Em passagem rápida pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para uma defesa de dissertação sobre o cinema militante do Movimento Ocupe Estelita, do mestrando e cineasta Pedro Severien, e para a conferência Curadoria da perspectiva das mulheres, mediada pela jornalista e crítica de cinema Carol Almeida, na quinta-feira (22/3), no Campus Recife, a professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano falou com a Continente. “Há uma negligência crítica em relação aos filmes feitos por mulheres e isso existe em função de estruturas historicamente localizadas. Não é, de jeito nenhum, a mesma coisa de dizer que há um olhar feminino, essencial”, afirma na conversa a seguir.
Amaranta Cesar na UFPE
Ao longo da entrevista, Amaranta fala também sobre as transformações do cinema militante na última década e de como este cinema tem se tornado parte constitutiva das lutas. Além disso, elabora sobre a ativação de potências através da imagem e reflete acerca da emergência de novos sujeitos de cinema. “Há um desejo de afirmação e engajamento no real. O cinema é, sim, articulador de um desejo de intervenção efetivo no campo social.”
CONTINENTE O cinema, integrante e reflexo da sociedade, reproduz, portanto, exclusões. Que caminhos você conhece e acredita pertinentes para combater as desigualdades específicas do campo, mas que refletem no além-campo? Ou, como a curadoria pode contribuir para essa transformação? AMARANTA CESAR Muita gente tem se deparado com isso em todas as instâncias. Como nós, nos espaços em que ocupamos, podemos agir contestando essas estruturas desiguais? Às vezes, parece que a gente pode muito pouco – e que o próprio cinema pode muito pouco. Mas eu parto do princípio que sim, a gente pode atuar para que as estruturas sejam menos desiguais. Parte disso significa repensar, colocar em crise, a maneira que a gente vê e critica os filmes. A primeira etapa é reconhecer que eu (e qualquer sujeito) faço isso de um lugar e que esse lugar também é histórico e determinado por injunções históricas. Essa circunstância histórica que eu ocupo me permite ou não ver, acessar ou não potências de imagens, de cinema e de filmes. Portanto, é preciso não repetir padrões que sejam mantenedores de privilégios e de visibilidades já reconhecidas e legitimadas. É preciso também estar atento a que cada filme que a gente dá a ver inscreve o sujeito que o realizou numa trajetória, numa história, e isso é também a inscrição do sujeito em tramas de produção, não só de visibilidade simbólica, mas também de existência material – uma vez que uma realizadora jovem negra, por exemplo, que tem um filme exibido em um festival de cinema poderá realizar possivelmente outros filmes e viver disso. Isso tem implicações tanto simbolicamente – que imagens novas podem surgir? –, mas tem implicações também materiais, como as verbas e editais, circulação de capitais de produção que poderão ir para outras mãos que normalmente não os acessam.
CONTINENTE O cinema, como instituição, ao mesmo tempo em que opera por mecanismos de visibilização, em exercício dialético, também é uma estrutura operante de apagamentos. O que o cinema mostra e o que esconde e produz como sobra e resíduo, e o que curadorias enxergam e dão a ver e, por conseguinte, o que não enxergam e apagam? AMARANTA CESAR Como todas as instituições, o cinema está em disputa e está sendo disputado pelos corpos que foram e continuam sendo sistematicamente apagados por estruturas muito desiguais, que são as da nossa sociedade. Quando dizemos que o cinema é um espaço de visibilidade, mas também de apagamento, é no sentido de pensar o que é considerado cinema nesse momento em que mais pessoas passaram a produzir filmes – e filmes que estão ligados a experiências subjetivas e históricas de sujeitos. Quando estou preocupada com os apagamentos simbólicos que o cinema produz, estou preocupada também com os apagamentos materiais de corpos e subjetividades que estão vinculados a situações históricas subalternizantes e de risco; preocupada em como as estruturas do cinema, nas suas defesas de princípios estéticos universalizantes, podem contribuir em não dar a ver determinadas experiências que são elaboradas com o cinema.
