Entrevista

“As pessoas não sabem o que é democracia”

Em entrevista exclusiva, Ney Matogrosso comenta indefinição da turnê de ‘Bloco na rua’, governo Bolsonaro e sua carreira ontem e hoje

TEXTO Débora Nascimento

23 de Março de 2020

O artista Ney Matogrosso em apresentação de 'Bloco na rua'

O artista Ney Matogrosso em apresentação de 'Bloco na rua'

Foto Marcos Hermes/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Por conta do autoritarismo paterno, que queria repetir no lar a rígida disciplina do quartel, Ney Matogrosso saiu de casa aos 17 anos. Numa época em que os jovens costumavam fazer isso a partir dos 21 anos, com emprego e casamento, Ney largou tudo para viver uma vida hippie, no final década de 1960, época dos lemas “paz e amor” e “sexo, drogas e rock’n’ roll”. Nascido em Bela Vista, no então Matogrosso (antes de ser dividido), e morando em Brasília, foi tentar a sorte em outras cidades. Chegou a passar pouco tempo na Aeronáutica, onde teve que perder a vergonha de tirar a roupa na frente de outras pessoas, e depois quis seguir a carreira de ator, fazendo musicais – as duas experiências contrastantes contribuiriam para a construção de sua icônica performance no palco, que chocaria e conquistaria o país em plena ditadura militar.

Seu pai chegou a reencontrá-lo em São Paulo, quis lhe dar dinheiro, vendo como o filho estava vivendo. Mas o jovem não aceitou. Na fase riponga no Rio de Janeiro, Ney costumava frequentar a casa da amiga Luhli. Um dia, ela ouviu de um amigo músico chamado João Ricardo que este precisava de algo raríssimo: um cantor de voz aguda para compor o trio que estava formando. Luhli respondeu que conhecia esse cantor e que ele vivia na casa dela: era Ney de Souza Pereira, que, não satisfeito com a falta de impacto de seu sobrenome, aceitou a sugestão para que adotasse o do pai, a partir de 1973. No mesmo ano, foi lançado o primeiro disco dos Secos & Molhados, fenômeno de vendas eleito, pela Rolling Stone Brasil, em 2007, como um dos 100 maiores discos da música brasileira, ficando em quinto lugar.

Luhli foi uma das pessoas que realmente experimentaram o amor livre no país, vivendo, sob o mesmo teto, o poliamor com o marido, o fotógrafo Luiz Fernando da Fonseca, e a companheira Lucina, que se tornou sua longeva parceira musical. Luhli foi coautora de alguns dos sucessos na voz de Ney Matogrosso, como O vira e Fala (ambas em coautoria com João Ricardo) e de Pedra de rio (junto com Lucina), faixa do primeiro disco solo de Ney, lançado há 45 anos. A compositora foi tema de uma das perguntas desta entrevista do cantor à Continente. Aos 78 anos, sempre direto, sério, sem rodeios, sem “dizer nada por dizer”, Ney fala sobre o que espera da atriz Regina Duarte à frente da Secretaria de Cultura do governo Bolsonaro e também sobre meio ambiente, militares, PT, música sertaneja, Chico Buarque, perseguição ideológica, retrocesso em relação à Aids – doença que matou seu ex-namorado e amigo Cazuza, autor da letra de Poema (musicada por Frejat), que é a interpretação de Ney mais ouvida no Spotify (quase 11 milhões de acessos).

Esta conversa aconteceu por telefone, no dia 10 de março, e tinha como ponto de partida o show de Ney no Recife, marcado para o dia 4 de abril, no Classic Hall. No entanto, devido à pandemia do novo coronavírus, que alterou também a agenda cultural no mundo inteiro, a apresentação foi transferida para o dia 2 de outubro. A turnê do disco Bloco na rua estreou em janeiro do ano passado, sempre com casas de shows lotadas, abrangendo canções do repertório de outros artistas e também músicas marcantes da carreira do cantor, como Sangue latino, Mulher barriguda e Pavão Mysteriozo, interpretadas com a força e coragem de sempre desse artista libertário.

CONTINENTE Gostaria que você falasse sobre a importância de estar no palco, que me parece ser o momento crucial da sua carreira.
NEY MATOGROSSO É o momento mais importante da minha vida, quando estou no palco. Eu dedico a minha vida toda a isso.

