“Viver é muito perigoso”: no Brasil de 2050, em uma comunidade localizada na periferia urbana de uma metrópole que pode ser Rio de Janeiro, São Paulo, Recife ou Salvador, o professor Riobaldo se integra a uma organização criminosa para estar perto de Diadorim, um bandido que o fascina e a quem havia conhecido ainda menino. Esta é uma sinopse improvisada para Grande sertão (Brasil, 2023), filme de Guel Arraes em exibição em diversas cidades brasileiras desde a primeira semana de junho. Embora etimológica e ontologicamente se trate de uma adaptação de Grande sertão: veredas, o inventivo e indomável romance que Guimarães Rosa publicou em 1956, é uma obra que reconfigura a ideia de “adaptação”.
Porque Grande sertão, com suas guerras entre policiais e criminosos a espelhar os conflitos entre os bandos de jagunços que ilustram a vertigem narrativa de Rosa, menos converte e mais transpõe; menos ajusta e mais recria; menos imita e mais amplia – tudo isto com a mesma âncora profunda que alicerça a matriz literária: uma história sobre “a flor do amor” com seus vários nomes e sobre o “irremediável extenso da vida” que se descortina após o encontro entre Riobaldo (Caio Blat) e Diadorim (Luisa Arraes).
Um Riobaldo mais velho, de barba e cabelo longos, quase um ermitão, sai de um camburão para chegar às ruínas do lugar onde outrora ele dava aulas: é assim que começa a narrativa fílmica, estabelecendo o mesmo ponto de partida do livro – são as memórias do narrador que lemos/vemos, em um longo flashback de porosas fronteiras entre passado e presente, memória e ausência, desejo e saudade. “Quem sabe não é uma documentarista que está ali, escutando Riobaldo e registrando sua história?”, conjectura o diretor Guel Arraes em conversa por telefone com a Continente, dias depois da sessão hors concours transcorrida no Cineteatro do Parque, no centro do Recife, na abertura do 29º Cine PE.
Para forjar um novo sertão a partir do que Guimarães Rosa erige, Guel arregimentou parceiros de longa data, a exemplo do cineasta Jorge Furtado, com quem assina o roteiro, e da realizadora Flávia Lacerda, que responde pela direção de 2ª unidade e pela produção artística do longa-metragem, e teve a liberdade para pensar numa escalação de elenco que expande os contornos de cada personagem – Rodrigo Lombardi é Joca Ramiro, o chefe do bando, ídolo de Diadorim; Luis Miranda é Zé Bebelo, o líder da polícia, cujas práticas e vestes remetem a um totalitarismo distópico; Eduardo Sterblitch é Hermógenes, a encarnação do mal, o diabo para Riobaldo, que ao longo do livro/filme se interroga diversas vezes sobre uma possível aliança com o tinhoso Satanás.
E também o faz em duas personagens femininas que ganham, na tela, mais ação do que nas páginas: Otacília (Mariana Nunes) e Nhorinhá (Luellem de Castro). Aliás, a Nhorinhá de Luellem é faísca e fogo quando entra em cena, protagonizando uma cena que rompe com a ficção de Rosa e vislumbra uma possibilidade de triangulação sensual entre ela, Riobaldo e Diadorim. “Como seria se Diadorim estivesse com Nhorinhá? O que poderia ser mostrado?”, indaga a pernambucana Flávia Lacerda, que dirigiu esta e outras cenas durante as quase seis semanas de filmagens, em 2021: “Acabamos optando por não mostrar muito, mas deixar a cena com uma alta carga de sensualidade”.
Grande sertão, com o poder persuasivo da imagem, é mais explícito do que seu cânone literário, não há dúvidas, mas a atração que Diadorim exerce sobre Riobaldo, como um ímã, como uma febre ou uma neblina, já estava lá, desde o princípio: “Ao por tanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já disse. Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado a lado, par a par, a vai-a-vida inteira. Que: coragem — é o que o coração bate; se não, bate falso. Travessia — do sertão — a toda travessia”, escreve Rosa.
