“A sociedade ainda precisa se feminilizar, tornar uma mulher”
Realizadora, curadora e ativista carioca Carmen Luz analisa a importância das articulações feministas no audiovisual brasileiro e ressalta que a liberdade é uma luta constante
TEXTO Luciana Veras
14 de Abril de 2021
Carmen Luz atua em diversas frentes do setor audiovisual
FOTO Richner Allan/ Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Carmen Luz é uma mulher para além das definições. É possível dizer que ela é artista, realizadora audiovisual, produtora, ativista, professora, curadora... “Estou transitando” me diz ela em uma conversa por telefone transcorrida em fevereiro deste ano, quando ela falava do seu Rio de Janeiro natal. Carmen foi uma das fontes ouvidas para a reportagem A força manifesta do coletivo, publicada no mês passado, na Continente #243, em que ajudou a amplificar a principal questão levantada na pauta: a partir de articulações em redes, as mulheres se insurgem contra o machismo e a misoginia que ainda imperam em sets e festivais.
“Acho importante, não só essa questão de atuação, mas a partir dos meus desejos, trabalhar como artista, trabalhar com curadoria, buscar a linguagem, o aperfeiçoamento dessa linguagem e do próprio ativismo. Penso que existem muitas maneiras de nos ativer pelo cinema e assim multiplicar as possibilidades de inserção”, comenta Carmen. Ela sabe bem da importância de ocupar espaços e reconhece que a luta feminista e feminista já avançou, e não há como retroceder, mas é preciso seguir em frente. “A liberdade é uma luta constante, como Angela Davis nos ensinou, e a nossa resistência tem que ser uma ideia o tempo todo”, comenta na entrevista que se segue abaixo.
CONTINENTE A reportagem de março da Continente #243 traz a força das articulações femininas e feministas para se contrapor ao machismo e à misoginia em sets e festivais. Você estava lá, em Brasília, na gênese da Manifesta. Como vê o percurso traçado desde novembro de 2019?
CARMEN LUZ No momento em que a gente vive, vejo que a Manifesta de 2019 foi fundamental para tudo que está acontecendo no cinemão, na indústria, nos festivais, um pouco “entre aspas” mesmo. Porque me refiro a esse lugar dos festivais, do mainstream, dessas grandes produções e entendo que as pequenas produções já estavam sofrendo, e uso a palavra “sofreram” no sentido de que foram muito mais rapidamente afetadas pela nossa resistência, pelo nosso ativismo constante... Essas produções independentes já estavam mais afetadas pela nossa resistência, mais agulhadas pelas nossas incomodações que vêm se tornando ações efetivas. A partir daquele movimento, da Manifesta no Festival de Brasília, essas incomodações se generalizaram. A janela de Brasília foi muito forte e se espalhou por outros festivais grandes. Teve a Manifesta no Festival do Rio, com adesão da própria Ilda (Santiago, uma das diretoras do festival), tendo a Bruna Linzmeyer como mediadora, e depois um esforço para espalhar essa questão por outros festivais. Ou seja, virou um movimento nacional, de mulheres realizadoras, mas não somente realizadoras, também críticas e curadoras de cinema.
CONTINENTE Um movimento nacional que, como tudo no mundo, também foi impactado pela pandemia.
CARMEN LUZ Sim. Mas existem as janelas da tragédia... A pandemia é uma tragédia e nós, artistas e ativistas, temos esse velho hábito de, como água, buscar passagem em qualquer pedra. Acho que a gente fez isso e as nossas ações do passado se sedimentaram, digamos assim, e encontraram muita passagem na pandemia. A janela da internet fez com que muita gente se conhecesse e pudesse colocar a boca no trombone. As mulheres fizeram isso como ninguém, as travecas fizeram isso como ninguém, as mulheres trans, os homens, trans, essa galera LGBTQIA+, junto com muitas outras mulheres, indo além de uma perspectiva mais heteronormativa: todas elas fizeram muita diferença para o que está acontecendo hoje.