CONTINENTE Você tem muitos discos ao vivo, intercalados com discos de estúdio. Como é esse processo de gravação em que experimenta as músicas antes no show?
NEY MATOGROSSO Há muitos anos faço isso. Antigamente, eu era obrigado a gravar, agora não tenho essa obrigação, eu gravo a hora que quero, quando acho que estou pronto. Consegui essa independência na minha vida, mas também pela falência das gravadoras, porque elas não têm mais esse poder. E eu observava, quando ouvia, que eu não estava pronto, que eu não tinha entendido tudo, que eu tinha gravado verde. E aí chegou o momento em que consegui ficar mais independente e disse: “Não, vou primeiro cantar, vou fazer muito show e depois eu gravo”. E já há muitos anos faço assim.

CONTINENTE Que é o processo inverso que geralmente um artista faz. E o conceito por trás da escolha do repertório? O que leva você a escolher uma música para cantar?
NEY MATOGROSSO Eu escolho pela letra, não é pela música. Escolho pelo assunto, ouço uma música que eu gosto e eu me pergunto assim: “Se você fosse compositor, diria essas coisas?”. Porque acho que o que canto tem que ser compatível com o meu pensamento, com o que eu acredito. Essa é a única maneira que sei fazer.

CONTINENTE Isso tem a ver com o fato de você ser ator também, de fazer essa interpretação que tem a ver com o teatro?
NEY MATOGROSSO Talvez sim. Se eu vou dizer aquilo com propriedade, não é isso?

CONTINENTE Exatamente. De uns anos para cá, você está atuando no cinema, não é isso?
NEY MATOGROSSO Sim. A primeira vez foi na década de 1980, com a cineasta Ana Carolina, em um filme chamado Sonho de valsa. Aí depois fiz muitos outros.

CONTINENTE Você tem planos para outros filmes?
NEY MATOGROSSO Eu não tenho planos, tenho dentro de mim uma abertura pra isso. Agora depende também do que seja. Não me interessa fazer cinema por fazer. Eu, nesses tempos que comecei a fazer, já recebi muita proposta, mas que não aceitei porque é que nem cantar uma música. Mas já aceitei fazer um vilão horroroso (em Luz nas trevas, a volta do Bandido da Luz Vermelha, de 2010), que quando eu acabava a filmagem, tinha que ir para o hotel e tomar banho para tirar aquilo de mim, que eu acho também que é uma coisa interessante para um ator, fazer uma coisa extremamente oposta a você. É um desafio, mas eu acho muito interessante.

CONTINENTE E como é a tua relação com o cinema brasileiro? Você acompanha?
NEY MATOGROSSO Eu acompanho tudo o que está acontecendo. Não vou te dizer que eu assisto tudo, porque quando estou trabalhando, não tenho esse tempo de acompanhar o cinema com regularidade, porque fico muito tempo fora de casa. Mas eu gosto muito de cinema.

CONTINENTE Nessa década que passou, foi a década que você lançou menos discos de estúdio (nos 1970, foram sete; nos 1980, sete; nos 1990, cinco; nos 2000, seis; nos 2010, um).
NEY MATOGROSSO Uai, foi? O Vagabundo, eu fiz de estúdio e fiz o ao vivo. Olhos de farol, eu fiz de estúdio e ao vivo. Esse que estou fazendo (Bloco na rua) é uma exceção, esse é um show que eu fiz o repertório, gravei e faço o show exatamente igual. Os outros eu ampliava os shows. Então, eu achava que valia a pena fazer uma gravação ao vivo, fiz alguns assim. Mas sempre teve um de estúdio. Esse aqui (Bloco na rua) é que não teve um de estúdio. Eu fiz o CD e o DVD ao vivo, de uma vez só.

CONTINENTE O DVD está para sair?
NEY MATOGROSSO Essa é uma dificuldade, porque cai lá numa história de alguma coisa do cinema que tem que dizer a idade, que é ridículo. Está preso até agora. Todo mundo já viu. Está na televisão, no Globo Play. E eu não tenho ele na minha mão. Não entendo essa classificação etária não ter saído ainda, sendo que o DVD já foi mostrado na internet. Isso é uma coisa que eu não entendo. Deve ter a ver com o novo direcionamento do cinema. É um governo que não gosta de cultura.



CONTINENTE Você tem acompanhado o noticiário relativo a esse governo? Assusta o que você está vendo?
NEY MATOGROSSO Não assusta, porque a gente ainda minimamente tem os poderes funcionando, mas é assustador no sentido do rumo que ele está tomando.

