Entrevista

"Da Lama ao Caos traduziu a vida de muita gente em música"

Cantora recifense Kamila fala sobre o trio Nácar, formado com os músicos franceses Jeff e Dunbaar, que faz o estudo musical "O novo som do mangue", a ser apresentado a partir de shows em 2025

TEXTO Marcelo Pereira

17 de Dezembro de 2024

Foto Renato Filho/Divulgação

O trio franco-brasileiro Nácar veio passar o verão no Recife. Formado pela recifense Kamila e os franceses Jeff e Dunbaar, o grupo faz uma residência na Comunidade do Bode, no Pina, com o apoio do Consulado da França. O projeto de pesquisa e criação é inspirado no Manguebeat e foi intitulado O novo som do mangue, a ser registrado no Estúdio do Sesc Capiba, em Casa Amarela, em colaboração com o percussionista Samuk ZN.

O trabalho vai ser apresentado em primeira mão no dia 22 de janeiro, no espaço Sol Nascente, na Cidade Alta, em Olinda. Finalizando a residência artística, o Nácar faz um show, previsto para fevereiro, no Teatro Capiba, em data a confirmar. De volta à França, planejam fazer uma turnê pelo sudoeste do país. Em entrevista ao site da Continente, a vocalista Kamila falou da trajetória da Nácar e da residência artística no Recife.

CONTINENTE Quem é o Nácar? Quem são os seus integrantes e qual o papel de cada um na banda?
KAMILA
Nácar é uma banda franco-brasileira formada por Kamila (voz e teclados), Jeff (bateria e máquinas) e Dunbaar (teclado, baixo e percussão). A banda tem três anos e, até agora, tem construído sua carreira na França. Pela primeira vez, a banda está no Brasil e tem alguns shows agendados, além da residência artística “O novo som do mangue”. Com relação à composição, o processo é bastante coletivo, mas, de maneira geral, Kamila chega com letra, melodia e harmonia, e a banda toda faz os arranjos de maneira bem livre, às vezes trazendo mudanças melódicas e harmônicas.

CONTINENTE Como vocês se conheceram e em que região da França vocês residem e atuam?
KAMILA Nos conhecemos em Olinda por volta de 2015/2016. Hoje moramos no sudoeste da França - na Dordogne e na Gironde. A banda atua principalmente na França até agora, mas queremos abrir caminhos no Brasil também e na Europa como um todo.

CONTINENTE Como vocês definem o som da Nácar?
KAMILA Napas submarinas. A memória do tambor. Uma voz mineral. Gostamos de experimentar... A nossa música se nutre de muitas coisas: da música tradicional nordestina, da música eletrônica europeia, da canção brasileira e da canção eletrônica francesa... Gostamos de trabalhar com texturas, temos uma pesquisa em torno do transe. Nossa música tem um lado progressivo também, que é bem natural, além de um quê psicodélico.

CONTINENTE A influência maior da banda é a música brasileira, pelo que eu ouvi e também pelo fato de você cantar em português?
KAMILA Sim, seja harmonicamente, ritmicamente ou até mesmo nas letras, tem muito de Brasil. Jeff e Dunbaar são bem conectados com a música brasileira também. Porém, as novas composições estão sendo inspiradas por temáticas mais globais.

CONTINENTE E a música pop francesa, de que forma ela se faz presente?
KAMILA Na produção musical, na escolha dos sons e até mesmo nos arranjos. Na França existe uma mistura cultural muito grande, o que é muito rico. Tem música de todo lugar do mundo. Gostamos muito de ver outros grupos que estão na mesma pesquisa que nós: utilizar sons e códigos da música atual e misturar com a música tradicional.

CONTINENTE Vocês já vieram em outras oportunidades ao Recife? Quando? Com que grupos e artistas vocês interagiram?
KAMILA Sim, nos conhecemos aqui e sempre voltamos. Interagimos com Kcal Gomes da Livrotecab Brincante do Pina, Hélder Vasconcelos da Mestre Ambrósio, Mãe Bette de Oxum, Mestre Zé Negão, entre outros. Dessa vez, temos uma nova parceria com o percussionista Samuk ZN do grupo Afroito.