A coragem de encontrar o real no meio da travessia desemboca, no cinema que Grande sertão propõe, no furor para experimentar. “Uma leitura mais pop, contemporânea, da violência em si, da espetacularização do sangue, foi uma ideia desde o início, quando começamos a trabalhar com o livro… Uma estética grandiloquente, meio Quentin Tarantino, meio Ran, de Akira Kurosawa, com manchas de sangue na parede, mais gráfica e plástica, mas tudo com um quê de mentira, um tanto over, para trazer esse lado exacerbado da violência urbana”, comenta Flávia Lacerda à Continente.
Um pouco antes do lançamento em 332 salas no Brasil inteiro, esta produção da Paranoïd Filmes, com coprodução da Globo Filmes e distribuição da Paris Filmes, foi exibida em uma sessão gratuita no Complexo do Alemão, um território fluminense em disputa, como a comunidade do filme. “Depois da sessão, uma senhora veio dizer que aquilo tudo era igual à vida dela. Só que, na vida dela, ela sentia muito ódio, mas ali, no filme, ela não sentiu este ódio. Talvez seja esse o papel da arte: trazer uma luz, uma outra leitura”, conta Flávia.
É prematuro cravar, agora, os caminhos que Grande sertão há de percorrer. “A gente fez o filme também pensando na questão do streaming e da TV, que é onde hoje em dia você tem um público até maior”, antecipa Guel Arraes, garantindo que há conteúdo para uma série a ser exibida, talvez em 2025, na Globoplay. Da primeira exibição pública, em novembro do ano passado, no 27ª Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia, a este mês em que este “épico pop” finalmente entrou em cartaz, os mistérios de Riobaldo, Diadorim, Joca Ramiro e Hermógenes persistem em seduzir, incandescer, encantar… Afinal, com seus elementos metafísicos, políticos, filosóficos, eróticos e transcendentais, “esta é uma história de todos os tempos”, nas palavras do diretor.
CONTINENTE: A primeira pergunta é sobre a decisão de não transpor uma obra-prima da literatura para o cinema, e sim pensar na recriação de um novo sertão a partir aquela vastidão que é Grande sertão: veredas, considerado por muitos um livro difícil e incontornável. De onde veio a ideia de propor um novo sertão e levá-lo para uma comunidade periférica, meio favela contemporânea, meio distopia, que poderia estar, sim, no Rio de Janeiro, mas também em São Paulo ou ainda no Recife?
GUEL ARRAES: Exato: é qualquer periferia de qualquer grande cidade do Brasil… Acho o seguinte: toda vez que você faz uma adaptação de uma história de um nível de época, fala também da sua época. Não estou falando da época dos jagunços, falo de 1956, que é a época em que Guimarães Rosa escreveu Grande sertão: veredas – ali ele não estava falando apenas do final do século XIX, início do século XX, mas também da sua época, de 1956. Ao levantar questões como as do Riobaldo, ele também fala do Brasil daquela época em que estava escrevendo. Toda história de época é assim… Quando a gente retoma, em 2020, uma história escrita em 1956, você tem que falar de 2020, de 2023, mas não quer dizer que você precisa atualizar para depois, como em 2050, como a gente fez, mas você precisa trazer o dia de hoje para o que está falando. E a gente se deu conta, o Jorge [Furtado] e eu, que essa guerra que Guimarães narra a partir de 1956, e que se passa no livro nesse tempo entre os séculos XIX e XX, é a mesma guerra de hoje: a mesma guerra urbana entre polícia e bandidos acontece com esta mesma estrutura. Assim como o sertão de Minas era um rincão perdido, onde jagunços e fazendeiros tomavam conta, aqui a favela termina sendo um rincão perdido no meio de uma grande cidade, onde o poder público não chega direito… Então é a mesma configuração. Se o Estado vem para tomar aquele poder, as pessoas que se organizaram naquele local vão se organizar também para a luta. E é muito interessante que, depois que a gente começou, e já estava do meio para o final do roteiro, com essa decisão tomada havia muito tempo, saiu um livro até pela Cepe, escrito por Silviano Santiago, sobre Guimarães Rosa…
CONTINENTE: Genealogia da ferocidade, lançado em 2017 pelo Suplemento Pernambuco.