CONTINENTE E essa escolha de Regina Duarte, você acha que vai conseguir fazer alguma coisa ou vai continuar no mesmo?
NEY MATOGROSSO Não vai aplacar nada. Eu falei uma coisa que está dando uma repercussão, porque eu disse que achava que ela não vai fazer nada. Eu cheguei a essa conclusão vendo a posse dela. Você viu, né? Você acha que ela poderá fazer alguma coisa, diante do que ele disse pra ela? Inclusive que ela estava num período de experiência. Não dá para acreditar muito. Eu não torço contra ela não, tá? Eu não torço contra ninguém que chega a algum lugar, principalmente na cultura. Mas não sei. Acho que dificilmente, infelizmente.

CONTINENTE E como você avalia essa visão que algumas pessoas têm de que os artistas são usurpadores, porque estão usando as leis de incentivo?
NEY MATOGROSSO Eu, por exemplo, nunca usei. É um discurso lamentável de gente ignorante que não sabe do que está falando, porque acha que é o governo que dá o dinheiro. É uma visão equivocada.

CONTINENTE Nesse novo disco, você inseriu Tua cantiga, de Chico Buarque, uma música que teve uma recepção negativa nas redes sociais.
NEY MATOGROSSO Completamente idiota essa repercussão. Aquilo ali é uma obra de ficção, que não significa que ele esteja dizendo para os maridos largarem as mulheres e irem atrás da amante. É uma coisa tão primária a reação a isso, que eu nem considero. É tão primitivo esse pensamento.

CONTINENTE Mas a escolha também teve a ver com isso?
NEY MATOGROSSO Não, teve a ver porque eu acho a música linda. Quando eu ouvi o disco dele, a primeira que eu me interessei foi essa. Antes de ter o debate.

CONTINENTE Como você enxerga esses julgamentos na internet?
NEY MATOGROSSO Olha, eu acho que ninguém tem que julgar ninguém. Quando acontece comigo, eu ignoro. Eu não respondo, não fico debatendo o assunto. As pessoas podem ficar falando o que quiserem de mim e eu não ligo, eu não ouço, não presto atenção e sigo minha vida. Não dou gosto de ir debater publicamente.

CONTINENTE Ainda sobre Chico, ele foi bastante atacado, inclusive nas ruas, por ter sido contra o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula.
NEY MATOGROSSO Ele tem o direito de pensar o que ele quiser, de expressar da maneira que ele acredita. Não é isso a liberdade de expressão, a democracia? Então, as pessoas não sabem o que é democracia. Não entendem, não são preparadas para a democracia. Isso demonstra um grau de ignorância enorme sobre o que é democracia.

CONTINENTE Você, por outro lado, foi crítico ao governo do PT. Também recebeu algum tipo de reação?
NEY MATOGROSSO Claro. Mas eu tenho o direito de pensar o que eu quiser. Sempre votei no PT, mas quando estourou o escândalo, eu fiquei... O governo foi eleito como um governo ético, eu acreditei. Eu sempre votei no Lula. Mas, a partir dali, eu não quis mais votar nele. E não votei na Dilma, porque era uma imposição dele. Mas isso não significa que eu seja de direita. Eu não sou nem de direita nem de esquerda. Eu quero que o país ande. Agora é mais difícil. Sabe uma coisa que eu observo, que eu acho mais crítica? Um governo anterior faz coisas boas, coisas certas; o próximo anula tudo o que foi bom. Isso de uma maneira geral. A gente tem que dar continuidade às coisas que deram certo, porque, dessa forma, nunca seremos uma nação.

CONTINENTE É o que está acontecendo agora com o desmonte da cultura...
NEY MATOGROSSO Desmonte não só da cultura, de várias áreas.

CONTINENTE Você tem uma área de preservação ambiental, não é?
NEY MATOGROSSO Tenho, é para todos os animais da Mata Atlântica. Tenho isso desde 1985. Levei 10 anos para transformar em uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), porque a primeira vez que eu liguei para o Ibama, 25 anos atrás, fui muito maltratado. Eu tive que dizer para a mulher que me atendeu que eu não estava pedindo nada, eu estava oferecendo o que eu tinha, que é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural, que, por lei, não pode ser desfeita. Portanto, aquela floresta se manterá em pé indefinidamente.

CONTINENTE Diante dessa sua preocupação, como é que você vê esse descaso do governo federal com o meio ambiente e a situação que a gente está vivendo, à beira de um colapso ambiental?
NEY MATOGROSSO Vejo com muita preocupação. Quando chegar a uma calamidade irreversível, aí a coisa vai feder pra todo lado.

CONTINENTE Queria que você, que testemunhou o período da ditadura militar, dissesse como enxerga esse retorno dos militares ao poder?
NEY MATOGROSSO Ainda não sinto que seja uma ameaça. Não sou uma pessoa radical, eu entendo que entre os militares tenha pessoas com o pensamento mais adiantado, como aquele primeiro que foi mandado embora, que era um homem muito interessante, esclarecido, o Santa Cruz. Mas ainda não olho como uma ameaça.

