“Foi o meu trampolim”
Em entrevista ao site da Continente, Lenine fala sobre a carreira e a obra-prima "Olho de Peixe", cujo show comemorativo aos 30 anos vai ser apresentado no Carnaval
TEXTO Débora Nascimento
26 de Fevereiro de 2025
Cantor apresenta show na segunda (3), na Lagoa do Araçá, e na terça (4), no Marco Zero
Foto Jairo Goldflus/Divulgação
A música popular brasileira tem discos que são acontecimentos, marcos em sua história. Se tomarmos o violão como referencial, alguns álbuns não podem deixar de ser mencionados, como Canções praieiras, de Dorival Caymmi, Chega de saudade, de João Gilberto, Samba esquema novo, de Jorge Ben, Um violão na madrugada, de Baden Powell... Em 1993, Olho de Peixe entrou nessa linha evolutiva do instrumento no país, apresentando o violão percussivo de Lenine.
A chegada do disco do cantor e compositor pernambucano, radicado no Rio de Janeiro desde o final dos anos 1970, provocou uma grande repercussão na crítica e no público ouvinte da MPB, por diversos motivos, a forma de Lenine tocar o instrumento, as melodias, as letras, as misturas de ritmos, as harmonias, a mixagem apurada de um álbum protagonizado por voz, violão e pandeiro, com arranjos e produção sofisticados.
No contexto em que voz-e-violão fazia sucesso nos bares do país e no Unplugged MTV, Lenine, então, provoca uma revolução nesse formato, não somente por acrescentar o “auxílio luxuoso de um pandeiro”, mas por empregar, na sua maneira intensa de tocar, o espírito de uma banda inteira - tal como João Gilberto levou o da escola de samba ao instrumento. O estilo de Lenine gerou um rebuliço em muitos violonistas e amantes do violão, que tentavam reproduzir a sua sonoridade, que ainda inclui arpejos, slides, desrespeitos aos trastes, sobreposições de cordas...
Além disso, algo pouco mencionado sobre os atributos desse disco é que, pela primeira vez, o público ouvia, com muita nitidez, a voz de Lenine – um dos timbres mais bonitos da música popular brasileira. Com o apuro técnico na gravação - que o disco Baque Solto, lançado em 1983, em parceria com Lula Queiroga, infelizmente não contava -, Olho de Peixe proporcionava esse prazer aos tímpanos dos ouvintes. Some-se a isso o fato de que, em 1993, as cordas vocais do artista já estavam mais graves, atingindo uma maturidade, assim como sua forma de interpretar uma canção.
Trinta anos depois, em 2023, o cantor e o percussionista Marcos Suzano reuniram-se novamente para celebrar esse disco importantíssimo em suas carreiras. Realizaram poucos shows. Agora, no Carnaval 2025, o artista tem a oportunidade de apresentar, pela primeira vez, o show desse repertório em praça pública. As apresentações vão acontecer na segunda-feira (3), às 22h20, na Lagoa do Araçá, e na terça-feira (4), às 22h, no palco do Marco Zero, no bairro do Recife, com algumas diferenças em relação ao espetáculo dos anos 1990.
Nesta entrevista ao site da Continente, o artista fala sobre esses shows, a importância de Olho de Peixe em sua carreira, a linguagem de seu violão, mudanças no showbiz e até o "Show da Ponte", que ele fez, em plena Mauricio de Nassau, em 7 de novembro de 1997, no lançamento do disco O dia em que faremos contato, e gerou a criação de uma nova lei, proibindo que seja realizado - novamente - qualquer evento em uma ponte na cidade.
CONTINENTE Você vai tocar, pela primeira vez, o Olho de Peixe em praça pública. Qual é a sua expectativa para esse show?
LENINE A expectativa é a maior de todas. Primeiro, preciso agradecer ao convite da prefeitura. A comemoração dos 30 anos do Olho de Peixe aconteceu dois anos atrás. E eu toquei em alguns lugares, mas muito pontuais. Fiz uns dois ou três festivais. Mas foi isso. E aí, surgiu o convite da gente fazer no Carnaval 2025. Fiquei extremamente lisonjeado, porque trata-se de um projeto que foi o meu trampolim, digamos assim (risos), não só para a música brasileira, mas da música do mundo. Eu passei a viajar bastante, e catapultou e alavancou a minha carreira. E a de (Marcos) Suzano também. Então, a gente chegou num lugar muito pontual de hibridagem. Era um momento onde tinha surgido no mundo a expressão world music para definir tudo que era música que não era cantada em inglês (risos). Mas isso gerou, também, muitos festivais espalhados pelo mundo, com foco nesta música, que eu chamo de música étnica, porque tem a ver com a contemporaneidade da música, mas, principalmente, com a raiz de cada lugar de origem de cada criador. Isso permitiu a gente viajar pelo mundo e pelo Brasil. Então, foi realmente um momento muito especial. E é bacana ver que, depois de todos esses anos, ele continua com esse frescor, gerando uma empatia mesmo, por causa do tipo de mistura e de condução que a gente conseguiu fazer, eu e Suzano.