GUEL ARRAES: Exatamente. Neste ensaio, Silviano fala de várias coisas, mas uma das suas grandes teses, e das mais centrais na análise dele sobre o livro, é exatamente a questão do filme: Grande sertão: veredas poderia se passar em qualquer lugar onde houve uma modernização feita às pressas, então você poderia muito bem imaginar esse livro se passando no Carandiru ou numa favela. Evidentemente, você também poderia atualizar essa história fazendo na época: seria possível contar a história de Diadorim, como a gente fez, atualizando a questão comportamental, lá em 1900 e pouco, mas a gente preferiu trazer tudo para 2050.
CONTINENTE: Você e Jorge são roteiristas conhecidos e reconhecidos pelo diálogo ágil, tanto ao trabalhar com texto original, mas também em adaptações. Por exemplo, você adaptou O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, e na TV fez muitas outras releituras, como Comédia da vida privada, a partir de Luiz Fernando Veríssimo. Em Grande sertão, quem conhece o livro vai perceber que frases canônicas – como “o que a vida quer da gente é coragem”, “o real se dispõe pra gente é no meio da travessia”, “o irremediável extenso da vida” ou ainda “a flor do amor tem muitos nomes” – aparecem liquidificadas em um texto que, em tela, tem muito a pegada de vocês dois. Como foi o desafio de trabalhar esta costura em cima do cânone?
GUEL ARRAES: A prosódia é praticamente 100% do Guimarães. A gente inventou muito pouco e quando foi preciso. O Jorge disse que a gente nunca fez uma adaptação tão fiel e é verdade, porque a gente era um bordado para você usar os diálogos do livro. Porque tudo é amarrado por Riobaldo: são poucos diálogos, é quase um monólogo, né? Às vezes, ele cita falas de alguns personagens, mas na maioria das vezes, é um monólogo de Riobaldo, então você tinha que fazer um bordado para atribuir falas de Riobaldo na boca de outros personagens. Era uma redistribuição. O trabalho do diálogo foi realmente bem diferente, porque a gente pouco recriou as frases; o que a gente fez foi recolocar em outros contextos e fazer algumas emendas de coisas e situações.
CONTINENTE: Como quais, por exemplo?
GUEL ARRAES: Tem uma situação típica do filme que não tem no livro que é a morte da criança. O que é que a mãe da criança vai dizer? Ali, não tem essa situação no livro, então aquele diálogo tinha que ser inventado. Outras situações são como as falas de amor de Riobaldo e Diadorim: tem uma frase que está na página 20, outra que aparece na página 100 e uma outra na página 540, entendeu? A gente fez uma colagem, fazendo esse bordado entre as falas do Guimarães. Outra grande decisão é que este é um filme e, como filme, almeja um público maior do que o livro, então a gente tentou fazer um filme mais popular, pensando sobretudo na TV, porque o cinema hoje está muito difícil.
CONTINENTE: Você diz isso em termos de linguagem, Guel, para gerar uma maior agilidade?
GUEL ARRAES: É. Por exemplo, algumas providências: a gente contou a história na ordem cronológica. O livro só começa a ordem cronológica a partir da página 90, mais ou menos, que é quando Diadorim encontra Riobaldo menino. As primeiras noventa páginas são um fogo de artifício de lembranças desconexas de Riobaldo. É tanto que, quando começa, Joca Ramiro está morto, mas depois que começa a ordem cronológica, ele reaparece. Além da prosódia barroca, o livro tem um início fora de ordem que desorienta e muito os leitores – inclusive eu mesmo. Eu adorava Guimarães, mas, como muita gente, tive que começar três ou quatro vezes até engatar. Tem um crítico dele que diz que o livro começa assim, mas que, a partir lá da página 90, entra numa “estrada real”. Então já começamos nessa “estrada real”, pegando alguns acontecimentos e falas dessa primeira parte e colocando em ordem cronológica, recortando reflexões filosóficas e poéticas e trazendo para o primeiro plano a trama do livro, que é uma trama maravilhosa de aventura, de guerra e de amor. Se você for ver o embate entre Zé Bebelo e Joca Ramiro, por exemplo, é um roteiro.