CONTINENTE O cinema militante, área de suas pesquisas, tem acompanhado as lutas pelas mais diversas causas. O que você acha que esse cinema pode e o que não pode na intervenção no real? O que esse fazer pode pelas lutas e pelos sujeitos em luta? Como ele pode tensionar as estruturas vigentes? AMARANTA CESAR O cinema militante hoje não é apenas a representação nem somente a constituição de uma memória das lutas. Ele não é a tradução para o cinema daquilo que é formulado em um outro lugar. O cinema participa das lutas. A ocupação e as estratégias midiáticas constituem uma coisa em si, intrinsecamente ligadas. O cinema não está fora da ocupação. Pelo contrário, do jeito que tem sido praticado hoje está, normalmente, conectado, imbricado aos movimentos sociais e políticos. É essencial pensar que muitas lutas se articulam também midiaticamente. Isso faz com que a gente não possa ignorar a potência do cinema no sentido de constituir as lutas, não somente dá-las a ver. Eu me pergunto quem é que pode não acreditar nas imagens, no cinema, nos filmes... Quando eu vejo um militante que enfrenta a polícia com a câmera e que, em dado momento, vira a câmera para si, parece ali um gesto de crença ostensiva (a exemplo do filme Na missão com Kadu, 2016). Porque filmar é também agir, atuar no acontecimento. Essa separação entre o acontecimento da luta e filmar a luta é cada vez mais tensionada e perturbada. Me parece ainda que não acreditar nessa potência é também descreditar da própria luta. É importante, por outro lado, dizer também que a imagem não é, em si, um acontecimento. Ela não é a presença, mas, sim, uma ambivalência entre presença e ausência. A imagem, em si, não garante a ação; ela participa da ação e ativa desejos de ação. Talvez o que essa imagem possa mais fortemente seja a ativação de desejos e a conexão de sujeitos desejantes – a vibração. Uma imagem vibra nos sujeitos, libera energia de luta.
CONTINENTE Nos últimos 10 anos você, enquanto curadora do CachoeiraDoc, tem se deparado com muitos filmes, que lhe chegam no calor do momento em que foram realizados, recém-nascidos. O que olhar panoramicamente para os produtos que te encontraram na última década (os que foram selecionados e os que não) pode nos dizer, em termos tanto narrativos, históricos, quanto estéticos e éticos? AMARANTA CESAR São muitas as transformações. A primeira delas é uma constatação clara de que há novos sujeitos de cinema. Corpos vinculados a situações históricas que antes constituíam os objetos dos filmes hoje são os sujeitos dos filmes, demandando cada vez mais ocupar os lugares do cinema. Novos realizadores vindos de outros lugares e com marcações identitárias diversas. Quem faz cinema hoje no Brasil não é mais somente quem fazia cinema há uma década atrás. Há uma maior diversidade, que raramente era observada no passado. Outro elemento importante é um engajamento militante muito claro. Há uma quantidade de filmes que respondem às urgências históricas e respondem de diferentes maneiras. Não só são filmes feitos no cerne dos acontecimentos de disputa, nas ruas, mas filmes engajados tematicamente nas desigualdades estruturais. Esses filmes aparecem com muito mais vigor e quantidade do que há 10 anos. Outra transformação, essa um pouco mais complexa, é que, da mesma forma que a gente viu a separação entre ficção e realidade ser posta em crise (durante um tempo, esses objetos híbridos apareceram com muita frequência), há muitos filmes que recuperaram esse desejo forte de se reafirmar no real, de se colocar como um testemunho de um dado histórico, fincado no real. O desejo de real voltou com força em comparação com um passado recente, em que parecia que havia uma suspeita do documentário sobre si mesmo. Acho que, hoje, essa suspeita passa por outros lugares. Há um desejo de afirmação mesmo, do engajamento no real.
CONTINENTE Você costuma falar que há uma hierarquia equivocada na maneira de olhar filmes, que separa e privilegia forma sobre conteúdo. Nesse sentido, os filmes militantes são inferiorizados e taxados de pobres em termos formais. Por outro olhar, podemos observar uma série de invenções estéticas e inovações de linguagem a serviço de uma ideia, que se configuram como estratégias criativas na realização de filmes implicados na transformação do real. O que o engajamento funda imageticamente? Que características tem esse cinema? AMARANTA CESAR Eu vou me reportar ao Movimento Ocupe Estelita – porque eu estou aqui no Recife por causa disso. Quando você olha os objetos, há uma diversidade impressionante de formas. A primeira coisa que eu acho importante dizer é que o cinema militante não é monolítico. Não há um cinema militante. Muitas pessoas dizem: o didatismo é próprio do cinema militante, ou tomam o cinema militante como sinônimo de didático, panfletário. O panfleto é um dos subgêneros do cinema militante, mas há outros tantos. Então, por exemplo, eu noto algumas coisas. Normalmente, vemos os filmes de registro de manifestação como apenas “filmes de registro”, mas há determinados filmes – e eu estou pensando em um especifico, no Salve o Estelita com direito a rolezão no Shopping Riomar, de Ernesto de Carvalho e Leon Sampaio, feito dentro do Movimento Ocupe Estelita, em 2015.