CONTINENTE Vocês passaram por quais países?
LENINE Cara, eu fiz toda a Europa. Olha, pra você ter uma ideia, no ano de 2000, eu fiquei sete meses e um pouco fora do país. Foram quatro turnês simultâneas de dois meses, dois meses e meio, um mês e meio, sabe? Então, eu pude fazer um mergulho profundo na Europa, mas isso se estendeu para a África, isso se estendeu para os Nórdicos, isso se estendeu pro Oriente, porque eu fui ao Japão algumas vezes. Então, a gente foi a muitos lugares, municiados com a estética e a expressão do Olho de Peixe.
CONTINENTE Você mencionou o ano 2000. É isso mesmo?
LENINE Esse foi um ano muito significativo, porque não era só o Olho de Peixe. O Olho de Peixe iniciou isso. Nós fizemos grandes turnês pela Europa, de trem, nós demos tudo, e era muito ágil a produção, porque éramos quatro pessoas: eu, Suzano, Denilson Campos, que é coprodutor do disco e era quem fazia o som da gente, onde a gente tava, e Marcelo Bueno, que era um agente empresário, que viajamos, e que produziu todo esse volume de apresentações naquele momento, 1995. E isso foi se acelerando e se ampliando a cada novo lançamento, que aí eu fiz O dia em que faremos contato, fiz o Na pressão. Cada vez que eu lançava um projeto novo, eu voltava a percorrer esse grande circuito da música pop e étnica contemporânea.
CONTINENTE A primeira vez que escutei o pandeiro de Marcos Suzano foi com o Aquarela Carioca, tocando no show/disco As aparências enganam, de Ney Matogrosso. Como foi que você chegou até ao nome dele?
LENINE Na verdade, conheci o Suzano nessa banda instrumental que ele tinha, Aquarela Carioca. Tratava-se de um coletivo que tinha o Paulo Muylaert, guitarrista, que já fazia parte de minha banda. Portanto, eu já tinha uma relação com pessoas próximas a Suzano nesse projeto do Aquarela Carioca. Cheguei a gravar com eles num dos LPs que eles fizeram, porque naquela época era LP. O Olho de Peixe foi um dos primeiros CDs. O universo mudou justamente naquele momento. Então, eu conheci Suzano. A gente teve uma empatia recíproca.Tinha a coisa dele ser um harmonizador da percussão e eu ser um percussionista de violão. Então, isso, de alguma maneira, criou um tipo de linguagem muito própria, a maneira como cada um preenchia os vazios do outro. E fazíamos uma malha rítmica e sonora. E isso foi realmente impactante para a maioria das pessoas que víamos, só eu e ele no palco, fazendo aquele som todo, realmente era sempre muito impactante. Independente do lugar que a gente tocava. Evidentemente que, nos países de língua latina, ainda tinha uma compreensão das canções, das letras. E se pescava um pouco mais da profundidade da música que a gente fazia. Mas a gente foi a muitos lugares. E quando você tá tocando na Suécia ou em Moscou, as pessoas não entendem nada do que eu estou cantando (risos). Então, todo o gatilho de sedução que a gente tem é através da música e daquela entrega naquele momento.

CONTINENTE E essa decisão de colocar esse protagonismo no violão e no pandeiro? Em nenhum momento você pensou em gravar o Olho de Peixe com banda? Como foi a escolha desse formato final e dos arranjos?