CONTINENTE: Este embate explode na sequência do julgamento…
GUEL ARRAES: Pois é, é o julgamento de um policial que sai da polícia e volta para entrar no bando e vingar o cara a quem ele foi fiel… É uma história de todos os tempos: você podia contar na Guerra de Troia, você podia contar usando cavaleiros medievais ou podia ser uma nova versão do Blade Runner.
CONTINENTE: E ao fazer isso, vocês condensaram histórias e personagens. Medeiro Vaz, que é um nome muito forte no começo do livro, não existe em Grande sertão, mas Joca Ramiro ganha a mesma força, ainda mais sendo também, como na matriz literária, o pai de Diadorim. Zé Bebelo, que é um personagem fascinante, ganha um fim diferente no filme, que casa bem com a narrativa criada para ele como líder daquela polícia totalitária. Aliás, falando neste personagem, de onde vem aquela caracterização? O personagem parece ser meio do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o BOPE, de Tropa de elite, e meio da série The handmaid’s tale.
GUEL ARRAES: É isso mesmo. Meio nazista, meio alemão da I Guerra Mundial, de 1914, e meio BOPE.
CONTINENTE: Houve então o trabalho de amalgamar e redistribuir as falas e também a liberdade de redesenhar os personagens e definir quais não serviriam para o cinema ou quais poderiam se expandir.
GUEL ARRAES: De sintetizar, né? Para não ficar uma profusão de personagens e de coisas em que você se perde. Teve um pouco essa preocupação de não vulgarizar, mas tornar um pouco mais pop.
CONTINENTE: Falando de pop, quem acompanha sua carreira no cinema e na TV sabe que você é um realizador também reconhecido por esta linguagem ágil e pop. Como foi o trabalho de pensar, junto com o fotógrafo Gustavo Hadba, uma composição pop para a imagem de Grande sertão? Comumente, o sertão é tratado com aquela saturação, as cores estouradas, o azul azulão e o ocre da terra e o filme traz um tom frio, uma fotografia meio futurista, até meio Blade runner, como você falou.
GUEL ARRAES: É, mas pensa bem: às vezes é um certo cacoete esse sertão cor de barro, não é? A gente discutiu bastante isso, Gustavo, Flávia (Lacerda, diretora de 2ª unidade e produtora artística do filme) e eu, e falou bastante dessa fotografia. Das 8h da manhã às 16h30 da tarde, o sertão é saturado de luz. É todo estourado, como se só existisse o nascer do sol e o pôr do sol. Enfim, pode-se escolher o que quiser, na verdade, mas o que a gente pensou foi numa luz tropical – que tem no Rio de Janeiro, que tem na favela, mas que tem e se sente no sertão, que é uma luz muito estourada com os interiores se fechando na sombra. Um contraste grande entre fora e dentro e o diafragma muda muito de uma hora pra outra. Então a gente escolheu um exterior meio saturado, quase Vidas secas, mas que combina com o calor do Rio, do Recife ou de Salvador, na periferia de onde for, e os interiores mais sombreados, mais recortados, porque muitas vezes você está dentro de um casebre, onde as janelas são pequenas para você manter, ali, um pouco de ar fresco. Esse contraste foi o escolhido, que lembra o sertão propriamente dito, mas que é realista numa locação de favela.
CONTINENTE: Que parte daquelas imagens é locação mesmo e que parte teve que ser construída no computador?
GUEL ARRAES: O primeiro plano, por exemplo, é todo computador. Mas o resto é meio misturado: tem muita cenografia, porque as ruas estão meio em ruínas, mas aí às vezes quando você atira pra cima, tem real com coisa completada em digital.