CONTINENTE E o que está acontecendo hoje, Carmen?
CARMEN LUZ Olha, eu me inspiro sempre na Angela Davis: a máxima, a premissa básica para nós, mulheres e artista de todas as tendências, de todas as valorizações sexuais, o nosso lema deve ser lembrar, sempre, que a liberdade é uma luta constante. Para nós, a ideia de resistência é o tempo todo. Porque a gente sabe, e temos visto, que a cada conquista, existem três, quatro mil retrocessos, então infelizmente a gente não descansa. Temos que estar atentas o tempo inteiro. Não gosto do discurso da guerra. Acho que, na ancestralidade, gosto do discurso da batalha. É o que que nos caracteriza: nenhum jogo está jogo. Porque jogo não é partida, jogo é jogo.
Grupo de mulheres que se manifestou no Festival de Brasília, em 2019.
Foto: Thaís Mallon/Divulgação
CONTINENTE E nós ganhamos algumas partidas, mas o jogo está longe de acabar.
CARMEN LUZ Exato. É um jogo de longo prazo. Alcançamos alguns caminhos, muitas partidas foram ganhas, mas precisamos realmente espalhar a nossa atuação até ter uma posição equânime de direitos. Em uma sociedade neoliberal como essa, com um cinismo muito grande, sempre há um discurso cínico em relação a nós. Então, nem sempre temos essa equanimidade nos nossos sets, aliás, dentro e fora deles. Mas como sempre lutamos. É uma luta constante. Até porque o cinema narrativo clássico ainda reproduz o arcaísmo da sociedade mundial. Nele, nós ainda somos menores, e tem até cinema que não fala isso, mas faz, e nessa sua linguagem ainda é como se fôssemos a costela.
CONTINENTE Mas já avançamos, não?
CARMEN LUZ Penso que avançamos muito nas nossas narrativas libertárias, digamos assim, fugindo de certos padrões hegemônicos da supremacia machista, que ainda está aí, hetero e patriarcal. Nesse sentido, é certo que avançamos, mas às vezes ainda vemos, na linguagem generalizada da TV aberta, nos horários conservadores, ou mesmo na TV paga, dois lugares no mesmo filme ou em um mesmo produto audiovisual. De um lado, essa narrativa nossa, ativista e libertária, e, às vezes no mesmo programa, vemos o completo avesso disso. É como se deixasse uma ideia para o público: a discussão está posta, agora é com vocês. E a gente vê essa diferença de grau. Às vezes, são três ou quatro possibilidades mais conservadores para uma janela mais livre. Esse equilíbrio de forças continua muito presente nessas programações mais abrangentes, digamos assim. E nós, dentro das nossas produções, nos canais em que conseguimos entrar, estamos tentando fazer diferente, para fazer jus ao que não dá mais esconder.
CONTINENTE E o que é isso?
CARMEN LUZ Bem, a grande novidade que é, na sociedade brasileira, não dá mais para invisibilizar as mulheres, sejam elas as mulheres negras ou as mulheres indígenas, como também não dá para invisibilizar nenhuma pessoa que está dentro de uma radicalidade LGBTQIA+. Esse tempo já passou. É aquilo que gosto de pensar como mais uma premissa nossa, dessa vez de uma outra mulher negra, a Conceição Evaristo. Até já virou chavão, mas vamos lá: “eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Preciso fazer um adendo aqui, para não romantizar essa frase: não é que nossos corpos não sejam abatidos, pois sabemos que, em muitos casos, e talvez até mais do que antes, as mulheres continuam sendo vítimas de violência. Mas é porque nossa revolta está a graus ilimitados; para nossa revolta, há graus ilimitados. Se há mais mortes para nossos corpos, a novidade é que a gente se reproduz muito mais. É o que aconteceu com Marielle. Quem matou Marielle? Sabemos que foram as forças conservadoras, que tinham o objetivo de nos parar, mas o que aconteceu foi o contrário: não só não paramos, como elegemos outras de nós.