LENINE A verdade é que cada projeto meu eu fiz de uma maneira diferente. Descobri e me impus a fazer de uma maneira diferente. E sempre pra burlar um sentimento de repetição que sempre nos acompanha, em que está há muito tempo fazendo. Então, fazer disco, pra mim, sempre foi um laboratório de experiência. E eu sempre me impunha um outro caminho. Se aquele caminho eu já segui, eu digo, “não, peraí, vamos por aqui”. E sempre também foi a possibilidade do encontro musical. Eu sempre fiz das produções de meus discos um momento de encontro com pessoas que eu admiro, pessoas que eu vivo, e achei lindo o trabalho. É um momento de troca, de um mergulho profundo no fazer e buscando um ineditismo. Coisa que no palco é outro caminho. Por isso que, pra mim, fica muito evidente que eu sempre tive dois tipos de condutas e atitudes. Uma no que diz respeito aos discos e álbuns que fiz e que faço. E outro é como projetar aqueles álbuns dentro do ambiente do teatro, do palco, do ao vivo. São duas equações diferentes. Eu sempre fiz questão de conjugá-las diferentemente.
CONTINENTE Quando foi lançado, esse disco foi muito impactante para os ouvintes, para os fãs de música, mas, principalmente, para os violonistas. Foi quase, por exemplo, como o Samba esquema novo, de Jorge Ben, ou o Chega de Saudade. Todo mundo queria pegar aquela batida do seu violão. Você tinha a dimensão disso na época?
LENINE Ai, que bom você me perguntar isso e propiciar pensar um pouco sobre isso, porque tudo foi muito intuitivo. Eu não percebi nada no que diz respeito a uma linguagem violonística. Como o ato de compor, mesmo sendo em parceria, tem um momento muito solitário, que é você com o seu instrumento atrás de estímulos para se concretizar em canção. Eu, como eu queria fazer soar só com o meu violão e minha voz o que eu imaginava com uma banda, com uma roupagem sonora, eu passei a usar o violão muito mais como um elemento multifacetado. Enquanto a maioria dos violonistas queriam aprimorar para não ter o trastejado, para não ter o som que interfere naquele quadrante harmônico, eu não. Eu me beneficiei disso. Eu fui atrás das sujeiras do violão. E foi assim, simples assim. Eu sempre procurava uma maneira de estar embutido na canção que eu estava fazendo a linha do baixo, o ritmo, o corpo harmônico. Então eu pensava como banda. E executava meio que sozinho. Eu acho que de alguma maneira isso fez me aprimorar uma maneira e uma linguagem de tocar o violão. E mais do que isso, eu acho que influenciou muito também a minha maneira de compor. Porque, em uma porcentagem muito grande das canções que eu já fiz e que continuo fazendo, o violão é, digamos assim, uma vedete da história. É o protagonista da história. Tem canções que não. Mas, na grande maioria das minhas canções, o violão tem esse protagonismo. E isso, sim, aconteceu. Eu hoje consigo ouvir muitas coisas que eu digo “que bacana, tem um pouco de mim isso aí”. Pelo tipo de expressão percussiva no violão. E isso é uma coisa que muito me orgulha, porque a linha evolutiva do violão brasileiro é uma coisa. Você citou só um, Jorge Ben. A gente tem uma infinidade de criadores que tiveram um violão como, digamos assim, o prolongamento do seu corpo. E eu me enquadro nesse tipo. Então, realmente isso aconteceu. Eu não tinha a mínima ideia que ia chegar nesse tipo de propriedade mesmo, porque as pessoas identificam pelo violão a canção de Lenine. Eu já vi várias pessoas. E quem me ajudou a perceber isso foram os parceiros. Os amigos que estavam comigo há muito tempo. E eu sofro dessa lealdade com os meus pares. Bráulio (Tavares) chegava e dizia, “Ei, rapaz, isso aí é tu. É só tu que faz”. Lula Queiroga também. E passaram a chamar atenção dessa função percussiva harmônica que o meu violão foi desenvolvendo.
CONTINENTE Você é devoto do violão? Você é daquele tipo que acorda e já vai para o violão? Como é a tua relação com o instrumento?
LENINE Essa é uma questão muito ímpar, digamos assim. Porque eu não sou a pessoa que estou com o violão na mão o tempo todo. Muito pelo contrário. Acho que, dos sentidos que nós temos que servem como janela e estímulo para eu fazer canções, o ouvido é dos últimos. Tudo meu é muito pelo que eu vejo. E o violão é um adendo, tem épocas que a gente fica brigado eu não consigo nem olhar pra ele nem ele olha pra mim (risos). Então tem uma coisa cíclica mesmo com o instrumento. Eu não tenho essa obsessão que a maioria dos meus pares que trabalham com o instrumento tem com o instrumento. Estão o tempo todo com e não é o meu caso. Nunca foi o meu caso. Eu, na verdade, recebi geneticamente pela formação uma musicalidade e é ela que eu cultivo, não é o instrumento, não é o violão. Será que eu me fiz entender?