CONTINENTE: Essa mistura já faz parte da linguagem contemporânea do audiovisual. O aspecto pop do filme ganha muita força com as sequências de música, como no baile da coroação, digamos assim, de Joca Ramiro. Como foi o trabalho de criação da trilha sonora original, para fazer aquele “pancadão” ali, que é a cara do funk carioca, mas também pode ser pensado como o que se vê nas periferias daqui do Recife com o brega funk, por exemplo?
GUEL ARRAES: A música foi algo que a gente perseguiu com grande dificuldade e foi muito bom quando Beto Villares começou a nos trazer esta música. Porque a guerra na favela já é um subgênero do cinema brasileiro desde Cidade de Deus, criado por Fernando Meirelles. Eu falava brincando para ele, e era verdade, que a gente estava fazendo o “antifavela movie”, porque era uma releitura e porque filme de favela e série de favela já viraram um gênero também no streaming. A linguagem que o Fernando implantou no Cidade de Deus, e que passou a ser replicada, bebe no documental, na notícia, com muita câmera na mão, com uma imagem que parece real… Parece que aquilo está acontecendo aqui e agora. Como nós partimos de uma linguagem poética, operística e tal, a ideia era entender que se está numa favela sem se referir aos parâmetros do “favela movie” – ou seja, não é câmera na mão, parece real e não a roupa como ela é, não se cabe falar naturalmente. Isso não caberia no Guimarães. É uma favela, é um pouco distópica, se essa guerra durasse muito tempo, como seria? Se a gente juntasse todas as guerras do Brasil, as guerras em todas as capitais, seria assim? E a música… Era uma tentação pegar a música da periferia, que é uma das músicas mais populares e fortes hoje em dia. Mas aí a gente achava que, assim como a fala é poética, a trilha tinha que ser meio sinfônica. E aí fomos indo por esse lado.
CONTINENTE: Sobre o elenco, Caio Blat surge como um escolha óbvia, até, por ter sido Riobaldo no espetáculo teatral concebido por Bia Lessa. Já Luisa Arraes também participou da peça, não como Diadorim (no palco, quem fez este papel foi Luiza Lemmertz), mas também já estava familiarizada com aquele universo…
GUEL ARRAES: Luisa eu não considero que foi a peça, porque na peça o papel dela não tinha nada a ver com Diadorim, que é um personagem tão emblemático e complicado de fazer. Pela peça não daria para prever… Só o fato de estar ali, no universo do Guimarães, e aquelas falas, e isso os outros atores fizeram sem passar pela peça. O Riobaldo certamente, mas a Diadorim não foi gestada na peça, nem pensada por conta disso.
CONTINENTE: E os outros – principalmente, Luis Miranda, Rodrigo Lombardi e Eduardo Sterblitch – foram escolhidos enquanto você e Jorge Furtado escreviam o roteiro? Tipo assim “talvez Rodrigo dê um bom Joca Ramiro”... Vocês fizeram testes?
GUEL ARRAES: Eu pensava isso junto com a Flávia e cada um deste tem uma explicação. Não fiz teste com esses grandes atores, mas fiz o que sempre faço: quando tenho uma intuição, quando penso num ator para aquele papel, eu volto e vou vendo trechos de personagens dele… Como se fosse o book dele, para ver personagens diversos. Primeiro: todos tinham que ser atores de composição, porque não são interpretações realistas. Por exemplo, o Joca Ramiro: era interessante ele ser um pouco mais velho do que a maioria. Os dois chefes, aliás, têm uma autoridade e um tamanho. Rodrigo traz um pouco isso da sua trajetória de ator, mas, ao mesmo tempo, não basta ele trazer aquela coisa do galã que ele tem, uma autoridade, uma empatia imediata: ele teria que ser um ator de composição. Aí eu o vejo em Meu pedacinho de chão, uma novela que ele fez e em que compôs um personagem farsesco; aí eu o vejo em Carcereiros, em que ele faz um popular; e aí vou vendo aqui e ali, sei que ele é de teatro… E aí vou com fé. E com o Luis… Se o Joca Ramiro é um chefe impoluto, é o arquétipo de chefe, o Zé Bebelo é um chefe diferente. Porque, no livro, ele tem um certo humor, a empatia dele é marcante, é uma criatura de confusão, sem parar quieto.
