [a comida] não deixa de ser japonesa. Você identifica aquilo ali como algo do Japão. Com a população negra, por causa do objeto que nós fomos durante muito tempo, do corpo-moeda, as nossas coisas foram apropriadas de uma forma diferente. As pessoas meteram a mão mesmo, pra modificar, pra se apropriar, pra destituir o nosso pertencimento dessas coisas. Então você tem uma feijoada que um monte de gente diz que não foi criada por negros; você tem um acarajé que o povo quer botar o nome de bolinho de Jesus. Existem “n” situações. O Brasil vive essa síndrome da barrela, que é tirar o pertencimento negro das coisas negras, clarear mesmo. Enquanto que outras culturas, mesmo inseridas dentro de outro contexto, conseguem se manter, os elementos da cultura negra se diluíram em um todo e remontar isso é muito mais difícil. A gente vive essa ilusão, essa balela da miscigenação cordial e toda essa conversa, né? E aí, esse trabalho todo é um esforço pra devolver essa cidadania, pra devolver esse pertencimento pros negros, pra empretecer mesmo. Fazer uma ação no contrário da barrela.

CONTINENTE Como foi a sua formação? Quando surgiu sua relação com os livros?
ELIANA ALVES CRUZ Foi na infância mesmo. Eu acho que eu fui uma criança, na primeira infância, muito feliz. Eu vivia aqui na zona oeste do Rio e, na época da minha infância, era tudo muito rural ainda. Hoje, se você for pra lá, é uma área que tá bem favelizada, já tem outra cara. Mas, naquela época, ainda mantinha um ar meio de roça, então eu vivi bem feliz ali com a minha avó, que via estendendo roupa, fazendo a barrela, lavando e clareando as roupas. Era uma infância pobre, mas uma infância muito boa. Nada me sobrou, mas também nada me faltou. Nunca faltou comida na mesa, sabe? As coisas começaram a complicar pra mim – isso é engraçado até – quando a minha família começou a ter um pouquinho mais de acesso aos bens materiais. Quando meu pai passou em um concurso público no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e começou a ganhar um salário melhor, nós mudamos para um bairro de classe média. Foi aí que começou o meu inferno. Isso foi lá nos meus 11, 12 anos. Eu tive uma pré-adolescência e uma adolescência muito atribuladas, muito difíceis, muito infelizes mesmo, eu posso dizer. Só fui me reencontrar lá na faculdade muitos anos depois, porque foi um período da minha vida muito duro. A gente morava num lugar em que erámos corpos estranhos, a exceção da exceção, e a gente viveu muitas violências. Eu vivi muitas violências, meus irmãos eram um pouco mais novos do que eu e sofreram até de uma forma mais branda. Mas comigo foi muito pesado.

Meu pai sempre amou a literatura. Os livros sempre foram objetos de desejo do meu pai, até hoje se ele vai a uma livraria, gasta o salário todo e compra livro repetido que ele acha que não tinha comprado, mas não sabia que já tinha. Enfim, ele é essa pessoa. E a vida inteira ele teve lá em casa uma bibliotecazinha e estimulava a gente a ler, nos apresentou a leitura e a educação como uma chave pra sair de tudo, pra alçar os voos da vida. Eu lembro que eu tinha um diário com uns 11 anos e eu escrevi: “Ah, eu acho que eu poderia ser escritora” e tá lá. Eu achei isso tão incrível, porque era um plano muito antigo, e eu tinha esquecido que eu tinha feito esse plano; na verdade, esse acordo comigo mesma de ser escritora. Então, meu pai foi esse cara que me apresentou a literatura e os livros e eu tenho alguma coisa dele aqui, alguns presentes que ele me deu. Por exemplo, eu tenho a sétima edição do Pequeno Príncipe no Brasil, bem velhinho, que ele me deu quando eu era criança. Eu tenho, sei lá, uma edição muito velha de O tempo e o vento que ele fez coleção. Eu tenho vários livros muito velhos que foi ele que me deu. Então, é isso, nesse período de 11 até uns, sei lá, 18 anos, eu era muito solitária, até tinha meus amiguinhos da escola, mas era muito só, aí eu lia. Os livros são a companhia do solitário e foi um período muito interessante por esse lado, porque era uma forma também de escapar, de fugir daquela realidade. 