CONTINENTE O seu pai, que era militar, foi contra as arbitrariedades do golpe de 1964...
NEY MATOGROSSO Sim, e eu o admirei muito por isso.

CONTINENTE Li a entrevista que você deu à BBC, na qual você conta a relação difícil com seu pai. A entrevista foi dada quando você fez o show em Londres. Essa turnê vai passar mais por onde?
NEY MATOGROSSO Essa ida a Londres rendeu muita coisa. Recebi proposta para fazer Londres de novo, Amsterdã, Berlim e Paris. Mas agora, com essa questão de coronavírus, não sei como a coisa vai ficar. Mas isso tudo é pra junho, julho. Até lá, isso tudo pode ter passado e as coisas acontecerem realmente. E tenho também uma proposta pra fazer um show no Central Park, aquele show que todo ano fazem. Mas tudo agora está dependendo dessa história, né? No verão, parece que o vírus não sobrevive.

CONTINENTE O que você acha desse predomínio do sertanejo na música brasileira? Saiu até uma lista com as músicas mais tocadas nos anos 1980, tinha Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil... E agora, nas 10 músicas mais tocadas no Brasil, só tem sertanejo.
NEY MATOGROSSO Esse tipo de coisa sempre aconteceu. Passamos por vários estilos musicais, que foram eleitos por um tempo, que depois... Tudo mudou muito. A música se transformou demais. O poder das gravadoras acabou, então fica todo mundo fazendo o mais simples. Não acho tudo ruim da música sertaneja, mas não concordo com tudo. Acho que tem que ter espaço. Nem por isso vou cantar música sertaneja, vou cantar o que sempre gostei. E não tenho do que me queixar. Tenho feito esse show com o teatro lotado, tudo esgotado com um mês de antecedência. Tem espaço pra outras coisas também. Pelo menos, no meu caso, eu percebo esse espaço.

CONTINENTE Você percebe que o seu público renovou?
NEY MATOGROSSO Ah, sim. Vejo muita gente muito nova. Mas isso foi uma coisa que sempre aconteceu comigo. Pessoas de diversas idades ao mesmo tempo. Que eu adoro que seja assim, completamente misturado e heterogêneo.


Foto: Márcia Hack/Divulgação

CONTINENTE Será que essa juventude muito grande nos seus shows tem a ver com o YouTube e o Spotify?
NEY MATOGROSSO Eu não sei, porque houve um momento em que as pessoas proibiam que se filmassem os shows. Nesse momento em que havia essa proibição, eu percebia o seguinte: quando filmavam um show meu e botavam no YouTube, era uma coisa que aumentava o público. A impressão que me dava era que aquilo em vez de ser contra, era favorável. Então, nunca tive esse problema de não querer que filmassem. Nem antes eu tive. Acho que agora é outro momento. Mas não me abalou em nada.

CONTINENTE Tem alguns discos seus que não estão no Spotify, principalmente do começo da carreira.
NEY MATOGROSSO Não sei por quê, porque deveriam ter todos. Descobri, recentemente, que o disco em que eu cantei músicas do Chico Buarque estava perdido. Ninguém sabia de quem era, a quem pertencia. Então agora estou resgatando isso.

CONTINENTE O que você acha do Spotify? Você é um usuário?
NEY MATOGROSSO Não sou usuário regular, mas, de vez em quando, eu ouço.

CONTINENTE Já li uma matéria crítica ao Spotify com relação à renda para os artistas.
NEY MATOGROSSO Eu recebo centavos. É uma vergonha. Se você depender disso, vai morrer de fome.

CONTINENTE Diante disso, o que é que melhorou ou piorou com a perda do poder das gravadoras? Era mais organizado antes?
NEY MATOGROSSO Era uma indústria organizada, não é mais. Mas, por outro lado também, permite que pessoas totalmente desconhecidas apareçam, porque, como é uma coisa que não tem regra, de uma maneira geral, qualquer pessoa pode estar dentro daquilo, não precisa estar numa gravadora, falo nesse sentido. Uma coisa que sempre lutei muito nas gravadoras era: vocês deveriam aceitar mais os independentes. Eles tinham horror de artistas independentes. Hoje em dia, eu sou um artista independente. Tenho a minha produtora, faço meu trabalho, ninguém dá palpite. E vejo muita gente assim. E sempre achei que eles perderam muito tempo. Eles poderiam ter assumido os independentes lá atrás. Tornaria mais rico o panorama, sabe?