CONTINENTE: É um personagem bom de fala… Zé Bebelo tem o dom da oratória.
GUEL ARRAES: Exatamente, é bom de fala, engraçado e tal, mas, ao mesmo tempo, que a gente sabe que isso o Luis faz fácil, o que é difícil de perceber, porque ele faz muita comédia, é a autoridade. Não é uma comédia, então vamos pensar assim: se o Rodrigo tem essa grande empatia que descrevi, ao mesmo tempo que é um grande ator e carrega essa pecha de galã, que ajuda, mas que às vezes atrapalha, porque o cara só é escalado para isso, com o Luis a empatia e a simpatia dele levariam Zé Bebelo para um outro lado. É um dos poucos personagens que têm humor também, mas ele não pode perder a autoridade, então tem que ser um ator de drama. Mas aí você vai ver o Luis em Jean Charles, e em alguns lugares, e vê que ele junta as duas coisas.
CONTINENTE: E Eduardo Sterblitch, que interpreta Hermógenes?
GUEL ARRAES: É um personagem muito difícil, não é? Como é que você faz o diabo? O diabo é muito representado, então tem que ser uma composição quase original… O cara tem que ser um criador de tipos e o Sterblitch, além de um grande ator, é um criador de tipos. Então se é um filme em que todo mundo está criando caracterizações sublinhadas, a do Hermógenes tinha que ser sublinhada duas vezes. Mas ele transita pelo cômico, e o personagem não pode ficar engraçado, mas às vezes até fica, o que é ótimo. Ele cria um negócio pavoroso, usando a capacidade de composição de tipos, para criar um demônio original. Já a Luisa eu achava que era isso que ela propôs: fazer um Diadorim menos óbvio, de não ser uma mulher copiando um homem, entendeu? Ser uma construção mais sutil. Se fosse para uma escalação mais tradicional, chamaria uma atriz desconhecida que fingiria que é um homem para surpreender o espectador no final, o que seria quase impossível, pois, com a propaganda do filme, você já saberia que é uma atriz. Com a Luisa a gente fugiu do óbvio e por aí foi… Cada um teve seu caminho.
CONTINENTE: O filme é muito corporal, como o livro é. Como era no set? Houve uma preparação específica para o elenco?
GUEL ARRAES: Sim, a gente tinha uma preparadora corporal, uma coreógrafa e um cara de dublês, para as lutas. Tudo era meio coreografado, como as lutas, e, às vezes, até uma cena comum é coreografada. Por exemplo, a cena quando eles estão no baile e Hermógenes e Riobaldo estão disputando a Nhorinhá, puxando-a. A gente já tem a cena marcada, dos ensaios, então a gente sabe que um vai puxá-la, o outro também, depois puxam os revólveres, mas uma coreógrafa entra por cima dessa marca e cria um balé, afinando a forma final. E das batalhas, o jeito que a gente tinha para fugir do óbvio, até mais por falta de capacidade de produção e menos por evocação da direção, era não querer fazer uma “batalha americana”. Aliás, a gente não teria como fazer, na verdade, então fomos por um caminho mais teatral e aí a coreografia ajudou muito também.
CONTINENTE: Sobre as batalhas, no confronto final, a solução para concretizar em imagens a travessia do Liso do Sussuarão foi colocar Riobaldo, Diadorim e companhia para percorrer os túneis subterrâneos do metrô. Na hora do embate, eles vêm pelo alto, na tentativa de surpreender Hermógenes e seu bando.