Foto: Chico Cerchiaro/Divulgação

CONTINENTE Conta quando foi que você escolheu fazer Jornalismo e em quais momentos essa profissão mais lhe encantou?
ELIANA ALVES CRUZ Pois então... Eu morava ali em frente, e meu pai mora lá até hoje, que é àquele quartel do DOI – CODI da ditadura, o famoso das torturas, do Vladimir Herzog, um lugar terrível. Cheio de militar torturador, eu morava ali, e veio a abertura política pras Diretas e pro fim da ditadura. Aquele período que eu falei, dos 11 anos, era o final da ditadura. E, nesse finalzinho do regime, eu comecei a acompanhar o meu pai, que sempre foi muito consciente. Tanto ele quanto meu avô materno, que era comunista, liam escondido os jornais subversivos. Ele me falava: “Menina, não diga por aí que me viu lendo isso!”. Nessa, eu comecei a acompanhar o jornal, lembro que tinha uma coluna que eu adorava. Comecei a acompanhar a imprensa, fui ao comício das Diretas escondida da minha mãe, porque eles achavam que ainda era aquela coisa da ditadura que podia acabar meio mal, e realmente podia, né? Hoje eu penso no perigo, porque realmente podia degringolar para alguma coisa pior, mas eu fui e comecei a achar que eu podia, na verdade eu queria escrever no jornal, falar sobre política ou esporte. Acabei parando no esporte porque, uma vez na vida, eu quis ser atleta, mas eu não consegui. 

CONTINENTE Mas você sempre atuou em veículo impresso? Foi isso?
ELIANA ALVES CRUZ Eu comecei fazendo um estágio em uma revista, umas revistas antigas como a Manchete, a Pais & Filhos. Fiz uns freelas pra essas revistas, fiz alguma coisa pra TV também. Eu fazia um jornal interno da Confederação de Esporte, editava. Eu fazia esse jornal e a assessoria de comunicação dessa entidade e fiquei anos ali cobrindo esporte, fazendo uns freelas até para veículos de fora do Brasil falando sobre esportes e tal. Fiquei anos trabalhando com isso, cobri um monte de Olimpíadas e [Jogos] Pan-americanos. Eu corria muito, sempre tive inteligência corporal. Dançava bem, até hoje eu danço bem, na verdade. Qualquer esporte que eu praticava, fazia bem. Eu queria ser atleta, só que eu tinha um sopro no coração, acho até que hoje seria fácil de lidar, mas, naquela época, minha mãe ficou apavorada e acabei não seguindo a carreira esportiva. O que eu acho uma pena, porque eu queria correr. Aí pensei: “Bom, se eu não vou correndo, vou escrevendo”; e fui, né?

CONTINENTE E o quanto essa bagagem auxiliou na literatura?
ELIANA ALVES CRUZ As viagens me ajudaram muito. É aquela frase: “A gente ganha pouco, mas se diverte”. Eu viajei muito, conheci 32 países. Eu acho que o jornalismo tem uma coisa que é da observação, a gente fica nesse lugar de observar os detalhes e isso ajuda muito pra quem é escritor ou escritora. Começamos a observar o comportamento humano também, a ligar os pontos; algo que aconteceu aqui hoje você liga com algo de uns tempos atrás e faz previsões, começa a fazer correlações. A experiência de jornalista te ajuda a organizar um pouco a mente, embora seja outra fórmula, outra pegada o texto jornalístico. Essa coisa do “o que”, “quando”, “como”, “onde” e “por que” te ajuda a construir um poder de síntese.

Se você vai escrever um livro, uma ficção, ou um roteiro, qualquer coisa, você precisa saber sobre o que você está falando. Eu estou falando sobre o quê? Estou falando sobre liberdade. Estou falando sobre hipocrisia. O Nada digo de ti, eu falo que é um livro sobre hipocrisia. Se eu pudesse resumir esse livro em uma palavra, seria hipocrisia. Então, isso te ajuda a ter uma espinha dorsal da história, você não se perde porque você sabe sobre o que está falando. O jornalismo, na verdade, me deu esse poder de síntese. Enfim, são muitas coisas. A prática de escrever todo dia. E, principalmente, em qualquer circunstância. Eu vejo muitas pessoas pensando “Ah, estou sem inspiração” e, gente, nunca vão existir as condições ideais de inspiração, principalmente pra uma mulher preta. Nunca vão existir as condições adequadas, por exemplo, você estar sozinha em uma cabana ao som do mar, sabe? Onde você vai sentar e começar a escrever. Não, as condições precisam ser criadas por nós mesmos. Sério, o jornalismo me deu isso. Eu já escrevi com muito conforto, numa sala de imprensa da Suécia e já escrevi em uma rodoviária com uma tomada no chão. É sobre isso. Eu tenho prazo pra entregar, tenho um texto pra fazer e eu vou fazer onde quer que eu esteja. É desmistificar esse lugar do escritor como alguém que está com um charuto e uma xícara de café em uma cabana na montanha.