Há ali alguma coisa que não é da ordem do discurso ideológico, não é da ordem da organização discursiva, que é, sim, do regime háptico de imagens, que é sensorial, é uma liberação, ativação de energia. Isso é forma, está na forma. Isso significa reconhecer nessa forma uma dimensão, inclusive da luta, que não passa somente pela propagação discursiva, pela formulação ideológica. Tem uma dimensão que é a ativação de corpos na cidade ou, falando em cinema, dos corpos em cena. Portanto, uma forma de ver parcialmente, e de ver preconceituosamente esses filmes, é entendê-los meramente como registro, numa dimensão indicial da imagem. Se você observa esses filmes com alguma dedicação, no entanto, você vê que há outros regimes sensíveis operando ali. Expandir o olhar é enxergar potenciais inventivos do cinema militante. Ele não é monolítico em absoluto. O que ele é, sim, é articulador de um desejo de intervenção efetivo no campo social com uma invenção de formas. E isso me parece tão lógico, de serem coisas absolutamente conectadas. Porque se eu quero intervir, eu preciso entender “como”, eu preciso inventar uma forma para intervir. Então, a invenção formal nesse cinema não é contraditória, não é refratária ao seu desejo de intervenção nas urgências materiais da história, é o inverso, ela é concorrente. Se você olha o Movimento Ocupe Estelita, você reconhece um grande laboratório de experimentação de cinema de intervenção, de vários tipos. Desde um filme troça-anárquico-futurista, como é o Novo apocalipse Recife (Movimento Ocupe Estelita, 2015), a esse filme háptico (que é o do rolezão do Riomar), até, o que eu considero um filme, o registro de um telefonema, sem imagem nenhuma, de um marketing político para pesquisa sobre a opinião em relação ao Projeto Novo Recife (filme Pesquisa do Ipespe sobre o Novo Recife na ÍNTEGRA, 2014, de Pedro Severien).
CONTINENTE Assistimos a uma transformação importante sobre os corpos que representam (aqueles a quem era negado o direito de representar e a quem restava o lugar do representado), como você mesma reconhece. Novos sujeitos que trazem consigo uma série de reflexões e tensões sobre o ato de representar, o que inclui as pautas do lugar de fala e da representatividade. Ainda é possível/necessário representar a alteridade e se sim, como é possível eticamente representar x outrx? AMARANTA CESAR O cinema também é o lugar de a gente se descobrir como outro. A alteridade é um conceito importante para o cinema e, para o documentário, em especial. As relações nos definem. Nenhuma identidade existe sem a alteridade, sem a diferença, sem o outro. O outro é um exterior constitutivo. Dificilmente, a gente prescinde dessa ideia de alteridade, o que não significa dizer que haja um monopólio da representação. Tem uma possibilidade de se alterar na própria elaboração cinematográfica, de se descobrir outro. Isso é próprio desse fazer. O que me parece importante é reconhecer, ao mesmo tempo, que isso existe enquanto possibilidade – que é profunda e talvez a gente não tenha que abrir mão – e que existe também uma descoberta e desejo de determinados sujeitos que nunca puderam se expressar no cinema de se afirmar. Se afirmar não como outro, mas como eu, como identidade. A gente vê isso muito claramente: de se afirmar pelo cinema, de descobrir uma espécie de tecnologia de si, uma emancipação pela reafirmação e reinvenção de sua própria condição histórica. A gente vê isso em Kbela (Yasmin Thayná, 2015) e em Travessia (Safira Moreira, 2017), filmes que, em si mesmos, são lugar de reinvenção e reafirmação de si.
Então, acho que o cinema pode ser essas duas coisas, tanto uma descoberta do outro em si mesmo, quanto um lugar de reafirmação e de resistência indentitária. Isso diz respeito à maneira como ele está inscrito em injunções históricas, de novo, não diz respeito à essência do cinema. Não determina que o cinema tenha que ser sempre elaborado do lugar da autorrepresentação ou que falar de si signifique falar de um lugar seguro sobre si. Aí, eu acho que é essencializar o que o cinema pode e eu não acredito numa essência cinematográfica, assim como eu não acho também que a identidade seja uma essência. Ela é histórica, precisa estar sempre em rasura. Ela é inacabada e posicional, depende de uma circunstância. Se ela é essência, fixa, predeterminada, ela pode muito pouco, estética e politicamente, uma vez que ela é facilmente definida e, portanto, controlada.