GUEL ARRAES: Não tem como fazer cinco batalhas no filme, né? (risos) Porque tem que ter a história… Então, a gente concentrou a produção na grande batalha, que é esta batalha de que você fala. Ali já tem uma pré-batalha, com Riobaldo descrevendo, que é feita quase no gogó, porque é toda com a onomatopeia do escritor, em um texto em que ele fala de “bala estripitriz” e tal… Aliás, todo início da batalha é narrado pelo Riobaldo e pela poesia onomatopaica do Guimarães Rosa. Tudo ali é uma colagem de frases dele, descrevendo tiros, sistemas de guerra, e a gente colocou tudo para ser o prólogo daquela batalha, por si só sendo também uma batalha verbal. A gente foi, digamos assim, fazendo como se dizia antigamente – estilizando um pouco as batalhas. Até porque, se ficássemos na tentativa de mimetizar as batalhas americanas, não teria funcionado.
CONTINENTE: Depois que Grande sertão entrou em cartaz, houve dois aspectos ressaltados em vários textos a circular sobre o filme. O primeiro: escalar Luisa Arraes seria “revelar”, entre aspas mesmo, que Diadorim era uma mulher, como se isso fosse um spoiler, e aí eu me lembro da minissérie produzida pela Globo em 1985, em que Bruna Lombardi era Diadorim para o Riobaldo de Tony Ramos. O segundo é sobre o que seria uma violência exacerbada do filme – sendo que esta mesma violência, com guerras, tiros e mortes, está no livro e na realidade contemporânea do Brasil. Como você lida com isso?
GUEL ARRAES: Sobre a violência, eu acho que você já respondeu por mim, pois é meio isso. É difícil falar dessa realidade sem a violência. E acho que, no caso do filme, a violência também entra por conta da coisa operística… O sangue, quando mata o Hermógenes, espirra de baixo pra cima, quase como um filme de samurais japoneses – a gente viu muito Kurosawa, inclusive, então é uma coisa meio samurai japonês e não muito realista. A ideia era sugerir a violência real, sabe?
CONTINENTE: Uma observação sobre esta questão… A solução que o filme traz para enfatizar a crueldade de Hermógenes, por exemplo, é muito interessante: o personagem atira e usa a mão como um escudo, melando os dedos com aquele sangue que jorra da pessoa que ele acaba de assassinar.
GUEL ARRAES: E o sangue fica na cara dele, pois ele não se preocupa que está matando. É quase uma piada: ele mata a sangue frio e põe a mão para não espirrar no rosto dele, limpando a mão na calça. O Cao (Albuquerque, figurinista do filme ao lado de Diana Leste) pegou essa ideia e fez uma calça toda marcada com o sangue, com os dedos e a mão à mostra. E essa violência da “violência”, assim entre aspas, é meio uma violência de ópera. A vontade ao menos era essa.
CONTINENTE: E com relação a este argumento de que está errado escalar uma mulher para viver um personagem que o narrador só descobre que não é homem no final do livro, você se incomoda?
GUEL ARRAES: Chegamos a passar pela tentação de revelar Diadorim, para o público, logo no início, e só o Riobaldo não saber, para não criar muito essa questão. É tanto que a gente revela Diadorim para o público, diferentemente do livro, antes de Riobaldo saber, que é uma das coisas em que a gente mais mexeu. O que a gente acrescentou a Diadorim é talvez a maior mudança, muito mais do que trazer o livro para a periferia. Até porque, ao trazer o livro para o agora, as palavras e a trama são as mesmas… Os chefes são os mesmos, o roteiro é o mesmo, a gente só trouxe para o primeiro plano a ação dramática do livro. Sobre Diadorim e a escalação da Luisa, eu acho que o que contribuiu para essa escalação, para essa composição, é que ela não é uma mulher que se finge de homem, e sim uma mulher que não cede aos estereótipos. Quando você vê a história dela em volta, ela não está se fingindo de homem: ela é assim desde pequena, como no livro, uma mulher que luta contra os estereótipos. Ela quer ir pra guerra quando uma mulher não pode ir pra guerra, ela quer ser pichadora quando uma mulher não pode ser pichadora; ela não quer usar roupa florida, então você entende isso… Quando você vê a passagem do tempo dela dentro do bando, é para que se entenda que, por conveniência, ela não revela que é mulher, mas que não está se fazendo de homem: ela é assim. Ela é guerreira, é meio artista também, usa uma roupa mais vistosa, com um comportamento e um visual mais andrógino, mas por uma opção dela. Ela não está se mimetizando. No livro, você não vê quem está fazendo aquele personagem; num filme, você tem que escolher e, ao escolher, você já está meio que revelando, então é melhor usar isso a seu favor.