CONTINENTE O Secos & Molhados, quando começou, era uma banda que hoje seria considerada alternativa e teve uma vendagem incrível na Continental...
NEY MATOGROSSO Mais de um milhão de cópias vendidas. Numa época em que o Brasil tinha 9 milhões de pessoas que talvez pudessem comprar discos, nós vendemos 1 milhão.

CONTINENTE Você acha que a MPB está em vias de extinção ou houve uma renovação?
NEY MATOGROSSO Não absolutamente. Olha, não posso falar de uma maneira geral. Eu não conheço tudo. Mas, de vez em quando, ouço coisas muito boas. No meu trabalho anterior, lancei seis compositores novos. Nesse não, não quis, não era a minha intenção lançar ninguém. Era só cantar repertório cantado por quem quer que tenha sido cantado, mas dando a minha versão.

CONTINENTE Esse repertório do Bloco na rua é celebrativo da sua carreira, né?
NEY MATOGROSSO Sim, agora tem muita coisa dos anos 1970 também, porque não tive essa preocupação de música inédita. Cantei só o que eu gostaria de cantar. Aí coloquei algumas coisas minhas também, pra não ficar tão distante de mim, e incluí os anos 1970.

CONTINENTE Por falar em compositores, gostaria que você falasse um pouco sobre a importância da compositora Luhli...
NEY MATOGROSSO Na minha vida?! Imagina, quando os Secos & Molhados acabou, eu fui nela e disse: “Não sei se te agradeço ou se te culpo”.

CONTINENTE Ela foi responsável por apresentar você...
NEY MATOGROSSO Ela foi responsável diretamente. Ela que falou lá para o João Ricardo (membro-fundador e compositor do Secos & Molhares), quando ele disse pra ela que queria fazer um trio, mas não queria botar uma mulher e não achava um homem de voz aguda. Ela disse assim: “Eu tenho um homem de voz aguda dentro da minha casa”. Eu vivia na casa dela. Não morava lá. Mas eu fazia meu artesanato lá, eu era hippie. Você sabe disso, né?

CONTINENTE Sei, sim. Essa história é maravilhosa. E Luhli mudou tudo. Várias canções dela, Pedra de rio, que você gravou no primeiro disco solo e regravou no disco As aparências enganam (1993), com o conjunto Aquarela Carioca, que antecipa um pouco daquela sonoridade de Olho de peixe (1994), por ter Marcos Suzano, membro da sua banda do Bloco na rua.
NEY MATOGROSSO Ele está nessa turnê e está comigo há muitos anos. Esses últimos cinco anos trabalhando juntos e já estamos no segundo ano desse novo show. Começamos em 2013 e paramos em 2018. Começamos esse aqui em janeiro de 2019.

CONTINENTE E essa turnê, que foi muito longa, do Atento aos sinais? Ela estava dando certo e você seguiu com ela por cinco anos.
NEY MATOGROSSO Quando a gente completou dois anos e meio, comecei a fazer roteiros de um próximo show, pensando já em parar. Mas aí houve uma procura tão enorme pelo show, uma demanda tão grande, que eu achei que não poderia parar, sabe? E aí fiquei fazendo por cinco anos. Eu nunca tinha ficado cinco anos fazendo um mesmo show.

CONTINENTE Ney, alguma chance de fazer um show com o repertório apenas do Secos & Molhados? Porque a gente vê muita turnê comemorativa de disco.
NEY MATOGROSSO Não, não tem.

CONTINENTE Queria fazer uma pergunta a você, que viu Cazuza enfrentar a Aids, com relação a uma declaração que o presidente fez sobre os portadores de Aids como um estorvo.
NEY MATOGROSSO Não, isso é uma loucura. Um ser humano falar uma coisa dessa. Um presidente de um país falar uma coisa dessa é uma loucura. E assim, é uma visão tão distante do humano... Isso é um retrocesso muito grande.

CONTINENTE Dentre outros shows, você fez a direção e iluminação do Ideologia, de Cazuza, que marcou a década. Você tem vontade de voltar a fazer direção?
NEY MATOGROSSO Faço esporadicamente, porque, pra fazer esse tipo de coisa, tenho que estar com meu tempo muito livre pra poder me envolver do começo ao fim. Do primeiro dia de ensaio até 20 depois da estreia, como eu gosto de fazer e acompanhar.

CONTINENTE Essa turnê vai até quando?
NEY MATOGROSSO Ah, não tenho ideia. Ela vai até onde ela for (risos).

DÉBORA NASCIMENTO, repórter especial da revista Continente e colunista da Continente Online.

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