Outra coisa, acho que o Solitária, por exemplo, é um livro que não é grande, as pessoas leem rápido e é proposital esse formato de ser muito condensado. As histórias são rápidas, mas elas não são rasas. Tem coisas profundas ali em pouco texto e eu acho que isso é um exercício que o jornalismo traz porque a gente precisa ser objetivo, escrevemos muito em poucas linhas. Isso me ajuda muito com o processo de apuração e, principalmente, o jornalismo treina a gente na escuta. Aprendemos a ouvir as pessoas para além do que elas dizem, a ouvir com os olhos, a ouvir o corpo daquela pessoa que está conversando com você. Nós somos treinados a ter um olhar para além do óbvio, pelo menos deveria ser e é o que eu tento.

CONTINENTE Eu lhe acompanho no Twitter e vi que você falou do podcast A Casa da Mulher Abandonada e que não iria acompanhar porque suas histórias libertam, não aprisionam. Isso deu curiosidade de saber o que você consome, quem são os autores que te inspiram, quem te influencia?
ELIANA ALVES CRUZ Olhe, atualmente, eu não consigo ler é nada. Não consigo ler, não consigo. É muita coisa, são muitos eventos, muitos compromissos. Eu agora estou falando com você aqui e com cinco caixas em volta. São romances que eu vou ter que ler pra um concurso o qual eu sou jurada. É muita coisa! Cinco caixas, cada romance com 100 páginas, no mínimo. Então assim, esquece... Não consigo ler. Isso está me agoniando realmente, porque eu preciso voltar a ler por questões até profissionais. Eu preciso estudar, não posso ficar defasada com o que está acontecendo no mundo da literatura.

O que eu posso falar pra você de escritores e escritoras é que, na minha formação – eu acho que até porque a minha família é baiana –, eu me lembro de ler o Jorge Amado e pensar assim: “Eu queria escrever como esse cara”. Porque quando você lê ele, parece que você está no lugar, ele te teletransporta e você parece que enxerga a cena. Não à toa, vários livros dele foram adaptados para filmes e novelas, porque realmente Jorge Amado tinha essa técnica. Então, eu acho que eu tento herdar isso, essa capacidade de transportar a pessoa para o lugar. Eu li várias sagas, por isso o Água de barrela sempre foi um livro que eu quis escrever. Vou citar algumas: Cem anos de solidão, O tempo e o vento, como eu te falei, Raízes. Várias sagas eu li e achava que eu tinha uma dentro da minha casa. Eu fico pensando também nas mulheres, quem foram as primeiras mulheres que eu li, acho que a primeira escritora foi a Cecília Meireles, aquele livro Ou isto ou aquilo, de poemas, meu pai gosta muito de poesia e recitava pra gente Augusto dos Anjos. Pesadíssimo, né? Poesia é algo que está na minha formação, eu gosto muito. Há coisas que só imagens poéticas conseguem traduzir em sentimentos. Então, um livro tem que ter uma pegada poética, porque senão você não consegue tocar o coração de quem te lê.

Eu hoje tento equilibrar um pouco o jogo: lendo muitas mulheres negras, pessoas negras, já que eu fui criada, todos nós fomos, com a literatura branca. A hora de empatar esse jogo chegou. Eu tento rechear a minha biblioteca com as colegas pretas, aqui no Brasil: a Carolina Maria de Jesus foi uma descoberta na juventude, eu vi que uma mulher com aquele pertencimento podia escrever, então sabe? Não há desculpa que a gente possa dar para não escrever, se Carolina escrevia. Conceição [Evaristo], obviamente, justamente pela proximidade do que ela escreve tem com a poesia. Poesia que é a prosa dela, com a paciência que a Conceição tem com as palavras, as frases. Nada no texto da Conceição está fora do lugar. É tudo pensado meticulosamente, com cuidado e capricho com a escrita. A Conceição é uma pessoa que me inspira para além das letras, como ser humano, é uma pessoa incrível, ela é absolutamente coerente com as coisas que ela acredita e isso é muito inspirador. Nossa! Tanta gente! Ainda tem muita gente. Tem as gringas também: Toni Morrison, Alice Walker, bell hooks, uma infinidade de pessoas que vão pavimentando a nossa estrada.