CONTINENTE Sim, se fez entender.
LENINE Então eu tenho isso com o instrumento. A gente não está sempre junto não. Embora eu esteja sempre no palco e, quando eu estou no palco, eu estou com ele, evidentemente. Mas eu não tenho essa relação diária com o instrumento.
CONTINENTE Você acha que o violão está perdendo o protagonismo na música popular brasileira? Você acha que as novas gerações têm uma relação com o violão como as gerações de décadas passadas tinham? Parece que isso está se perdendo. Você percebe isso?
LENINE Talvez. Mas não muda o fato de, se você quer um instrumento para exercitar música, o violão é o mais acessível. É mais barato, você anda pra todo lugar e leva ele. Hoje em dia, você tem outras coisas eletrônicas que você tá junto com você apenas num HDzinho externo e está tudo ali. Também é uma realidade. Mas eu prefiro acreditar que não, que o violão vai continuar sendo um instrumento muito popular no Brasil e que continua gerações de pessoas que, através do violão, tentam cantar as músicas que gostam, como o exercício como o cultivo cultural da música. Então, eu acredito nisso. Mas isso é só uma crença minha.
CONTINENTE Queria que você falasse um pouco sobre a escolha das canções. Quando você foi gravar o Olho de Peixe, na sequência das músicas, elas parecem que estão bem linkadas. Como foi essa escolha? Você deixou muita música de fora pra chegar naquelas 11 faixas?
LENINE Ah, que bacana isso. Mas veja só, eu tinha feito um primeiro disco com Lula Queiroga em 1983. E só 10 anos depois eu fui fazer um segundo disco. E só fiz ele porque eu fui o produtor. Então, nesses 10 anos, não só eu compus muito, como eu tive que aprender como produzir, como arranjar, como gravar, isso tudo porque era eu, eu contra o mundo, naquele momento. Então, é natural que, quando eu fiz Olho de Peixe, eu estava com o baú cheio de canções. Baú este que me ajudou a formatar os repertórios dos três discos subsequentes. Eu acho que Falange Canibal também tinha muito daquelas canções. Olho de Peixe, O dia em que faremos contato, Na pressão e Falange Canibal, evidentemente, cada um desses projetos, 80% eram de canções que eu havia já realizado durante esse período desse, entre aspas, “hiato” que pode ter existido. Não foi hiato, porque eu estava lá, trabalhando. Então esse baú, eu acessei até o Falange Canibal, porque depois, teve um evento que mudou, inclusive, minha maneira de compor, que foi a trilha para o Grupo Corpo. Aquilo foi uma experiência muito reveladora para mim, porque eu fui para o estúdio sem nada, a não ser com um banco de ruídos e brinquedos sonoros dos meus filhos. E eu adorei criar ao vivo, simultaneamente: você imaginar um romance e ir criando cada capítulo desse romance, como se fosse uma história só. Isso foi tão importante para mim que, a partir daí, os meus discos, eu procurei ter impresso, em cada um desses álbuns, a urgência do agora. As canções foram todas feitas para um projeto que, previamente, já tinha um título, já tinha um universo e um ambiente que eu já sabia onde ia, porque decupei antes. Portanto, a maneira de compor era completamente diferente. Eu ia para casa, fazia um “monstro”, que é como a gente chama uma proto canção. Aí gravava esse “monstro”, voltava para casa, fazia a segunda canção do álbum; gravava o “monstro” de novo. Depois de 15 dias, eu tinha 15 canções, que eu começava a realmente produzir. Então, isso virou uma espécie de mecânica que eu uso, de certa maneira, até hoje.
CONTINENTE O disco chamou a atenção não somente pelas melodias, pela qualidade das músicas, mas também pela qualidade do som. E eu queria que você falasse um pouquinho sobre esse trabalho que vocês fizeram para o disco chegar nos equipamentos com uma qualidade incrível.
LENINE Isso fez muito parte do processo todo, a busca de uma excelência sonora de produção, desde o início. Procuramos os microfones todos valvulados, os pres (pré-amplificador) Neve, foi tudo com os melhores equipamentos que se tinha naquela época. Gravamos tudo analogicamente, no fitão, 2 polegadas e meia. Teve toda uma preocupação em capturar da melhor maneira, porque sabíamos que íamos mixar o projeto em Nova York, em um estúdio que era um sonho de consumo para mim, Suzano e Denilson. Chamamos uma pessoa para mixar, que o Suzano havia conhecido em Nashville, que é o centro da música acústica americana. Então, era alguém que já tinha a dimensão do acústico do violão de pau, sem ser elétrico. E todas as matizes sonoras que se consegue com o ao vivo, sendo tocado. E isso foi, também, um grande acerto, porque a gente chegou, realmente, num som muito peculiar, muito profundo. As baixas frequências do disco… É bem profundo. E isso tudo, a gente almejava chegar. A gente tinha como meta mostrar um produto realmente ousado, tecnicamente.