CONTINENTE: Por fim, já que estamos falando de Diadorim, queria que você comentasse a sequência que culmina com a morte do personagem. No livro, Riobaldo vê que Diadorim vai atrás de Hermógenes, mas Guimarães Rosa não descreve a cena. Dentro disso que você falou, de que adotaram mais liberdade, ousadia e arrojo para construir Diadorim, aquela cena toda da morte é bem operística, quase um balé, mesmo com a quantidade de tiros.
GUEL ARRAES: Eu digo que é a sequência mais bem dirigida do filme, que é da Flávia. Sempre digo isso, pois é uma maravilha, fico à vontade para dizer a verdade: é a coisa mais linda, e mais bem dirigida do filme, e fico feliz em dizer que é dela.
CONTINENTE: É uma sequência impactante, com o plano de Diadorim com a faca na mão e aquela gritaria toda, com Riobaldo chegando e gritando “larga a faca”. Ela vai lá e cumpre seu destino… Porque quem leu Grande sertão: veredas, e mesmo quem não leu e está assistindo ao filme chegar àquele momento, sabe que ela nunca iria não matar Hermógenes.
GUEL ARRAES: É porque tem essa coisa do cinema, né? E a gente queria sublinhar… Porque, no livro, quando Guimarães Rosa descreve a morte de Diadorim, você vê pela agonia de Riobaldo… Mas, se quando a gente lê o que está escrito, está sozinho, como é que você vai fazer o espectador viver essa agonia? É um recurso literário, né? E no filme a gente usou um recurso dramatúrgico. O “largue a faca”, que é do roteiro, é aquele negócio que você está num teatro de mamulengo e vem aquela coisa “cuidado, olha o perigo aí atrás”. É para criar um suspense e o suspense é uma maneira de narrar. Outra coisa era a escolha de Diadorim: como Diadorim escolheu morrer? Tudo isso para criar mais dramaticidade, com a transferência de um recurso literário para um recurso dramatúrgico, com essa transposição.
CONTINENTE: A ideia de transposição, de recriação, está presente em todo o filme, já desde o começo, quando Riobaldo chega numa espécie de camburão, dando a entender que ele está preso, e começa a falar olhando diretamente para quem está ali assistindo ao filme. No livro, aquele interlocutor não é nomeado; não se sabe para quem ele está falando, apenas que se trata de algum visitante que chega à fazenda onde ele, já mais velho, mora. No filme, somos nós, o público, aquela pessoa a quem ele se dirige.
GUEL ARRAES: E no final ele dá uma pista, quando diz: “O senhor me ouviu e minha história registrou”, como se tivesse alguém filmando o depoimento dele. Era esse o sentido. E depois ele olha para a câmera e fala com espectador. Mas aí, esse cara da caderneta, que todo mundo atribui, e muita fantasia, que é o próprio Guimarães, que está ali anotando, poderia ser uma documentarista.
CONTINENTE: “Mire veja”, como ele repete incontáveis vezes no livro. No final, Riobaldo aparece todo tatuado, com “Diadorim” e “Viva a lei”, entre outras palavras rabiscadas no seu corpo.
GUEL ARRAES: Como se ele tivesse passado aquele tempo todo na prisão. Foi uma ideia do Caio, porque o Riobaldo é o homem das palavras, então o ator botou no corpo dele as palavras-chave da sua história, das pessoas que ele conheceu… É como se Riobaldo fosse um livro: um livro escrito no corpo.
LUCIANA VERAS, jornalista e crítica de cinema.