CONTINENTE Você enxerga a literatura como um instrumento para a construção de uma memória coletiva? Suas obras deixam essa impressão.
ELIANA ALVES CRUZ Sim! Demais. Nós temos uma memória coletiva muito baseada na literatura e ela, às vezes, faz um desserviço porque cristaliza percepções, estereótipos, narrativas. Cristaliza as pessoas em determinados lugares. A língua, o idioma, é algo onde se assenta a cultura. É um lugar muito importante para se estar. Não há como a gente abrir mão desse espaço, porque se a gente quer figurar na história com um mínimo de dignidade, precisamos nos apossar desse território, do idioma. Da produção do idioma.

CONTINENTE O que você deseja com a sua literatura?
ELIANA ALVES CRUZ Olha... É complexo! O que eu desejo é que as pessoas leiam e reflitam sobre que projeto de país a gente quer, que projeto de nação nós queremos. O que eu desejo é, principalmente, que a gente tente repensar a nossa história. Buscar a nossa verdadeira história, procurar essas rasuras, essas fissuras que foram se fazendo ao longo do tempo. Ah, desejo muitas coisas, sabe? Desejo que essas histórias fiquem datadas também. Que no futuro, as pessoas possam ler o Solitária, por exemplo, como um retrato de 2022 e não uma sobrevida em 2050, 2060, sei lá. Que falem: “Nossa! Olha como era..” e não “Parece que ela escreveu esse livro hoje!”, porque isso não é um elogio. É um elogio pra ele, e não para nós, que a gente leia Lima Barreto de uma forma tão atual. Já era pra termos superado muita coisa. Então, eu quero que leiam os meus livros como um alerta para que nunca mais voltemos para determinados lugares.



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CONTINENTE Depois de três romances históricos, Solitária é a sua primeira história contemporânea. Por que isso?
ELIANA ALVES CRUZ Foi uma quebra de expectativa, né? As pessoas esperam sempre da gente alguma coisa semelhante ao que já fizemos e eu gosto desse sentimento de quebra de expectativa. Mas ele está dentro de uma lógica, o Solitária vem, na verdade, falar da sobrevida daquilo tudo o que eu trato nos três primeiros livros. O que a gente ainda mantém vivo dessa relação nos nossos dias atuais. Eu acho que muito se fala em privilégio, só que o trabalho doméstico meio que materializa isso. A gente quase que pode pegar no ar, porque enquanto alguém, sei lá, está vendo televisão, tem uma pessoa lavando a roupa. Enquanto você está estudando, tem outra pessoa cozinhando. É muito gráfico esse privilégio. Eu acho que a literatura é um lugar pra gente discutir isso de uma forma muito boa. Na verdade, eu estou falando da mesma coisa, só mudou o cenário, mudou a roupa, mas é a mesma coisa. Quem tem direito à infância, o que é liberdade, quem é livre e quem é cativo, as questões acerca da mulher. A patroa da Mabel facilita pra ela o aborto e ela é muito consciente de que a Mabel não poderia ser mãe naquela idade, uma pessoa que poderia ser até progressista nas ideias, mas mantém todas as práticas escravocratas, mantém ainda um forte ranço escravocrata, embora tenha ali toda uma questão feminina. Essa dualidade, esse conflito, é muito moderno, mas ele está muito alicerçado no que os meus outros três romances tratam.

CONTINENTE O quanto o caso Miguel inspirou você a escrever Solitária (2022)?
ELIANA ALVES CRUZ Muito. Porque é parte de quem tem direito à infância. Eu falei que, na questão do trabalho doméstico, a gente quase materializa o privilégio, nesse caso então. Enquanto você faz as unhas, tem um menino caindo do décimo andar do prédio. Eu não sei se Miguel não fosse um menino negro, filho da empregada, se ela apertaria o andar de cima para o garoto subir no elevador sozinho. Veja, é uma criança de cinco anos. Quem, minimamente, convive com uma criança de cinco anos sabe que ela pode fazer qualquer coisa. Enfim, é muito estarrecedor que ela não seja enxergada como a criança que era. Então, sim, foi proposital. Até mandei uma mensagem pra Mirtes e fiquei de mandar um livro pra ela. Falei pra ela que foi inspirado nela e ela agradeceu muito, e é isso. É não fazer, principalmente, que esses casos virem estatística pura e simplesmente, ou aquela história do “Lembra aquele menino que caiu do prédio lá em 2020”, sabe? A literatura coloca esse caso em outro lugar.