CONTINENTE Lembro de uma entrevista sua, já faz um bom tempo, em que você disse que, nos anos 1970, gostava muito de escutar os discos que vinham de fora, exatamente por conta da qualidade do som, da produção. Aí você se aproximou muito do rock, também, nessa época, não é isso?
LENINE Na verdade, se eu tive uma mãe estética (risos), eu acho que essa mãe foi o rock. Eu digo isso porque, lá para os 16, 17 anos, foi quando eu, conscientemente, passei a consumir música como uma coisa visceral e primordial pra mim. Eu tinha 17 anos. Eu tinha tido toda uma formação, por intermédio da minha família, dos meus pais, que eu não acessava, era como um arquivo oculto. Estava lá e eu não sabia. Porque, quando eu entrei na faculdade de Engenharia Química, isso em 1976 para 1977, os DCEs eram o grande ponto de encontro, naquele momento, os diretórios centrais estudantis. E ali se encontravam as pessoas vindas de castas diferentes, de lugares diferentes, de formações diferentes, e dividiam a experiência. É o primeiro grande encontro que a gente tem com o ser humano. É na hora que você descobre pares, pessoas próximas de você, que são completamente próximos de você, e tiveram formações completamente diferentes de você. Naquele momento, eu gostava era do Led Zeppelin. Para mim, o que tinha era o Zeppelin. Lógico que todo aquele rock mais… Porque a gente está falando de um pouquinho antes do rock progressivo. Mas aquele formato, o Zeppelin e The Police, digamos assim, foram... Eu sempre falo isso, tem um peso para mim, como se fosse o Beatles para a geração anterior à minha. Então, foi um norte, o rock. E estava presente. Tanto é que, na minha maneira de tocar, o violão acústico é muito roqueiro. Tem uma contundência, uma visceralidade que está muito associada ao rock.
CONTINENTE Led Zeppelin, na época, era realmente o topo do rock ao vivo. Tinha um peso muito forte.
LENINE No DCE, tinha uma vitrola que estava tocando sempre, vários discos. Um dos amigos, um dos novos amigos que eu acabava de fazer, me mostrou um disco e perguntou se eu conhecia. “Tu conhece Jackson do Pandeiro?” Eu disse, “Rapaz, não.” Era O Rei do Ritmo. Aí ele disse, “Eu vou botar aqui para tu ouvir, que tu precisa ouvir isso”. Aí, quando a agulha tocou no vinil e deu aquele… Quando a agulha entra no sulco, disparou... Foi como uma chave de um arquivo oculto. Eu cantei o disco todo. Do início ao fim. Eu não só conhecia aquele disco, como eu conhecia profundamente as letras. Eu saí cantando “Morena Bela…” Então, isso tudo, para mim caiu como uma avalanche. Eu voltei para casa, fui na discoteca do meu pai, que era ela que nos informava, e readquiri a minha formação musical. Eu reconquistei. Porque aí, eu fui ver que eu conhecia Mário Lanza, eu conhecia Ciro Monteiro, Elizeth Cardoso. Eu conhecia Rimsky Korsakov, Chopin... Eu conhecia músicas napolitanas. Eu conhecia modinhas portuguesas. Eu conhecia música bávara. Porque meu pai ouvia de tudo. Então eu, sem saber, descobria que eu tive uma formação musical, e ela foi muito ampla e muito diversa. Eu acho que isso fica muito claro. Ao longo do tempo, eu fui fazendo os meus projetos, e sempre imbuído por esse tipo de fusão ou confusão estética (risos), misturando tantas coisas. E eu acho que isso fica evidente no meu repertório.
CONTINENTE Jackson é, como diz o clichê, uma escola. Você escutar Jackson é uma aula de canto, de tudo…
LENINE Não só de canto, de ritmo. Ele jamais repetia qualquer sentença. Ele tocava a mesma canção diversas vezes, e sempre dividia de maneira diferente.