CONTINENTE Quais são os grupos aqui do Recife que vocês mais se identificam?
KAMILA Acho que o som que parece mais com o nosso daqui do Recife é o de Sofia Freire, Jéssica Caetano e do grupo Estesia, mas nós somos muito mais influenciados pela cultura tradicional, como pelo grupo Bongar, Alessandra Leão, Siba, etc.

CONTINENTE Como está sendo a residência no Recife? O que vocês têm desenvolvido e com quem vocês têm trabalhado?
KAMILA Estamos trabalhando em torno do universo do Mangue nesse momento, dentro da comunidade do Bode no Pina. Estamos buscando entender melhor o universo do Manguebeat através dessa vivência na comunidade, tem sido muito rico. Em seguida, estaremos indo para o estúdio do Sesc Casa Amarela para fazer a segunda parte da nossa residência, que vai ser mais focada nos arranjos junto com o percussionista pernambucano Samuk ZN.

CONTINENTE Vocês vão fazer um registro das composições feitas no Recife e vão se apresentar ao vivo para mostrar o resultado da residência?
KAMILA Sim, temos um concerto de fim de residência no dia 19 de fevereiro no Teatro Capiba do Sesc Casa Amarela e temos um concerto dia 22 de janeiro em Olinda, no Sol Nascente. Outras datas estão em negociação e estamos abertos para mais shows. Vamos gravar também em janeiro/fevereiro.

CONTINENTE Qual a importância do disco Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi para a Nácar?
KAMILA Esse disco é “da maior importância”. Da Lama ao Caos traduziu a vida de muita gente em música. É um dos melhores discos da música pernambucana e talvez o mais importante. Até hoje podemos identificar um ar de mangue no som das bandas de Recife. Este álbum deu mais visibilidade para o maracatu e outros ritmos tradicionais daqui, o que influenciou e continua influenciando muitos artistas. A Nácar vem disso também. Dunbaar e Jeff, quando chegaram em Olinda, já conheciam o coco, o maracatu, etc. Todo esse movimento de valorização cultural foi muito influenciado pelo Manguebeat e a Nácar é, de certa forma, a continuação desse movimento porque partimos do mesmo desejo: misturar a música tradicional com os sons modernos e falar da nossa sociedade.

CONTINENTE Você pode comentar as músicas do EP Chegança? Vou colocar as minhas impressões também! Encabulada é a mais pop do EP, tem uma batida eletrônica e uma letra provocante.
KAMILA Isso, nessa música a gente quis brincar com o brega recifense, misturando a levada ao drama de um desejo que cega. A segunda parte é mais densa, trazendo mais profundidade aos sentimentos.

CONTINENTE "Lá se foi" é uma canção com o tempo bem marcado, um compasso de maracatu com levada de jazz.
KAMILA Sim, "Lá se foi" é a primeira música da banda, é uma música que fala de deixar partir... Fizemos uma mistura de maracatu, ciranda e drums and bass, é uma aventura. 



CONTINENTE "Outro cais" me pareceu uma ciranda também levada jazzística. Você pode comentar?
KAMILA "Outro cais" é, infelizmente, uma história real que aconteceu no bairro de São José, no Recife. Ela retrata um transfeminicídio que ocorreu durante a noite de São João. É uma tragiciranda.

CONTINENTE "Corja corrompida" me parece uma composição com influências afro-indígenas - lembra Airto Moreira. É também um protesto, quase panfleto.
KAMILA "Corja corrompida" é uma praga, a melhor maneira para nós, longe do Brasil, de fazer algo contra o desgoverno de Bolsonaro. Utilizamos vários elementos do universo afro-indígena nordestino nessa composição, seja na letra, na composição e até mesmo no clip.

CONTINENTE "Crioula" é uma música muito interessante, porque ela começa lembrando uma levada de samba de coco e depois você canta como se fosse uma cantoria, uma coisa mais sertaneja, e termina com uma levada de maracatu meio psicodélico.
KAMILA É, "Crioula" tem muita influência do Toré e do Caboclinho, traz também elementos da música eletrônica mais ácida. É uma homenagem à mulher nordestina.

MARCELO PEREIRA, coordenador de edição das revistas Continente e Pernambuco

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