CONTINENTE Pra você, o que Solitária ensina sobre a sociedade brasileira e sobre o papel das mulheres negras no país?
ELIANA ALVES CRUZ Fala muita coisa sobre a sociedade brasileira, bastante sobre a elite. Mas muito sobre nós, o povo negro, sobre as nossas conquistas, sobre o quanto a gente tem que estar vigilante, sobre como a gente ainda tem coisas para conquistar e como temos que recuperar as nossas relações afetivas. Num esfera pública, existe um debate que eu acho que já sabemos fazer. Já sabemos fazer todo esse debate sobre a questão racial brasileira, sobre a questão trabalhista e classista brasileira na esfera pública. Mas, na esfera privada, nos nossos afetos, ainda precisamos recosturar essa colcha que está tão esfacelada, das relações. Pessoas machucadas machucam e machucam quem tá perto. Veja a Mabel e a Eunice no livro, elas têm uma relação bonita de mãe e filha, mas elas se machucam porque elas estão machucadas. A Mabel esconde coisas graves da vida dela da mãe e deixa a mãe ficar na ilusão. Eunice, por sua vez, parece que tem um véu no rosto que não enxerga as verdades da filha ou não quer enxergar, né? Isso vai só se agravando, mas aí entra um elemento que consegue resgatar tudo: o afeto. 

CONTINENTE É verdade que Solitária vai virar série? Você tá envolvida nesse projeto?
ELIANA ALVES CRUZ Sim, o Solitária vai virar série. Estou envolvida no projeto, não é nada fácil. Bem difícil, pra falar a verdade. 

CONTINENTE Está como produtora executiva?
ELIANA ALVES CRUZ Não, a princípio eu sou consultora. Mas quando começar a sala, vamos ver se eu vou participar com os roteiristas. O crime do Cais do Valongo também já está negociado, há muito tempo, pra virar audiovisual, mas é um pouco mais difícil porque é uma história de época, então é muito mais caro. Mas vai acontecer. Pode demorar, mas vai acontecer. E sim, estou sempre escrevendo um novo romance. Tenho que estar. Mas eu estou pensando nele ainda, vou sentar mesmo pra escrever só no ano que vem, porque eu preciso me livrar desses trabalhos todos, dá uma limpada na área pra, realmente, botar a cabeça pra escrita.

CONTINENTE Será um romance histórico, mais uma vez?
ELIANA ALVES CRUZ É. Quero fazer uma sequência do Água de barrela, na verdade é uma história que acontece em paralelo. Mas eu acho que vai ficar bem bacana, só que eu preciso parar e estudar. Tomar fôlego mesmo porque é trabalho. 

CONTINENTE Seus livros O crime do Cais do Valongo e Nada digo de ti que em ti não veja agora são parte do Programa Nacional do Livro Didático. Para você, qual a importância dessa notícia?
ELIANA ALVES CRUZ A importância é enorme. Porque agora vamos lidar com o público que está aí, que vai fazer esse país e que precisa crescer com essa narrativa, precisa se desenvolver com esse ponto de vista da história. Eu queria muito ter lido, na verdade eu não sei que pessoa eu seria hoje se eu tivesse crescido lendo obras como essa. Talvez, eu conseguisse produzir muito mais e tivesse me tornado escritora muito antes. Então, eu acho que é um prêmio enorme estar nas mãos de estudantes. Sempre que eu posso, eu vou às escolas e participo de programas com alunos, porque é ali que precisamos estar. É ali que quebramos o ciclo, porque tem um ciclo de repetições nesse país. O que aconteceu no Água de barrela não acontece hoje exatamente da mesma forma, mas tem aqui uma reminiscência daquilo ali. E como a gente quebra isso? Falando com as crianças e os jovens, tentando, de alguma forma, fazer com que eles reflitam e mudem esse padrão de comportamento, esse padrão de sociedade.


Foto: Chico Cerchiaro/Divulgação

CONTINENTE De que é feita uma boa história? Quando você coloca um livro novo no mundo, o que você pretende com ele?
ELIANA ALVES CRUZ Que pergunta difícil! Não sei! [risos] Eu acho que uma grande história é feita de emoção, uma grande história é feita da verdade do autor. A gente não consegue escrever uma grande história, se a gente não estiver sendo absolutamente sincero com o que estamos escrevendo. Ou seja, eu vejo algumas pessoas hoje que acreditam que ser escritor, ser escritora, é alguma coisa do terreno do midiático pop, que são pessoas que são meio celebridades, sei lá, uma coisa, assim, meio doida. As pessoas querem esse lugar da visibilidade, mas não entendem que, para você estar ali nessa posição de escritor, você antes teve que estar sozinho escrevendo algo em que você acredita. Não há como você escrever para agradar determinada moda, para agradar determinado público, porque essa falsidade vai transpassar no texto, vai ficar algo que não é legítimo, entendeu? O leitor percebe quando existe alguma realidade no que você coloca. Então, eu acho que uma grande história é feita de emoção e verdade. 

YURI EUZÉBIO, jornalista.

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