CONTINENTE Uma coisa que João Gilberto foi fazer depois, também. Eu acho que ele escutava Jackson. É uma coisa que pouco se fala.
LENINE Porque é nordestino. Nordestino que não tivesse escutado ele, é uma heresia. Mas eu falo na história da divisão. Eu acho que o João inventou uma outra coisa. Mas eu falo muito naquela coisa da pessoa que canta e que, ao cantar, está sempre exercitando uma criação livre. Jackson era assim. João, não. Ele ia, ia, martelava, até chegar no primor maior. Jackson, não. Jackson era mais como Miltinho, digamos assim. Ele estava sempre dividindo de forma diferente e se divertindo fazendo isso.
CONTINENTE Eu vi um show de João Gilberto no Teatro Santa Isabel. Toda vez que ele cantava era totalmente diferente da forma como cantou anteriormente a mesma estrofe. E tinha essa coisa em Jackson, mas isso era mais estudado, em João. Você está dizendo que, em Jackson, era uma coisa mais espontânea, não é?
LENINE Perfeito. Ele tinha uma rusticidade nessa criação. E eu acho que João tinha um academismo, até. Uma excelência pela procura, pelo exercício, pela repetição. Isso ficava evidente quando ele fazia aquela voz, com aquele veludo, e costurando harmonicamente cada canção da maneira própria dele. Ambos têm a coisa do divino. Só que Jackson tinha uma rusticidade, e talvez pelos elementos sonoros que ele criou e que ele executou, eu esteja mais próximo disso, e daí encontrar em Jackson muito mais elementos presentes no meu trabalho do que do João, por acaso.
CONTINENTE Você chegou a se encontrar com Jackson?
LENINE Não. A minha maior frustração foi que, em vida, eu não fiz um som com ele. Fiz com o Gonzaga, que é também o mestre maior! Fiz com o Dominguinhos, que, pra mim, é o maior de todos!
CONTINENTE Quando o Olho de Peixe foi lançado, ainda não tinha saído o Da Lama ao Caos e o Samba Esquema Noise. Então, quando esses discos saíram, para você, eles vieram como um acréscimo a um grande movimento que estava acontecendo aqui, somando também ao Olho de Peixe, que estava bombando, vamos usar essa expressão, ou você acha que esses discos chegaram a ofuscar a carreira do Olho de Peixe em Pernambuco?
LENINE Ao contrário. Uma geração que estava acompanhando esse surgimento descobriu o Olho de Peixe junto. Não, acho que não. E acho, também, que o Mangue nunca foi um “movimento”. O Mangue foi uma maravilhosa movimentação pela criação. Não tinha unidade estética. O Mundo Livre era uma coisa, o Nação era outra, completamente! E o Mestre Ambrósio era outra, ainda! Eu tive a impressão… A primeira vez que eu vi a Nação Zumbi, eu vi no Recife, eles não tinham lançado o disco ainda. Eu tenho essa compreensão de que uma coisa é fazer disco e outra coisa é fazer show. Eu tive a oportunidade de ver o show do Chico antes de ouvir o disco. Então, o impacto daquilo num disco não chega. Por mais que você seja primoroso na gravação, a coisa asséptico-hospitalar que é um estúdio… É muito difícil você preservar uma coisa visceral, uma entrega, daquela maneira que eu vi, com a Nação Zumbi se apresentando. Ali eu tive certeza, “Eita, olha ali!”, o mesmo tipo de hibridagem que a gente estava fazendo, as pessoas estavam fazendo. E reconheci isso na primeira vez que vi, antes mesmo deles gravarem Da Lama ao Caos. Eu acho que teve uma consonância de ideias e de criação, de entender a mistura, de dialogar com a música étnica, global, contemporânea e a música ali em volta. É raiz em antena, aquela velha história.
CONTINENTE Quando você lançou Olho de Peixe, já estava no Rio há um bom tempo, e é curioso, porque tanto a sua carreira quanto a carreira de Geraldo Azevedo e de Alceu Valença, estouraram a partir do Rio, não é?
LENINE Sim, mas, naquela época, ainda tinha essa coisa, os dois centros culturais do país eram São Paulo e Rio. Você não tinha outra opção, para ampliar, porque opção, a gente sempre teve, teve a Rozenblit, teve aquela produção maravilhosa… O Bando do Sol, Paêbirú, a Rozenblit lançou várias coisas. Mas isso, as pessoas não tomaram conhecimento, de uma maneira…
CONTINENTE …Nacional.