CONTINENTE Toda a curadoria é perspectivada parece ser uma premissa que tem sido camuflada pelo mito da universalidade do sujeito. Enquanto isso, é possível constatar, por exemplo, a histórica ocupação majoritária de homens brancos e de europeus e norte-americanos no cinema em comparação a mulheres, negrxs, de África, Latino-América e Ásia, e que aponta para uma estrutura desde sempre desigual. Em sua conferência, na UFPE, você propôs olhar pela perspectiva de sujeitos femininos. Ao seu ver, o que significa o olhar das mulheres e o que esse posicionamento traz como consequência? AMARANTA CESAR Quando a gente fala de curadoria na perspectiva das mulheres significa dizer que a gente está enfrentando uma questão histórica. Que as mulheres ocupam menos o lugar de decisão de quais filmes são dados a ver, de quais serão validados e legitimados historicamente. Ao mesmo tempo, a gente está dizendo que há uma negligência crítica em relação aos filmes feitos por mulheres e a gente constata que isso existe em função de estruturas historicamente localizadas. Quando a gente assume uma ideia de perspectiva, a gente está se posicionando politicamente dentro de uma situação histórica. É assumir que essa condição de mulher existe historicamente. Isso não é, de jeito nenhum, a mesma coisa de dizer que há um olhar feminino, essencial – que haveria um olhar essencialmente feminino em contraposição a um olhar essencialmente masculino. A condição de mulher é dada historicamente e a gente se afirma enquanto mulher nesse espaço para combater justamente essa ocupação minoritária histórica desses lugares.
Frame do filme Kbela. Imagem: Reprodução
CONTINENTE Em suas reflexões, você define curadoria como uma soma de significados. Além dos mais conhecidos, de validação e legitimação, você também dá à curadoria o sentido de cura coletiva. De que maneira a curadoria ocupa esses papéis? AMARANTA CESAR Normalmente, as pessoas se remetem à raiz etimológica para falar de curadoria: curare, do grego, que é cuidar. Li em Os caminhos da curadoria, de Hans Obrist, curador suíço de artes visuais contemporâneas, sobre esse aspecto de cuidado e poda – cuidar se referindo às obras, já que dentro da atividade de curadoria, está, por exemplo, a atividade de preservação. Mas o que Obrist fala também é sobre cuidar na perspectiva de desenvolver os contextos e as pessoas que estão envolvidas no campo. Quando eu falo de cura coletiva, é no entendimento de que nós temos contextos – isso é evidente em Cachoeira, uma cidade no interior da Bahia, pobre, o que não é uma singularidade dela – marcados por estruturas extremamente desiguais que produzem mortes, riscos de vida, apagamentos materiais e existenciais. Então, quando a gente pensa em desenvolver os contextos, é preciso também pensar nesses atravessamentos históricos dessas estruturas desiguais que perpassam também os contextos específicos do cinema. Não pensar nesse atravessamento, para mim, é pensar parcialmente a curadoria. Como é que a gente pode confrontar essas estruturas desiguais no desenvolvimento desse contexto que é especificamente cinematográfico? É nesse sentido que eu falo de cura coletiva. De cuidar para que, minimamente, a gente possa enfrentar coletivamente esses danos que são estruturais, que são feridas e que marcam mais alguns corpos do que outros.
CONTINENTE Você fala de crítica como lugar de instabilidade. O que você entende por essa instabilidade? AMARANTA CESAR Eu considero a curadoria como uma crítica na práxis, uma prática crítica. Quando eu falo da instabilidade da crítica, falo de quando a gente está entendendo como nossos parâmetros críticos perpetuam ou contestam desigualdades. Se a gente está, de fato, preocupado com nossos modos de agenciamento de visibilidades e apagamentos – que é o nosso papel de curador –, a gente necessariamente precisa se autocriticar, ter uma dimensão autorreflexiva. Se estou preocupada com meu gesto crítico, eu me coloco, enquanto crítica, em questão também. Aí a crítica deixa de ser esse horizonte que define o que existe e o que não existe – esse lugar estável do juízo –, para ser o lugar da instabilidade em que o juízo precisa se movimentar, se deslocar, para acolher e responder àquilo que surge. É uma dimensão ética da crítica.
CHICO LUDERMIR é jornalista, escritor e artista visual. É integrante dos movimentos Coque Vive e Ocupe Estelita e mestrando em Sociologia PPGS-UFPE. É autor do livro A história incompleta de Brenda e outras mulheres.