CONTINENTE Estamos em deslocamento, em um movimento na política que, assim como a Manifesta, já passou do ponto de não retorno. Você diria que já não há mais como retroceder?
CARMEN LUZ Não podemos parar, nem na sociedade brasileira, nem na sociedade mundial. Temos muita força, mas não quer dizer que a batalha está ganha. A gente ainda vai chorar muito, mas a gente tem passado como a água passa pelas pedras. Temos rido muito também. Pois, a cada vitória que conseguimos, é uma alegria. Não estamos somente no lugar da tristeza, mas também choramos para lavar a dor e também choramos de alegria para que cada vez mais escoem as benções sobre nós.
CONTINENTE Como você percebe a sua atuação nessas lutas constantes, Carmen? Como você encampa esta luta, seja como realizadora e pesquisadora, seja como integrante de júris, como no Festival de Brasília de 2019, ou como curadora?
CARMEN LUZ Penso que temos que cavar espaços. Não tive o desejo, por exemplo, de me tornar curadora por isso, meu desejo é de outra ordem, mas me tornei curadora também para influenciar nesse sentido. A minha atuação em Brasília foi muito nesse sentido, de chamar para pensar e analisar essas obras, feitas por mulheres, e tentar entender justamente o caminho. Isso é política. A política, aliás, está em todos os lugares. Temos que pensar em aprender também com as outras experiências de sermos mulheres. É também desse lugar que estou falando: atenção para as múltiplas e muitas formas de sermos mulheres. Como curadoras, por exemplo, a gente deve pensar então para além do gênero, olhar para aquelas produções cujas realizadoras, ou realizadores, já não se enquadram mais na questão de gênero. O que essas pessoas estão dizendo?
Angela Davis e a tradutora Raquel de Souza, quando a pensadora e ativista esteve em São Paulo, em 2019. Foto: Luciana Veras
CONTINENTE Essa mirada e essa escuta têm que estar abertas e atentas o tempo inteiro, então?
CARMEN LUZ Isso, um olhar sempre atento. Para tentar ver, por exemplo, quais os homens que a gente pode tornar nossos aliados. Essa ideia de aliança, de convencimento, isso é política. Todo júri, toda curadoria, toda programação é política. É disso que se trata. E é justamente por isso que a gente precisa entender que tudo é um papel político e que a arte está absolutamente ligada às questões sociais do mundo. Infelizmente, a sociedade ainda precisa se feminilizar, precisa se tornar uma mulher. Porque ainda não é. E nós, como mulheres, precisamos trabalhar para que a sociedade se torne mulher. O pensamento feminista, aberto, profundo, tem que estar em jogo até que não seja mais preciso colocá-lo em todos os aspectos. Porque aí, sim, o mundo vai estar libertado do patriarcado radical que só faz reproduzir o capitalismo.
CONTINENTE A liberdade é uma luta constante.
CARMEN LUZ Sim, sim, minha irmã, e a gente precisa ter muita força ainda. Porque vai demorar. Mas temos que atentar aos avanços. Uma das questões em que já ganhamos muito, no campo da produção audiovisual, é no que se chama de cinema negro, por exemplo. Avançamos exponencialmente: temos uma quantidade enorme de mulheres visibilizadas nesse gênero, digamos assim, nesse nome de cinema, sob esse guarda-chuva do que cinema negro. Estamos entrando nas janelas, graças à força do ativismo negro, dentro dessa perspectiva de que a sociedade não para de nos matar, mas nós não paramos de nos reproduzir e invadir o espaço oligárquico, das elites. Então, vai demorar até que o cinema e o audiovisual seja esse lugar onde todas as mulheres possam ser e atuar com liberdade total, mas vamos passando, como água, e com nossas ideias e pensamentos, no meio das pedras, até ter uma sociedade melhor, no Brasil e no mundo, para todos nós. Para a mulher trans, para a mulher negra, para a mulher LGBTQIA+, para todas as mulheres.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.