LENINE Nacional! Então, naquele momento, tinha isso. Você era obrigado a migrar para ampliar sua atuação, até porque os grandes programas de rádio, de TV, aconteciam aqui, no Rio e em São Paulo. Eu acho que isso já mudou. E que bom, que mudou. Porque aí surgem novos polos, com um novo tipo de mecânica, com um novo tipo de indústria, até! E isso é benéfico para todo mundo.
CONTINENTE Você vê alguma diferença no circuito de shows? Principalmente no circuito de shows, porque, na forma de gravar, já teve muita mudança.
LENINE Sim, sim. E agora democratizou-se o gravar, mixar, gravar, mixar, masterizar porque está tudo digital, o custo caiu bastante, não é aquela coisa pra iniciado, porque, na minha época quando eu vim pra cá, uma mesa de som e um estúdio eram uma coisa para iniciados, sabe? Eram pouquíssimas pessoas que mexiam naquilo e que entendiam como formatar o que você fazia e botar na fita aquilo. Então isso, hoje em dia, não é mais assim. Hoje em dia, está acessível a todo mundo, esse tipo de artesanato musical. Você cria e agora, com IA, o problema é muito maior! Então tudo mudou, e vem mudando vertiginosamente.
CONTINENTE Mas o circuito de shows parece que está mais sofisticado, com um aparato tecnológico bem maior. Os ingressos são mais caros.
LENINE Não, eu acho que mudou, inclusive, isso também. Eu sou de uma época em que a música ocupava os teatros. Não existiam as arenas, não existiam essas coisas mega, hiper, super, em que se transformou o espetáculo. E, nesse sentido, sim, surgiram, em todos os lugares, festivais que promovem isso e que cobram esses contos. Mas você fazer, como a gente fazia algum tempo atrás, que você fazia uma turnê indo em todas as capitais, fazendo os teatros, com um tipo de permanência. Não é o você vai, faz o show e vai embora. Eu lembro o quanto era prazeroso você chegar num teatro, numa capital de um estado brasileiro, e ficar lá por duas semanas fazendo show de quinta a domingo. Isso era possível, e hoje é inviável. É impossível fazer. Então mudou inclusive isso, os espaços onde a música é executada. Os espetáculos frequentam outros lugares. Deixou de ser no teatro, o teatro ficou só para o teatro. Isso é uma percepção que eu tenho.
CONTINENTE Lenine, faz tempo que ninguém lhe pergunta sobre o show na ponte, quando você quase derrubou a ponte que Maurício de Nassau construiu com tanto esmero? (risos)
LENINE E que o governador criou uma lei proibindo qualquer evento, depois disso! (risos)
CONTINENTE Você motivou a criação de uma lei aqui em Pernambuco.Tem isso no seu currículo, na sua história, e eu vou resgatar isso para as novas gerações, viu? (risos) Porque as pessoas não lembram mais que teve aquele show aqui na cidade, que foi maravilhoso. Eu estava lá e eu realmente temi pela minha vida. Em algum momento, eu não lembro mais qual foi a música em que as pessoas começaram a pular, e eu lembro que você disse, "Olhe, tem que diminuir aí, pulem menos". Foi uma coisa assim...
LENINE Como a gente estava acima da plateia, porque o palco foi montado no topo da ponte, a gente, quando começava uma música que tinha muito beat e todo mundo começava a dançar, eu sentia, de lá de cima do palco, a ponte balançando. E sentia, talvez, muito mais do que quem estava lá embaixo. Então, a minha noção de realidade, naquele momento, estava completamente abalada. Meu Deus do céu! Isso pode cair! Lógico, que foi uma sensação, e isso foi uma memória que ficou até hoje. E ainda bem que eu não realizei o sonho. Porque o sonho considerava a gente estrear O dia em que faremos contato na ponte Maurício de Nassau, no Recife, e finalizar a turnê na ponte original, em Amsterdã, que é cópia da Maurício de Nassau. Eu havia descoberto, na primeira turnê com Suzano pela Europa. O primeiro show que fizemos foi em Amsterdã, num lugar onde funcionava o Museu da Companhia das Índias, olha só que maravilha. E aí, eu passei por uma ponte que ficava junto do museu, "Que loucura é essa? Isso aqui é uma ponte…e tal”. Aí, na época, eu fiz contato com o pessoal da embaixada e eles me confirmaram que a maioria das pontes da época dos holandeses no Recife eram cópias de pontes holandesas, que o Maurício levou isso, os projetos, e realizou novamente em Recife. Então, portanto, é uma cópia real de lá de Amsterdã. Então, ainda bem que eu não consegui realizar o final, porque imagina conseguir realizar isso em Amsterdã! Ficou só como sonho.
CONTINENTE E, pra fechar, você está com algum projeto novo? Queria que você falasse um pouquinho sobre isso.
LENINE Sim. Na verdade, antes da conjugação da pandemia com o pandemônio, eu já começava a estruturar um projeto novo, da maneira como eu te expliquei, que eu primeiro vejo o assunto, tem o título, aí eu vou imaginando um desencadear de canções, os temas de cada uma dessas canções... Isso é um processo, e eu estava no meio do processo, quando surge a pandemia e o pandemônio, e eu, assim como o Brasil inteiro, grande parte do Brasil, entrou num processo depressivo. Eu fiquei muito cinza, durante um tempo bem grande, dois anos, que a gente ficou com um hiato na nossa vida. Isso me fez questionar “o que eu quero fazer mesmo, cara?” Eu tenho a sorte de ter outras paixões, tem a coisa botânica, que arrombou a minha vida, abriu ela de uma maneira, a percepção, minha cabeça, o universo botânico foi encantador. E, durante aquela loucura, eu com as plantinhas, foi a minha salvação. Mas eu, realmente, fiquei muito tocado, fiquei distante de tudo. Não queria mais. Achei, até. Eu não queria voltar mais a fazer o que eu fazia, porque não via muito motivo. E, pra minha sorte, pra sorte de todos, o meu núcleo familiar foi a minha sanidade. Bruno Giorgi, que é o meu segundo filho, que é o meu produtor desde O chão, é a pessoa que divide comigo, é ele que mixa, masteriza, ele realmente foi a pessoa que me mostrou o quanto eu dependia do palco. E a compreensão que eu sempre tive, de que fazer um disco, ou fazer um álbum, era apenas um degrau, numa escada de percorrer o mundo fazendo música. Então isso voltou a me encantar. Isso voltou a me seduzir. E aí eu retomei, agora, o disco, e deve sair este ano, ainda. Mas eu também não estou com muita pressa. O disco já está quase todo finalizado, e deve sair esse ano, ainda. Mais um!
CONTINENTE Deixa eu voltar um pouquinho pra questão da apresentação do Olho de peixe. Vai ter mais gente no palco?
LENINE Sim, a gente fez uma formação, primeiro, na tentativa de chegar próximo da gravação. Porque, na gravação, éramos só eu e Suzano, mas a gente fez outras coisas, gravamos por cima, fizemos vocais, teve uma série de coisas que fizemos por repetição. E aí, pra fazer ao vivo, realmente chamamos, além do Carlos Malta, que estava presente na gravação do disco, um quarteto de pessoas. O Jovi, que também estava presente no primeiro disco, depois o Gabriel Policarpo. Depois a Raquel e a Nega Desa. E aí fizemos um um corpo rítmico para dar esteio às canções do Olho de peixe. Mas, a convite da prefeitura, quando me chamaram pra fazer o Olho de peixe aí, eu peguei o repertório e digo “não, não vou ser só fiel ao Olho de peixe”. E então incrementei o repertório com outras canções que surgiram depois, na minha trajetória, mas que eu imaginei que se adequariam muito bem a esse tipo de formato percussivo e coletivo. Mas o interessante é que, neste Carnaval, pela primeira vez, eu estou fazendo três projetos diferentes! Porque a gente toca em Bezerros, eu e a Spok Frevo Orquestra, que a gente já está há dois anos fazendo um espetáculo junto, que é muito bacana, que a gente faz muito show, até fora do universo sazonal do Carnaval. E faço também a abertura do Carnaval de Olinda, aí com a formação roqueira, eu e a banda. Isso é com repertórios diferentes. Está sendo muito estimulante pra mim, isso.
CONTINENTE Você tem essas opções de shows já prontos. Quem quiser contratar, tem várias opções.
LENINE E, na verdade, como sempre foi na minha vida, vários formatos, várias maneiras. Isso é uma coisa que me ajuda muito a manter um frescor no que eu faço. Porque é muito tempo. São muitos anos fazendo música e fazendo álbuns. E aí, as mecânicas, você vai entendendo elas, e eu continuo querendo chegar em lugares onde eu não fui. Eu continuo da mesma maneira, procurando a beleza com estranheza.
DÉBORA NASCIMENTO, editora-adjunta das revistas Continente e Pernambuco